Thursday, 31 October 2019

Análise de Acórdão, Neuza Felizardo Carreira



Análise de Acórdão: Processo nº 1336/17.7BELSB, secção: CA-2º JUÍZO, 24-05-2018


Enquadramento geral:


Breve apresentação do acórdão

A ação em causa foi proposta no Tribunal Central administrativo do Sul, que é um dos tribunais existentes na rede de tribunais administrativos nacional.

            Na ação temos como parte uma sociedade comercial, que impugnou a decisão proferida pela Câmara Municipal de Lisboa. Tal decisão tinha sido proferida no âmbito de um processo de contraordenação, que condenou a sociedade ao pagamento 51 euros a título de custas e 600 euros referentes à prática de uma contraordenação punida no 21º/1 a) do DL nº 309/2012 de 16 de Dezembro. Esta decisão da CML veio revogar o Despacho de Aplicação de Medidas Cautelares anteriormente aplicada à sociedade (que adveio de uma reclamação de ruído por violação do RGR- Regulamento Geral do Ruído), tal medida cautelar tinha como objetivo que a sociedade, no prazo de 30 dias, iniciasse o procedimento competente para obter a licença que lhe era necessária para a prática da sua atividade. Em causa está a falta de uma licença camarária que permitiria à sociedade a realização de espetáculos com música ao vivo, sendo que a falta de licença consubstancia uma ilegalidade (tipificada em diploma que regulamente a instalação e funcionamento de recintos de espetáculos). O representante do estabelecimento agiu assim com falta de cuidado e com consciência da ilicitude da sua conduta.

O tribunal a quo deu provimento à impugnação da sociedade e consequentemente revogou a decisão da contraordenação, absolvendo a sociedade do respetivo pagamento. O MP recorreu de tal decisão para o presente tribunal pedindo que a decisão do tribunal a quo seja esta fosse revogada e substituída por uma outra que julgue improcedente o recurso de impugnação.

A principal questão neste acórdão, para a análise em presença, passa pelo despacho de 20.04.2018 em que foi oficiosamente suscitada pelo relator (Pedro Marchão Marques) a exceção de incompetência em razão da matéria dos tribunais administrativos para julgar a causa (esta questão é de conhecimento oficioso tal como refere o 89º/4 a) CPTA). Em causa está análise do 4º/1 l) ETAF com a redação dada pela reforma, através do DL nº 214-G/2015, que refere que cabe à jurisdição administrativa conhecer: “impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”. O tribunal em causa refere que mesmo que esta contraordenação, sobretudo na vertente referente ao ruído, apesar da sua irrelevância material para a contraordenação em presença, tenha conexão com matéria de “ambiente” e com a eventual afetação de direitos de personalidade, continua sem se poder considerar que a matéria é referente ao urbanismo e que nessa medida não se encaixa no 4º/1 l) ETAF.

A conclusão deste tribunal seria que caberia aos tribunais judiciais julgar a causa em presença (212º CRP e 40º/1 da LOSJ), sendo ainda que tomar em conta o 61º/1 RGCO que refere: “É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração”. Em suma, o tribunal administrativo em causa não se considera competente e como tal obsta ao conhecimento do mérito do recurso interposto, devendo assim o processo ser remetido para o tribunal competente, o qual anulará os atos que não se teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo e ordenará a repetição dos atos necessários para conhecer da causa. De acordo com o 130º/4 b) LOSJ, a competência para apreciar recursos de contraordenação até 15 mil euros está deferida ao Juízo de Pequena Criminalidade.

Breve contextualização

Cabe primeiramente fazer uma introdução da questão em causa. Para que um tribunal administrativo possa julgar a causa é necessário verificar se os pressupostos processuais estão preenchidos, desde logo, os pressupostos referentes ao tribunal, sendo que estes se podem dividir em quatro planos:
1) Competência em razão da jurisdição: que é a que interessa apreciar, em causa está o esclarecimento da questão de saber se a ação deve ser proposta na jurisdição administrativa e tributária ou antes perante os tribunais judiciais;
2)  Competência em razão da matéria;
3)  Competência em razão da hierarquia;
4)  Competência em razão do território.

