Monday, 16 December 2019

O Efeito Suspensivo automático da impugnação de actos de adjudicação (artigo 103º-A do CPTA)- Inês Duarte Silva


O efeito Suspensivo automático da impugnação de actos de adjudicação (artigo 103º-A do CPTA)

O presente comentário centra-se no artigo 103º-A do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, novidade resultante da reforma do Contencioso Administrativo introduzida pelo DL nº214-G/2015, de 2/10, que, como é assumido no preâmbulo deste diploma, tem por objectivo conformar o direito processual nacional com a Directiva 2007/66/CE, de 11 de Dezembro de 2007 (segunda Directiva “Recursos”).

Esta Directiva procurou corrigir ou atenuar a situação de défice de tutela jurisdicional dos participantes em procedimentos de contratação pública, em particular no que respeita à possibilidade de impugnação, em momento útil, do acto decisivo deste tipo de procedimentos (o acto de adjudicação). 
Neste sentido, centrou especial atenção numa prática das entidades adjudicantes que se considerou particularmente nociva para o objectivo de garantir o efectivo cumprimento do direito de contratação pública: a tendência para essas entidades, após a adjudicação, procederem rapidamente à celebração do contracto público visado, por forma a evitar a que uma eventual acção judicial possa ter consequências relevantes sobre o desfecho do procedimento adjudicatório (fenómeno que ficou conhecido por “corrida à assinatura do contrato”). 
Com efeito, sabendo que, após essa celebração, uma acção desse tipo muito dificilmente redundaria numa decisão de invalidação do contracto público e que, portanto, o único “risco” que corriam era o de eventualmente virem a ser condenados a pagar uma indemnização-condenação que dificilmente seria em montante elevado e que, em qualquer caso, só sucederia muito tempo depois, dada a morosidade dos processos indemnizatórios, tais entidades tinham um incentivo a precipitarem a celebração do contracto, frustrando, assim, a integral tutela judicial dos concorrentes (porventura ilegalmente) preteridos.

Foram estas as circunstâncias que, em grande medida, motivaram a Directiva 2007/66/CE, conduzindo o legislador europeu a introduzir um conjunto de inovações destinadas a reforçar a efectividade dos mecanismos de tutela contenciosa, de modo a garantir que estes estejam efectivamente disponíveis num momento prévio à celebração do contracto e que as entidades adjudicantes não possam livremente restringir a sua eficácia, conseguindo, através da simples celebração antecipada do contracto, evitar o pleno alcance de tutela jurisdicional[1].

Uma dessas inovações, plasmada no art.2º/3, da Directiva 89/665/CEE, consiste na obrigatoriedade de os Estados-Membros atribuírem um efeito suspensivo automático à dedução de uma pretensão jurisdicional contra o acto de adjudicação, assim se procurando garantir que, sendo judicialmente contestada a legalidade de um acto deste tipo, o facto jurídico que por regra torna mais dificilmente reversíveis as suas consequências (a celebração do contracto) não é praticado sem que exista uma prévia pronuncia de um órgão jurisdicional sobre tal pretensão.

Perante as exigências formuladas no art.2º/3, da Directiva 89/665/CEE (tal como alterada pela Directiva 2007/66/CE), o direito nacional anterior à reforma do CPTA não se revelava conforme, neste ponto, com o direito da União Europeia. Com efeito, mesmo admitindo a aplicabilidade dos mecanismos previstos nos arts. 128º e 131º daquele Código ao contencioso pré-contractual, tais instrumentos eram insuficientes para assegurar que, sendo deduzida uma pretensão jurisdicional contra o acto de adjudicação, o contracto não podia ser celebrado sem que, previamente, o Tribunal se pronunciasse sobre tal pretensão: no caso do art.128º, porque a suspensão automática dos efeitos do acto de adjudicação, decorre da citação da interposição de uma providência cautelar de suspensão de eficácia desse acto, poderia cessar mediante a emissão pela própria entidade adjudicante de uma resolução fundamentada, podendo o contracto ser celebrado de imediato; no caso do art. 131º, porque a atribuição de efeito suspensivo não era automática, tendo antes de ser decretada a título de tutela cautelar pelo Tribunal, o que não permitia evitar que, entre o momento em que se requer o decretamento provisório da suspensão de eficácia do acto de adjudicação no momento em que tal providência é decretada, existisse um hiato temporal em que é possível e legítima a celebração do contracto.

