Hoje, a alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF) atribui aos tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal a jurisdição para a apreciação de litígios que tenham por
objeto questões relativas a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e
interesses legalmente protegidos.
Assim, têm os tribunais administrativos jurisdição na proteção de direitos,
liberdades e garantias, os quais podem ser defendidos através de uma das modalidades
de processos urgentes previstas no artigo 97.º e seguintes do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), incluindo a intimação para a
defesa de direitos liberdades, prevista no artigo 109.º a 111.º CPTA.
1. Enquadramento histórico da
intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Embora a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias
tenha sido introduzida no CPTA com a reforma de 2002/2004, a verdade é que
encontramos a sua origem na revisão constitucional de 1989, em que se tentou
introduzir o recurso de amparo.
Na altura, com este mecanismo procurava-se criar uma ação constitucional de
defesa contra ações ou omissões dos poderes públicos violadoras de direitos,
liberdades e garantias e, ainda, de decisões jurisdicionais, mas esta tentativa
revelou-se infrutífera, ficando apenas para a história o n.º 5 do artigo 20.º
da Constituição da República Portuguesa (CRP), preceito que garante processos
judiciais céleres para se obter uma tutela efetiva e em tempo útil.
De facto, embora já existissem mecanismos de tutela eficaz contra violações
de direitos, liberdades e garantias no processo penal e civil, ao tempo o mesmo
não acontecia no processo administrativo.
Assim, no Anteprojeto do CPTA previu-se, em concreto no artigo 114.º, uma
via processual para a defesa de direitos, liberdades e garantias pessoais, isto
em concretização do previsto no n.º 4 do 268.º da CRP após a revisão
constitucional de 1997.
Em causa, no n.º 1 do artigo 114.º estava consagrada uma modalidade
urgentíssima de tutela cautelar que prescindia do contraditório, isto quando “de outro modo, não possam exercer-se em
tempo útil ou quando entenda haver especial urgência na adopção de medidas
cautelares”, podendo para o efeito “
o interessado pedir a decretação provisória da providência”.
Já no n.º 3, ainda do mesmo artigo previa-se que, “analisada a petição, o juiz ou relator, se reconhecer a possibilidade
de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou garantia pessoal
invocada, ou outra situação de especial urgência, poderá, no prazo de 48 horas,
colhidos os elementos a que tenha acesso imediato, sem quaisquer outras
formalidades ou diligências, decretar provisoriamente a providência requerida
ou a que julgue mais adequada”.
Esta tentativa, ao contrário do que tinha acontecido no passado, revelou-se
bem-sucedida, tendo a intimação para proteção de direitos, liberdades e
garantias sido prevista no atual artigo 119.º do CPTA, ainda que com algumas
diferenças em relação ao projeto inicial.
Em face do exposto e em primeiro lugar, podemos afirmar que, ao contrário
do que estava previsto no Anteprojeto, o processo de intimação hoje consagrado se
trata de um meio processual autónomo e não apenas de uma modalidade urgente da
tutela cautelar, como resultava do Anteprojeto.
Em segundo lugar, esta garantia acabou por ser prevista com maior amplitude,
abrangendo não só direitos, liberdades e garantias pessoais, como também os
direitos de participação política e os dos trabalhadores, ou seja, os direitos
fundamentais de natureza análoga como previsto no artigo 17.º CRP.
2. O
atual regime do processo urgente de intimação para proteção de direitos,
liberdades e garantias.
O processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias
está previsto no 109.º e seguintes do CPTA e pode ser requerido sempre que seja
necessária a célere emissão de uma decisão de mérito para assegurar o exercício
de um direito, liberdade ou garantia, isto quando não seja suficiente, ou
possível, o decretamento de uma providência cautelar.
Ou seja, sendo um dos seus requisitos de aplicação a necessidade de não
estar disponível outro tipo de meio processual, podemos assim concluir que se
trata de um processo subsidiário face ao decretamento provisório de uma
providência cautelar (previsto no artigo 131.º do CPTA) mas que do qual se
distingue.
O decretamento provisório de uma providência cautelar urgente, caracteriza-se
por ser instrumental e provisório face ao processo principal, que também será um
processo cautelar. O resultado do decretamento provisório apenas vigorará
durante a própria pendência do processo cautelar, sendo certo que, concluído o
processo principal, o juiz decidirá se a providência se mantém, o que não se verifica
no âmbito da intimação.