Cumpre ainda destacar que a reforma de 2015 trouxe várias alterações ao âmbito da jurisdição administrativa apesar de continuar sem mudar o seu paradigma, desde logo mantendo o critério operativo do 212º/3 CRP (relações jurídico-administrativas). Esta reforma trouxe ainda duas mudanças, sendo elas a clarificação e um alargamento da jurisdição administrativa. Tal alargamento pretendia abranger várias matérias, das quais:

1)   Condenação à remoção de situações constituídas em “via de facto”.
2) Fixação da justa indemnização devida por expropriações, servidões e outras restrições de utilidade pública;
3)  Impugnação de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado;
4) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração.

O que cabe referir é que a inclusão de todas estas matérias já poderia ser feita através do critério do 212º/3 CRP, sendo que este projeto de alargamento é apenas uma sua densificação. Mas tem de se frisar que o alargamento não se deu com todo este âmbito em matéria de impugnação de coimas, sendo que apenas vigora a matéria referente ao urbanismo. A razão para esta opção legislativa prendeu-se com a ideia de uma “perspetiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem prática”. Ou seja, os argumentos invocados foram que não existiam recursos humanos e materiais no aparelho judiciário administrativo para que, com eficiência, se conseguisse suportar o aumento de processo que o alargamento geraria; outro argumento passa pelo aumento da já morosa justiça administrativa e o argumento final remata com uma ausência da formação de juízes nos tribunais administrativos sobre esta matéria, que fossem capazes de proporcionar uma garantia da tutela jurisdicional efetiva (tal como refere Diogo Freitas de Amaral). Remeteu-se para uma futura revisão um alargamento na sua plenitude em vez de se ter optado por alagar um período da vacatio legis para se poder restruturar e adequar os meios materiais e humanos de forma a alcançar tal alargamento.


Argumentos contra a integração desta contraordenação no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos


         O tribunal em presença invocou vários argumentos a ter em conta, desde logo:

1)     Invocou o anteprojeto submetido pelo Governo, em que este contemplava a possibilidade de um alargamento do âmbito de jurisdição a muitos outros domínios (3º/3 m)). Sendo que o que foi consagrado foi apenas o domínio do ilícito de mera ordenação social em matéria urbanística. O legislador deixou de fora a matéria do ambiente e do ordenamento do território, entre outras. O tribunal, argumentou assim, que a interpretação da “matéria do urbanismo” deve ter em conta este contexto, no sentido de se poder dizer, com segurança, que o legislador não pretendeu atribuir aos tribunais administrativos uma competência genérica nesta área das contraordenações.

2)    Foi invocado também o argumento sistemático, pois o legislador ao traçar o âmbito de jurisdição administrativa consagrou no 4º/1 k) ETAF várias matérias que depois na alínea seguinte (l)) restringiu. Era assim um objetivo do legislador fazer essa verdadeira restrição.

3)   Outro argumento invocado foi que Fernanda Paula Oliveira só admite como contraordenações urbanísticas as do RJUE (98º e 99º), do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana e de Regulamentos municipais em matéria urbanística. As contraordenações em matéria urbanística transferidas para a jurisdição administrativa são sem dúvidas as reguladas nesses diplomas. Não sendo a contraordenação em causa regulada por nenhum destes diplomas então conclui-se que este argumento vai no sentido de excluir do âmbito de jurisdição administrativa o recurso em causa.

4)    Outro argumento, já supra mencionado, prende-se que mesmo que se considera-se a vertente do ruído, que para o caso parece ser irrelevante para a determinação da infração, ainda assim apenas nos permitiria fazer uma conexão com a matéria do ambiente, mas sendo a contraordenação em causa tipificada no diploma que regulamenta a instalação e funcionamento dos recintos de espetáculo, não estamos perante matéria urbanística.

Indo ao encontro do conceito de Direito do Urbanismo: conjunto de normas relativas à ocupação, uso e transformação do solo, tendo por objeto o território compreendido na sua globalidade (Fernando Alves Correia); ou apelando ao conceito mais restrito de Diogo Freitas do Amaral, a conclusão será de que esta contraordenação em causa parece não ter que ver com matéria de urbanismo.

