O
efeito Suspensivo automático da impugnação de actos de adjudicação (artigo
103º-A do CPTA)
O
presente comentário centra-se no artigo 103º-A do Código de Processo dos
Tribunais Administrativos, novidade resultante da reforma do Contencioso
Administrativo introduzida pelo DL nº214-G/2015, de 2/10, que, como é assumido
no preâmbulo deste diploma, tem por objectivo conformar o direito processual
nacional com a Directiva 2007/66/CE, de 11 de Dezembro de 2007 (segunda
Directiva “Recursos”).
Esta
Directiva procurou corrigir ou atenuar a situação de défice de tutela
jurisdicional dos participantes em procedimentos de contratação pública, em
particular no que respeita à possibilidade de impugnação, em momento útil, do
acto decisivo deste tipo de procedimentos (o acto de adjudicação).
Neste
sentido, centrou especial atenção numa prática das entidades adjudicantes que
se considerou particularmente nociva para o objectivo de garantir o efectivo
cumprimento do direito de contratação pública: a tendência para essas entidades,
após a adjudicação, procederem rapidamente à celebração do contracto público
visado, por forma a evitar a que uma eventual acção judicial possa ter
consequências relevantes sobre o desfecho do procedimento adjudicatório
(fenómeno que ficou conhecido por “corrida à assinatura do contrato”).
Com
efeito, sabendo que, após essa celebração, uma acção desse tipo muito dificilmente
redundaria numa decisão de invalidação do contracto público e que, portanto, o
único “risco” que corriam era o de eventualmente virem a ser condenados a pagar
uma indemnização-condenação que dificilmente seria em montante elevado e que,
em qualquer caso, só sucederia muito tempo depois, dada a morosidade dos
processos indemnizatórios, tais entidades tinham um incentivo a precipitarem a
celebração do contracto, frustrando, assim, a integral tutela judicial dos
concorrentes (porventura ilegalmente) preteridos.
Foram
estas as circunstâncias que, em grande medida, motivaram a Directiva 2007/66/CE,
conduzindo o legislador europeu a introduzir um conjunto de inovações
destinadas a reforçar a efectividade dos mecanismos de tutela contenciosa, de
modo a garantir que estes estejam
efectivamente disponíveis num momento prévio à celebração do contracto e
que as entidades adjudicantes não possam
livremente restringir a sua eficácia, conseguindo, através da simples
celebração antecipada do contracto, evitar o pleno alcance de tutela
jurisdicional[1].
Uma
dessas inovações, plasmada no art.2º/3, da Directiva 89/665/CEE, consiste na
obrigatoriedade de os Estados-Membros atribuírem um efeito suspensivo
automático à dedução de uma pretensão jurisdicional contra o acto de adjudicação,
assim se procurando garantir que, sendo judicialmente contestada a legalidade de
um acto deste tipo, o facto jurídico que por regra torna mais dificilmente
reversíveis as suas consequências (a celebração do contracto) não é praticado
sem que exista uma prévia pronuncia de um órgão jurisdicional sobre tal
pretensão.
Perante
as exigências formuladas no art.2º/3, da Directiva 89/665/CEE (tal como
alterada pela Directiva 2007/66/CE), o direito nacional anterior à reforma do
CPTA não se revelava conforme, neste ponto, com o direito da União Europeia.
Com efeito, mesmo admitindo a aplicabilidade dos mecanismos previstos nos arts.
128º e 131º daquele Código ao contencioso pré-contractual, tais instrumentos
eram insuficientes para assegurar que, sendo deduzida uma pretensão
jurisdicional contra o acto de adjudicação, o contracto não podia ser celebrado
sem que, previamente, o Tribunal se pronunciasse sobre tal pretensão: no caso
do art.128º, porque a suspensão automática dos efeitos do acto de adjudicação,
decorre da citação da interposição de uma providência cautelar de suspensão de
eficácia desse acto, poderia cessar mediante a emissão pela própria entidade adjudicante de uma
resolução fundamentada, podendo o contracto ser celebrado de imediato; no caso
do art. 131º, porque a atribuição de efeito suspensivo não era automática,
tendo antes de ser decretada a título de tutela cautelar pelo Tribunal, o que
não permitia evitar que, entre o momento em que se requer o decretamento
provisório da suspensão de eficácia do acto de adjudicação no momento em que tal
providência é decretada, existisse um hiato
temporal em que é possível e legítima a celebração do contracto.