O art. 103º-A pretende corrigir esta situação. A opção do legislador foi a de interligar a produção do efeito suspensivo da acção principal de impugnação do acto de adjudicação. Tal não significa, contudo, que este efeito suspensivo cesse necessariamente apenas e só no momento em que esta acção venha eventualmente a ser julgada improcedente, uma vez que, consciente que tal solução se poderia revelar problemática do ponto de vista da prossecução do interesse público subjacente ao contracto público em formação, o legislador previu a possibilidade de levantamento do efeito suspensivo automático através de um incidente processual próprio, regulado nos nºs 2, 3 e 4 deste art. 103º-A.

A questão que se coloca, e que este artigo visa solucionar, é a de saber se a solução concretamente encontrada para assegurar essa conformidade com o direito europeu permite, simultaneamente, garantir um justo equilíbrio entre os vários interesses em confronto no momento da prática de um acto de adjudicação, ou seja, os interesses dos concorrentes preteridos no procedimento pré-contratual, o interesse público que o contracto visa satisfazer e, por fim, o interesse do adjudicatário.

Diria que existem quatro aspectos do regime previsto no art. 103º-A em relação aos quais o equilíbrio não é assegurado, sendo afectados, de forma desmedida e desproporcional, alguns desses interesses.

Em primeiro lugar, prende-se com os pressupostos de aplicação do efeito suspensivo automático.
A opção do legislador, bem vincada no texto do nº1 do art.103º-A, foi a de que qualquer impugnação judicial de um acto de adjudicação faz suspender a respectiva eficácia, não sendo necessário que essa impugnação seja apresentada num determinado prazo[2].

Assim, a lei não exige, que para que o efeito suspensivo automático se produza, que a impugnação do acto de adjudicação se faça no decurso do prazo de «standstill», isto é, enquanto estiver a vigorar o período suspensivo procedimental que em regra medeia entre a adjudicação e a celebração do contracto público. Na verdade, o art.103º-A do CPTA não exige sequer que o pedido de impugnação do acto de adjudicação seja deduzido antes da celebração do contracto- é isso que resulta da parte final do nº1 daquele preceito, em que se estabelece que, mesmo que o contracto já tenha sido celebrado no momento em que a entidade adjudicante é citada da interposição da acção de contencioso pré-contractual, o efeito suspensivo ainda assim se produz, ficando tal entidade, nesse caso, obrigada a suspender a execução do contracto.

Esta opção, não sendo explicitamente contrária à Directiva, revela-se desconforme com a lógica do sistema de termos suspensivos por ela implementado, não assegurando o tratamento equilibrado dos diversos interesses em presença.
Com efeito, a Directiva procurou reforçar a eficácia dos recursos pré-contractuais através da previsão de um complexo de termos suspensivos mínimos que devem decorrer antes que seja possível a entidade adjudicante celebrar o contracto em causa.

Um segundo aspecto que o regime do art. 103º-A parece criticável tem a ver com o facto de o efeito suspensivo automático nele previsto poder ser desencadeado mesmo naquelas situações em que inexiste, por parte da entidade adjudicante, a obrigação de respeitar o prazo de «standstill».

Com efeito, o CCP consagra, no art.104º, nº2 algumas excepções à regra de que um contracto público só pode ser celebrado decorridos pelo menos 10 dias desde a notificação da decisão de adjudicação aos concorrentes: tal impedimento inexiste, podendo o contracto ser imediatamente celebrado, i) quando não tenha sido publicado no Jornal Oficial da União Europeia; ii) quando esteja em causa um contracto celebrado ao abrigo de quadros cujos termos abranjam todos os seus aspectos ou que tenha sido outorgado apenas com uma entidade; ou iii) quando tenha sido apresentada apenas uma proposta.

Em todas estas situações, o legislador reconheceu que, atendendo ao tipo de procedimentos que estão em causa e aos interesses que importa acautelar, não é adequado sujeitar a Administração à proibição de celebrar o contracto logo após a prática do acto de adjudicação. A imediata outorga e início de execução do contracto é, pois, nestas circunstâncias, uma prática totalmente legítima, coberta pela lei e, em algumas circunstâncias- como nos ajustes directos por motivo de urgência imperiosa,-uma actuação imprescindível para que as necessidades colectivas prosseguidas através dos contractos em causa não saiam irremediavelmente ou gravemente prejudicadas.