Tal como resulta do final do artigo 109.º do CPTA, a intimação só deve ser
utilizada quando não seja suficiente, ou possível, a utilização da providência
para tutelar o direito em causa. Cabe, então, ao juiz avaliar estes dois
critérios de impossibilidade e insuficiência em face do caso concreto; i.e., o
julgador deve avaliar a possibilidade do exercício do direito, mais tarde, se
atribuída providência cautelar.
Mais, a urgência da ação é também demonstrada pela previsão de situações de
especial urgência em que é reconhecida a possibilidade de lesão iminente e
irreversível do direito, liberdade e garantia.
É neste âmbito que se estabelece a urgência moderada do n.º 3 do 110.º do
CPTA, que permite a redução do prazo para a resposta do requerido. Esta urgência
distingue-se da urgência ordinária do n.º 2 do artigo 110.º do CPTA, que dá ao requerido
o prazo de sete dias para responder ao pedido e ao juiz cinco dias para
decidir, da urgência especial prevista no n.º 2 do artigo 111.º a qual pode
justificar que o juiz encurte o prazo do requerido e da urgência
extraordinária, levando o magistrado judicial a optar pela audiência oral na
qual decide o próprio pedido[1].
Já a mencionada lesão iminente e irreversível corresponde a um critério de
indispensabilidade da ação em causa. Assim é necessária uma ponderação dos
valores e direitos em causa, pois a concessão da intimação para a proteção de
direitos, liberdades e garantias também irá corresponder à possível ofensa de
direitos da mesma natureza de outros sujeitos[2].
Mais, é ainda de referir que se trata de um processo que tanto pode ser
dirigido contra a Administração, como contra particulares, designadamente concessionários,
visando impor tanto a adoção de uma conduta positiva como de uma conduta
negativa.
Trata-se assim esta ação, de um importante instrumento de tutela
jurisdicional, cujo campo de aplicação, como explica Mário Aroso de Almeida[3],
tanto pode abranger situações em que a tutela do direito fundamental se dirige
à emissão de ato administrativo, quer as situações em que ela se substitui a
uma ação de impugnação de ato administrativo (ou norma regulamentar).
Tal como é mencionado na Exposição de Motivos do CPTA, este é um
instrumento que “se procurou desenhar com
uma grande elasticidade, que o juiz deverá dosear em função da intensidade da
urgência”, ou seja, os seus requisitos não devem ser interpretados de forma
restritiva.
3. A possibilidade de
convolação do processo urgente de intimação para proteção de direitos,
liberdades e garantias em providência cautelar.
Uma questão relevante no domínio do processo urgente de intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias é a possibilidade de convolação da
ação de intimação em providência cautelar.
Esta é uma possibilidade prevista no artigo 110.º - A que foi aditado com a
revisão de 2015 do CPTA, mas até ao momento da introdução desta previsão
normativa constituía uma vexata quaestio
tanto na doutrina como na jurisprudência, pelo que a ela se faz uma breve
referência.
Até 2015 não era difícil encontrar acórdãos que defendiam que a convolação,
na altura, oficiosa devia ser rejeitada por força do princípio do dispositivo[4].
Mais, era referido que, se o legislador não tinha consagrado tal hipótese, como
fez em sede cautelar no 121.º do CPTA, então não tinha o intérprete-aplicador
da lei o papel e a legitimidade de a aplicar.
No entanto, outros autores referiam que tinha de ser aceite em nome do
princípio pro actione previsto no
artigo 7.º do CPTA e da tutela jurisdicional efetiva prevista no 2.º do CPTA[5],
pois a convolação implicaria um maior acesso aos tribunais administrativos.
Facto é que a polémica acabou com a previsão do referido 110.º - A, norma
que veio estabelecer que, quando as circunstâncias do próprio caso não
justifiquem o decretamento de uma intimação e seja suficiente uma providência
cautelar, o juiz pode fixar prazo para o autor substituir a petição.
E assim acabou por prevalecer a jurisprudência e a doutrina maioritária.
No entanto, não deixa de ser problemático o facto da hipótese de convolação
depender do impulso do autor.