O
art. 103º-A pretende corrigir esta situação. A opção do legislador foi a de
interligar a produção do efeito suspensivo da acção principal de impugnação do
acto de adjudicação. Tal não significa, contudo, que este efeito suspensivo
cesse necessariamente apenas e só no momento em que esta acção venha
eventualmente a ser julgada improcedente, uma vez que, consciente que tal
solução se poderia revelar problemática do ponto de vista da prossecução do
interesse público subjacente ao contracto público em formação, o legislador
previu a possibilidade de levantamento do efeito suspensivo automático através
de um incidente processual próprio, regulado nos nºs 2, 3 e 4 deste art.
103º-A.
A
questão que se coloca, e que este artigo visa solucionar, é a de saber se a
solução concretamente encontrada para assegurar essa conformidade com o direito
europeu permite, simultaneamente, garantir um justo equilíbrio entre os vários
interesses em confronto no momento da prática de um acto de adjudicação, ou
seja, os interesses dos concorrentes preteridos no procedimento pré-contratual,
o interesse público que o contracto visa satisfazer e, por fim, o interesse do
adjudicatário.
Diria
que existem quatro aspectos do regime previsto no art. 103º-A em relação
aos quais o equilíbrio não é assegurado, sendo afectados, de forma desmedida e
desproporcional, alguns desses interesses.
Em
primeiro lugar, prende-se com os pressupostos de
aplicação do efeito suspensivo automático.
A
opção do legislador, bem vincada no texto do nº1 do art.103º-A, foi a de que
qualquer impugnação judicial de um acto de adjudicação faz suspender a
respectiva eficácia, não sendo necessário que essa impugnação seja apresentada
num determinado prazo[2].
Assim,
a lei não exige, que para que o efeito suspensivo automático se produza, que a
impugnação do acto de adjudicação se faça no decurso do prazo de «standstill»,
isto é, enquanto estiver a vigorar o período suspensivo procedimental que em
regra medeia entre a adjudicação e a celebração do contracto público. Na
verdade, o art.103º-A do CPTA não exige sequer que o pedido de impugnação do acto
de adjudicação seja deduzido antes da celebração do contracto- é isso que
resulta da parte final do nº1 daquele preceito, em que se estabelece que, mesmo
que o contracto já tenha sido celebrado no momento em que a entidade
adjudicante é citada da interposição da acção de contencioso pré-contractual, o
efeito suspensivo ainda assim se produz, ficando tal entidade, nesse caso,
obrigada a suspender a execução do contracto.
Esta
opção, não sendo explicitamente contrária à Directiva, revela-se desconforme
com a lógica do sistema de termos suspensivos por ela implementado, não
assegurando o tratamento equilibrado dos diversos interesses em presença.
Com
efeito, a Directiva procurou reforçar a eficácia dos recursos pré-contractuais através
da previsão de um complexo de termos suspensivos mínimos que devem decorrer
antes que seja possível a entidade adjudicante celebrar o contracto em causa.
Um
segundo aspecto que o regime do art. 103º-A parece criticável tem a ver
com o facto de o efeito suspensivo automático nele previsto poder ser
desencadeado mesmo naquelas situações em que inexiste, por parte da entidade
adjudicante, a obrigação de respeitar o prazo de «standstill».
Com
efeito, o CCP consagra, no art.104º, nº2 algumas excepções à regra de que um
contracto público só pode ser celebrado decorridos pelo menos 10 dias desde a
notificação da decisão de adjudicação aos concorrentes: tal impedimento
inexiste, podendo o contracto ser imediatamente celebrado, i) quando não tenha
sido publicado no Jornal Oficial da União Europeia; ii) quando esteja em causa
um contracto celebrado ao abrigo de quadros cujos termos abranjam todos os seus
aspectos ou que tenha sido outorgado apenas com uma entidade; ou iii) quando
tenha sido apresentada apenas uma proposta.
Em
todas estas situações, o legislador reconheceu que, atendendo ao tipo de
procedimentos que estão em causa e aos interesses que importa acautelar, não é
adequado sujeitar a Administração à proibição de celebrar o contracto logo após
a prática do acto de adjudicação. A imediata outorga e início de execução do
contracto é, pois, nestas circunstâncias, uma prática totalmente legítima, coberta
pela lei e, em algumas circunstâncias- como nos ajustes directos por motivo de
urgência imperiosa,-uma actuação imprescindível para que as necessidades
colectivas prosseguidas através dos contractos em causa não saiam
irremediavelmente ou gravemente prejudicadas.