Ora, neste quadro, não parece haver qualquer justificação para que, não tendo o legislador procedimental fixado uma obrigação de «standstill», venha mais tarde o legislador processual prever que o contracto que foi de boa-fé celebrado pela entidade adjudicante e adjudicatário pode afinal ter a sua eficácia paralisada pela mera propositura de uma acção judicial de impugnação da adjudicação (paralisação que durará, pelo menos, por todo o período de tempo necessário à decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo).

Em suma, a possibilidade de o efeito suspensivo automático previsto no art.103º-A do CPTA funcionar em situações em que, à partida, não existe obrigação de «standstill», permitindo a paralisação da execução de contractos que foram legitimamente celebrados e cuja execução imediata pode até ser imprescindível para a prossecução das tarefas administrativas às quais tais contractos estão funcionalizados [3], é uma opção legislativa que não garante um justo equilíbrio entre todos os interesses em jogo nos procedimentos de formação de contractos públicos.

Uma terceira crítica que deve ser feita à redacção do art.103º-A, prende-se com a indefinição que desta norma resulta quanto ao critério que deve presidir à decisão judicial sobre o incidente de levantamento ou manutenção do efeito suspensivo sobre o acto de adjudicação (ou sobre o contracto entretanto celebrado).

Com efeito, e por um lado, se atentarmos na parte final do nº2 e no nº4 deste preceito, aí se prescreve que o efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados, «os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do levantamento». Estas normas parecem apontar no sentido de que o efeito suspensivo sobre o acto de adjudicação (ou sobre o contrato) deve cair sempre que os prejuízos dele decorrentes para o interesse público e para os interesses dos contra-interessados sejam superiores aos danos que podem advir para o impugnante com a celebração (ou execução) do contracto, isto independentemente da demonstração da gravidade da lesão do interesse público ou dos interesses dos contra-interessados (que não é pressuposto do levantamento).

Importa ter em conta que a primeira parte do nº2 do art. 103º-A não pretende regular o critério da decisão do incidente em causa- o seu objectivo é exigir que a lesão do interesse público decorrente da suspensão do procedimento seja devidamente alegada e demonstrada pela entidade adjudicante, através da invocação e prova de factos concretos que consubstanciem essa lesão [4]
No regime actual, o prejuízo para o interesse público não se presume, nem pode ser invocado em abstracto.

Em suma, em relação à questão do critério de decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo, o art. 103º-A comporta o risco de ser aplicado de uma forma que afectaria, em termos claramente desmedidos e desproporcionais, o interesse público prosseguido pela entidade adjudicante e o interesse subjectivo do contra-interessado. Contudo, diria que tal risco pode ser evitado se interpretada a norma em causa em função da finalidade para que foi criada e no sentido que melhor corresponda à obtenção do resultado que o legislador pretende alcançar- à luz deste elemento teleológico, a referida norma tem de ser interpretada no sentido de que o efeito suspensivo é levantado quando os danos que resultariam da suspensão da celebração e execução do contracto sejam superiores aos que podem decorrer dessa execução para o requerente, não sendo pressuposto imprescindível desse levantamento a prévia demonstração de que a manutenção do efeito suspensivo geraria um prejuízo particularmente grave para o interesse público ou para o interesses do adjudicatório.

Por fim, um quarto aspecto do regime do incidente de levantamento do efeito suspensivo que merece ponderação prende-se com os efeitos do recurso jurisdicional das decisões de levantamento do efeito suspensivo automático[5].

Trata-se de matéria que não é regulada directamente no art. 103º-A, CPTA- mas sim, no art. 143º do mesmo Código, que incide sobre os efeitos dos recursos-, não deixando, porém, de ter uma importância prática muito relevante na aplicação do incidente passivo naquele preceito, pelo que se justifica plenamente a sua análise nesta sede. O art.143º estabelece, como regra geral, que os recursos ordinários têm um efeito suspensivo da decisão recorrida (nº 1), impondo aos sujeitos processuais que, no decurso do recurso, se comportem como se essa decisão não tivesse sido emitida. A lei estabelece, contudo, três excepções: i) recursos de intimações para protecção dos direitos, liberdades e garantias, ii) nas decisões respeitantes a processos cautelares e respectivos incidentes e iii) nas decisões proferidas por antecipação do juízo sobre a causa principal no âmbito de processos cautelares (nº 2).