Um outro argumento, não invocado por este acórdão, mas que pode ser chamado à colação, é que o 4º/1 l) deixando de fora outras matérias e referindo-se apenas à matéria do urbanismo acaba por evidenciar a fuga do legislador ao 212º/3 CRP. Porém, o Tribunal Constitucional reconheceu que tal preceito da CRP não tem natureza absoluta e não há qualquer inconstitucionalidade em atribuir aos tribunais comuns os litígios relativos à impugnação de coimas aplicadas ao abrigo de normas materialmente administrativas (acórdão nº522/2008). Sérvulo Correia também parece ir neste sentido.

 Para Mário Aroso de Almeida, os preceitos do 4º ETAF devem ser interpretados de forma restritiva, à luz do critério operativo da alínea o), referente às relações jurídico- administrativas, de modo a que se evite uma ampliação da jurisdição não pretendida pelo legislador, visto que este não desconhecia o critério do 212º/3 CRP, pelo que quando no artigo 4º ETAF, estabeleceu soluções mais amplas ou mais restritas ele na verdade pretendeu estabelecer tais soluções. O critério das relações jurídico- administrativas é apenas subsidiário e residual. Tomando em atenção esta ideia, parece que o autor em causa no 4º/1 l) ETAF defende que apenas se integra na jurisdição administrativa matérias de urbanismo, de fora ficariam todas as restantes (ambiente, ordenamento do território, entre outras). Ou seja, encontra-se assim mais um argumento para não integrar o recurso no âmbito de jurisdição administrativa.

Outro argumento que poderá ser invocado, passa pelo acrescento que foi feito ao 4º/1 l) - “e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”. Tal acrescento pode dar mais força à defesa de que estamos perante um elenco fechado e taxativo das matérias que foram escolhidas pelo legislador para integrarem o âmbito de jurisdição administrativa no 4º/1 l) ETAF. Se há a necessidade desta acrescento, então é porque anteriormente apenas era da competência dos tribunais administrativos impugnação de coimas em matéria de urbanismo e não de outras matérias.



Argumentos a favor da integração desta contraordenação no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos



Se, eventualmente, se entende-se que a contraordenação em causa tinha alguma proximidade com a matéria do ordenamento do território caberia nesse caso invocar a posição de Jorge Pação. Este autor, refere que as normas administrativas do ordenamento do território são indissociáveis das regras sobre matéria de urbanismo e é injustificável que haja a restrição operada no 4º/1 l) face às primeiras. A ligação entre ambas é enorme e torna-se difícil traçar delimitações. Nessa medida, pode fazer-se uma interpretação do 4º/1 l) no sentido de adotar um conceito de "urbanismo" suficientemente amplo que possa abarcar as matérias do ordenamento do território. Desta forma, afasta-se uma aplicação de um regime incoerente na medida em que: se se considerasse que estaríamos perante matéria de urbanismo a ação deveria ser proposta nos tribunais administrativos; se se considerasse que a matéria seria do ordenamento do território então competência já passaria a ser dos tribunais judiciais.

No mesmo sentido, a própria doutrina, desde logo António Dantas, tem tratado as contraordenações do território como verdadeiras contraordenações urbanísticas, tal como Fernanda Paula Oliveira. Estes autores, tal como Jorge Pação defendem que se deve abandonar uma interpretação histórica e subjetiva do 4º/1 l) ETAF e deverá fazer-se uma interpretação teleológica de natureza objetiva, incluindo matéria do ordenamento do território no conceito de “matéria de urbanismo”.

            Tal como já foi referido supra, o legislador acabou por fugir ao cumprimento do 212º/3 CRP, mas ainda assim se poderia invocar o argumento de que a finalidade do direito administrativo passa por vigiar, reprimir a violação de normas jurídico-administrativas e aplicar as necessárias sanções administrativas, logo pode concluir-se que não há dúvidas de que a aplicação de coimas e sanções acessórias (seguindo a doutrina de Carla Amado Gomes) nestas matérias do caso em concreto são objeto do ramo de direito administrativo, na medida em que há violação de normas administrativas. Podendo a contraordenação em apreciação inserir-se no âmbito de jurisdição administrativa, desde logo através da aplicação do critério operativo do 4º/1 o), apelando assim à coerência do sistema. A atividade de aplicação de coimas é materialmente e procedimentalmente integrante da relação jurídica administrativa, sendo que também há uma razão de especialidade que favorecem a atribuição de tais litígios aos tribunais administrativos. Temos assim mais um argumento a ser ponderado.