Ora,
neste quadro, não parece haver qualquer justificação para que, não tendo o
legislador procedimental fixado uma obrigação de «standstill», venha mais tarde
o legislador processual prever que o contracto que foi de boa-fé celebrado pela
entidade adjudicante e adjudicatário pode afinal ter a sua eficácia paralisada
pela mera propositura de uma acção judicial de impugnação da adjudicação
(paralisação que durará, pelo menos, por todo o período de tempo necessário à
decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo).
Em
suma, a possibilidade de o efeito suspensivo automático previsto no art.103º-A
do CPTA funcionar em situações em que, à partida, não existe obrigação de «standstill»,
permitindo a paralisação da execução de contractos que foram legitimamente
celebrados e cuja execução imediata pode até ser imprescindível para a prossecução
das tarefas administrativas às quais tais contractos estão funcionalizados [3], é
uma opção legislativa que não garante um justo equilíbrio entre todos os
interesses em jogo nos procedimentos de formação de contractos públicos.
Uma
terceira crítica que deve ser feita à redacção do art.103º-A, prende-se
com a indefinição que desta norma resulta quanto ao critério que deve presidir
à decisão judicial sobre o incidente de levantamento ou manutenção do efeito
suspensivo sobre o acto de adjudicação (ou sobre o contracto entretanto
celebrado).
Com
efeito, e por um lado, se atentarmos na parte final do nº2 e no nº4 deste
preceito, aí se prescreve que o efeito suspensivo é levantado quando,
ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados, «os danos que
resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que
podem resultar do levantamento». Estas normas parecem apontar no sentido de que
o efeito suspensivo sobre o acto de adjudicação (ou sobre o contrato) deve cair
sempre que os prejuízos dele decorrentes para o interesse público e para os
interesses dos contra-interessados sejam superiores aos danos que podem advir
para o impugnante com a celebração (ou execução) do contracto, isto
independentemente da demonstração da gravidade da lesão do interesse público ou
dos interesses dos contra-interessados (que não é pressuposto do levantamento).
Importa
ter em conta que a primeira parte do nº2 do art. 103º-A não pretende regular o
critério da decisão do incidente em causa- o seu objectivo é exigir que a lesão
do interesse público decorrente da suspensão do procedimento seja devidamente alegada
e demonstrada pela entidade adjudicante, através da invocação e prova de factos
concretos que consubstanciem essa lesão [4].
No regime actual, o prejuízo para o interesse público não se presume, nem pode
ser invocado em abstracto.
Em
suma, em relação à questão do critério de decisão do incidente de levantamento
do efeito suspensivo, o art. 103º-A comporta o risco de ser aplicado de uma
forma que afectaria, em termos claramente desmedidos e desproporcionais, o
interesse público prosseguido pela entidade adjudicante e o interesse
subjectivo do contra-interessado. Contudo, diria que tal risco pode ser evitado
se interpretada a norma em causa em função da finalidade para que foi criada e
no sentido que melhor corresponda à obtenção do resultado que o legislador
pretende alcançar- à luz deste elemento teleológico, a referida norma tem de
ser interpretada no sentido de que o efeito suspensivo é levantado quando os danos
que resultariam da suspensão da celebração e execução do contracto sejam
superiores aos que podem decorrer dessa execução para o requerente, não sendo
pressuposto imprescindível desse levantamento a prévia demonstração de que a
manutenção do efeito suspensivo geraria um prejuízo particularmente grave para
o interesse público ou para o interesses do adjudicatório.
Por
fim, um quarto aspecto do regime do incidente de levantamento do efeito
suspensivo que merece ponderação prende-se com os efeitos do recurso
jurisdicional das decisões de levantamento do efeito suspensivo automático[5].
Trata-se
de matéria que não é regulada directamente no art. 103º-A, CPTA- mas sim, no
art. 143º do mesmo Código, que incide sobre os efeitos dos recursos-, não deixando,
porém, de ter uma importância prática muito relevante na aplicação do incidente
passivo naquele preceito, pelo que se justifica plenamente a sua análise nesta
sede. O art.143º estabelece, como regra geral, que os recursos ordinários têm
um efeito suspensivo da decisão recorrida (nº 1), impondo aos sujeitos
processuais que, no decurso do recurso, se comportem como se essa decisão não tivesse
sido emitida. A lei estabelece, contudo, três excepções: i) recursos de
intimações para protecção dos direitos, liberdades e garantias, ii) nas decisões
respeitantes a processos cautelares e respectivos incidentes e iii) nas decisões
proferidas por antecipação do juízo sobre a causa principal no âmbito de
processos cautelares (nº 2).