Parece justificar-se uma interpretação extensiva da expressão “decisões relativas a processos cautelares e respectivos incidentes”, prevista no art. 143º/2/b), por forma a integrar nesse segmento as decisões dos incidentes de levantamento do efeito suspensivo previstas no 103º-A.

O incidente de levantamento desse efeito, previsto no nº2 do mesmo preceito, é, pois, um incidente que se suscita no âmbito de uma tutela cautelar, pelo que se justifica a expressão “decisões relativas a processos cautelares e respectivos incidentes”, prevista no art.142º/2/b), CPTA, seja interpretada- à luz do pensamento legislativo que lhe subjaz- no sentido de abranger as decisões respeitantes a tal incidente.

Em suma, ao não adaptar a redacção do art. 143º/2/b), CPTA à nova realidade decorrente da consagração neste código de um efeito cautelar ex lege (como é aquele previsto no 103º-A/1), o legislador abriu caminho para que não seja reconhecido efeito devolutivo aos recursos das decisões judiciais de levantamento do efeito suspensivo automático.

Ora, fazer perdurar um efeito suspensivo do acto de adjudicação mesmo quando um tribunal já se pronunciou no sentido de que ele é susceptível de causar danos significativos, é uma solução claramente desproporcional, a meu ver. Uma solução que, diria, pode ser afastada por via interpretativa, aplicando-se o 143º/2/b), CPTA, por forma a nele abranger as referidas decisões relativas ao incidente de levantamento do efeito suspensivo automático.

Em síntese, o art.103º-A, CPTA, tendo alcançado o objectivo de garantir a confirmação do direito processual nacional com a Directiva 2007/66/CE, não logrou, contudo, instituir um regime de regulação provisória dos interesses envolvidos nas acções de impugnação de actos de adjudicação que assegure que esses interesses não são afectados de forma desproporcional.


Bibliografia:
Almeida, de Aroso Mário, Breve Apontamento sobre algumas alterações ao código de Processo nos Tribunais Administrativos previstas na Proposta de Lei nº168/XIII, in Iniciativas Legislativas de reforma do processo administrativo e Tributário (e-book), Lisboa; ICJP, 2019, pp.73-78;
Almeida, de Aroso Mário e António Cadilha, Comentário ao código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 837-838 e 841;
Cadilha, Carlos Fernandes/ António, O Contencioso Pré-Contratual e o regime de Invalidade dos contractos Públicos, Coimbra, Almedina, 2013, pp.77-85;
Caldeira, M., Brevíssimos tópicos sobre a aplicação da lei o tempo- a propósito da revisão do CPTA e do “novo” regime do contencioso Pré-contratual, e-Pública II/2 (2015), pp. 272-286;
Silva, Duarte Rodrigues, O levantamento do efeito suspensivo automático no contencioso pré-contratual in Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, nº1, 2016, p. 12.










[1] Cadilha, Carlos, O Contencioso Pré-Contratual e o regime de Invalidade dos Contractos Públicos, Coimbra, 2013, páginas 63 e ss..
[2] Para além do da exigência de 1 mês que resulta do art.101º.
[3] Como sucede nos casos de ajuste directo por motivos de urgência imperiosa.
[4] A intenção normativa é a de diferenciar claramente este regime daquele que vigorava no quadro prévio à reforma introduzida pelo DL nº 214-G/2015: nesse âmbito, sempre que se requeria a suspensão de eficácia de um acto de adjudicação, era aplicável a suspensão automática de efeitos que decorria do 128º/1, CPTA, mas a Administração podia emitir uma resolução fundamentada invocando que a paralisação do procedimento pré-contractual era gravemente prejudicial para o interesse público, e isso era suficiente para que o efeito suspensivo fosse levantado, podendo o contracto ser celebrado.
[5] No passado dia 17 de Novembro de 2019 entrou em vigor o DL 118/2019, que procedeu à redefinição do âmbito de incidência do efeito suspensivo automático associado à propositura de acções administrativas urgentes de contencioso pré-contratual que tenham por objecto a impugnação de actos de adjudicação. Contudo, a entrada da lei nº 118/2019 não comportou nenhuma alteração propriamente dita a propósito destas questões, mas antes meras alterações de redacção que, não obstante clarificadoras, não modificaram verdadeiramente o status quo ante.

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