Mário Aroso de Almeida, refere que em 1979, quando foi criado o ilícito de mera ordenação social, a impugnação das decisões referentes à aplicação de coimas foi reservada aos tribunais judiciais por várias razões. A primeira passa pelo reduzido número de tribunais e juízes administrativos existentes em Portugal naquela data. Em segunda, havia uma limitação dos poderes instrutórios de conhecimento e de pronúncia conferido aos juízes administrativos pelo recurso de contencioso. Porém, nenhuma destas duas razões tem fundamento atualmente, pois a justiça administrativa foi sofrendo alterações, sobretudo as de 2004. Pegando nesta linha de pensamento, poder-se-ia concluir que a razão porque as restantes matérias do anteprojeto não foram incluídas no artigo 4º/1 l) ETAF já não fazem sentido atualmente, é obsoleta e nessa medida não se observa razões para não integrar esta contraordenação no âmbito de jurisdição administrativa.

Há ainda que invocar várias razões para as contraordenação do 4º/1 l) estarem integradas no âmbito de jurisdição administrativa (tal como refere Licínio Lopes), desde logo:

1) Razão orgânica: a decisão aplicativa da sanção contraordenacional é sempre uma decisão de um órgão administrativo, é um ato administrativo sancionatório;

2) Razão material: trata-se uma atividade materialmente administrativa;

3) Razão normativa: as normas violadas são normas direta e intencionalmente conformadores da atividade da administração e têm natureza administrativa.

4) Razão procedimental: a aplicação da sanção corre nos termos de um procedimento sancionatório que corre exclusivamente no seio da administração e é instruído exclusivamente por esta;

5) Razão funcional: não são raros os casos em que a atividade em causa é objeto de um controlo prévio pela Administração, através de autorizações, licenças, concessões, tal como é objeto de um controlo à posteriori. Em qualquer dos casos, há uma permanente atividade administrativa de fiscalização.


Tomada de posição e Conclusão


   Tomando em consideração todos os argumentos enunciados, cabe referir que a contraordenação em causa não se insere em matéria de urbanismo, pelo menos de forma direta e imediata, sendo que nesse aspeto tendo a concordar com o tribunal administrativo em presença. Por outro lado, há duas formas possíveis de descordar do tribunal e defender que a contraordenação em causa pertence e deve ser apreciada pelos tribunais administrativos. Ou se defende que a matéria vertida na contraordenação tem alguma conexão com a matéria do ordenamento do território e nessa medida, havendo a tal ligação íntima desta matéria com a matéria do urbanismo se entende (como Jorge Pação, supra mencionado) que se deve fazer uma interpretação ampla do conceito de urbanismo de forma a caber também a matéria de ordenamento de território. Ou então, defende-se que o recurso em mãos se poderia integrar no âmbito de jurisdição administrativa, desde logo pelo critério do 4º/1 o) ETAF e 212º/3 CRP, pois o objeto do processo não pode deixar de ser o ato administrativo sancionatório e para apreciar a sua legalidade o juiz administrativo surge como juiz especializado. Além do mais, tal como refere Jorge Pação, o alargamento que se deu no âmbito da jurisdição administrativa já era uma densificação do 212º/3 CRP.

    Em suma, estamos assim perante uma relação jurídica administrativa, que pode ser caracterizada pelo facto de atribuir prerrogativas de autoridade ou imponha deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou alguns dos intervenientes por razões de interesse público, que parece ter sido o caso. Adota-se assim o critério dito teleológico e não o estatutário das relações jurídicas administrativas. A matéria em causa poderia ser inserida no âmbito de jurisdição administrativa.


- ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017;
-PAÇÃO, Jorge, Comentários à revista do ETAF e do CPTA- Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, 3º edição.
- MARTINS, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto;
-SILVA, Vasco Pereira da, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre ações no novo processo administrativo, Almedina, 2º edição, 2013;
-CORREIA, Fernando Alves, Estudos de Direito do Urbanismo, Almedina, 1997.
-CORREIA, Fernando Alves, Manual de Direito do Urbanismo, vol.I, 4º edição, Almedina, 2008.


Neuza Felizardo Carreira, nº57098. Subturma 10, Turma A

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