Parece
justificar-se uma interpretação extensiva da expressão “decisões relativas a
processos cautelares e respectivos incidentes”, prevista no art. 143º/2/b), por
forma a integrar nesse segmento as decisões dos incidentes de levantamento do
efeito suspensivo previstas no 103º-A.
O
incidente de levantamento desse efeito, previsto no nº2 do mesmo preceito, é,
pois, um incidente que se suscita no âmbito de uma tutela cautelar, pelo que se
justifica a expressão “decisões relativas a processos cautelares e respectivos
incidentes”, prevista no art.142º/2/b), CPTA, seja interpretada- à luz do
pensamento legislativo que lhe subjaz- no sentido de abranger as decisões
respeitantes a tal incidente.
Em
suma, ao não adaptar a redacção do art. 143º/2/b), CPTA à nova realidade
decorrente da consagração neste código de um efeito cautelar ex lege (como é aquele previsto no
103º-A/1), o legislador abriu caminho para que não seja reconhecido efeito
devolutivo aos recursos das decisões judiciais de levantamento do efeito
suspensivo automático.
Ora,
fazer perdurar um efeito suspensivo do acto de adjudicação mesmo quando um
tribunal já se pronunciou no sentido de que ele é susceptível de causar danos
significativos, é uma solução claramente desproporcional, a meu ver. Uma solução
que, diria, pode ser afastada por via interpretativa, aplicando-se o 143º/2/b),
CPTA, por forma a nele abranger as referidas decisões relativas ao incidente de
levantamento do efeito suspensivo automático.
Em
síntese, o art.103º-A, CPTA, tendo alcançado o objectivo de garantir a
confirmação do direito processual nacional com a Directiva 2007/66/CE, não
logrou, contudo, instituir um regime de regulação provisória dos interesses
envolvidos nas acções de impugnação de actos de adjudicação que assegure que
esses interesses não são afectados de forma desproporcional.
Bibliografia:
Almeida, de Aroso Mário, Breve Apontamento sobre algumas alterações
ao código de Processo nos Tribunais Administrativos previstas na Proposta de
Lei nº168/XIII, in Iniciativas Legislativas de reforma do processo
administrativo e Tributário (e-book), Lisboa; ICJP, 2019, pp.73-78;
Almeida, de Aroso Mário e
António Cadilha, Comentário ao código de
Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2017,
pp. 837-838 e 841;
Cadilha, Carlos Fernandes/
António, O Contencioso Pré-Contratual e o
regime de Invalidade dos contractos Públicos, Coimbra, Almedina, 2013,
pp.77-85;
Caldeira, M., Brevíssimos tópicos sobre a aplicação da lei
o tempo- a propósito da revisão do CPTA e do “novo” regime do contencioso
Pré-contratual, e-Pública II/2 (2015), pp. 272-286;
Silva, Duarte Rodrigues, O levantamento do efeito suspensivo
automático no contencioso pré-contratual in Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, nº1,
2016, p. 12.
[1] Cadilha,
Carlos, O Contencioso Pré-Contratual e o
regime de Invalidade dos Contractos Públicos, Coimbra, 2013, páginas 63 e
ss..
[2] Para além do da exigência de 1
mês que resulta do art.101º.
[3] Como sucede nos casos de ajuste
directo por motivos de urgência imperiosa.
[4] A intenção normativa é a de
diferenciar claramente este regime daquele que vigorava no quadro prévio à
reforma introduzida pelo DL nº 214-G/2015: nesse âmbito, sempre que se requeria
a suspensão de eficácia de um acto de adjudicação, era aplicável a suspensão
automática de efeitos que decorria do 128º/1, CPTA, mas a Administração podia
emitir uma resolução fundamentada invocando que a paralisação do procedimento
pré-contractual era gravemente prejudicial para o interesse público, e isso era
suficiente para que o efeito suspensivo fosse levantado, podendo o contracto
ser celebrado.
[5] No passado dia 17 de Novembro de
2019 entrou em vigor o DL 118/2019, que procedeu à redefinição do âmbito de
incidência do efeito suspensivo automático associado à propositura de acções administrativas
urgentes de contencioso pré-contratual que tenham por objecto a impugnação de
actos de adjudicação. Contudo, a entrada da lei nº 118/2019 não comportou
nenhuma alteração propriamente dita a propósito destas questões, mas antes
meras alterações de redacção que, não obstante clarificadoras, não modificaram
verdadeiramente o status quo ante.
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