Mais, nesta sede coloco ainda a seguinte questão: não acaba por ser um
contrassenso o facto de ser necessário, para instaurar o processo de intimação,
a impossibilidade de recorrer a outros mecanismos, para mais tarde se permitir
a convolação do mesmo? Parece-me que, com tal previsão, um dos grandes
objetivos do processo de intimação acaba por ser colocado em causa.
4. A proteção do particular
contra atos com origem na União Europeia: será o processo de intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias a solução?
O n.º 4 do artigo 8.º da CRP estabelece que tanto os tratados que regem a
União Europeia, como as normas emanadas das suas instituições, são aplicáveis
na ordem jurídica interna portuguesa nos termos definidos pelo próprio Direito
da União Europeia (DUE).
Assim, uma questão a ser colocada é se o particular pode requerer a intimação
para a proteção de direitos, liberdades e garantias contra atos europeus.
Com efeito, a possibilidade de intimação de tais atos é justificada pela
tutela jurisdicional efetiva do particular, mas encontra alguma oposição no
princípio da cooperação leal, o qual determina que os Estados-Membros da União
Europeia não só devem tomar as medidas necessárias para cumprirem as suas
obrigações decorrentes do DUE, como também estão obrigados a fornecer os meios
necessários para facilitar o cumprimento da missão e o alcance dos objetivos da
UE.
Assim, a resposta à pergunta da possibilidade de intimação sobre atos
comunitários não se torna fácil.
Uma possibilidade seria facilitar que o tribunal administrativo, em sede de
tal processo, recorresse ao mecanismo das questões prejudiciais, previsto no
artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
No entanto, o recurso ao 267.º do TFUE acabaria por comprometer um dos
objetivos do processo urgente de intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias: a celeridade.
Assim, a solução pode passar pelo final do n.º 4 do artigo 8.º da CRP: se o
ato comunitário violar os princípios fundamentais do Estado de Direito
democrático não será aplicável em Portugal, pelo que nem será necessário
recorrer ao processo de intimação.
5. Conclusão
Em comparação com outros mecanismos existentes no Contencioso
Administrativo e Tributário, a intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias é jovem, mas tem um espaço próprio no processo
administrativo[6].
O legislador inovou quando deu cumprimento ao previsto no n.º 5 do artigo
do 20.º da CRP, nomeadamente ao não restringir o âmbito de aplicação deste
mecanismo aos direitos, liberdades e garantias pessoais.
No entanto, a intimação ainda não é a via normal para utilizar em situação
de lesão de direitos, liberdades e garantias. Na verdade, ela procura garantir
a tutela jurisdicional efetiva através da celeridade processual e, nesse
âmbito, é fundamental; mas fruto da sua ainda pouca aplicação, a sua utilidade
prática é ainda diminuta.
Assim, a providência cautelar, com quem a intimação tem uma relação de
subsidiariedade, faz dela não um regime excecional, de ultima ratio, a ser utilizada apenas quando a situação do
particular pode ser considerada “desesperada”.
6. Bibliografia
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 3 de março de 2011, proc.
07141/11.
Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul de 30 de setembro de 2004, proc.00270/04.
ANDRADE, José Carlos Vieira de - A
Justiça Administrativa, 17.ª ed., Coimbra: Edições Almedina, 2019.
ALMEIDA, Mário de Aroso – Manual de
Processo Administrativo, 2.ª ed.. Coimbra: Edições Almedina, 2016.
ALMEIDA, Mário de Aroso e CADILHA, Carlos Alberto - Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, Coimbra:
Edições Almedina, 2005.
BOTELHO, Catarina Santos - A intimação para a proteção de direitos, liberdades
e garantias – Quid novum?, in: O Direito,
Ano 143, I, 2011.
GOMES, Carla Amado - Uma revisão previsível: a convolação do processo de
intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias em providência
cautelar (artigo 110.º-A do Anteprojeto de revisão do CPTA) In: O Anteprojeto de Revisão do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em debate, Ana Fernanda Neves, Carla Amado Gomes
e Tiago Serrão (coord.), 2014.
___________________ - Pretexto, contexto e texto da intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias In: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles,
vol. V, 2003.
PAÇÃO, Jorge - Breve reflexão sobre o novo regime de convolação da
intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias em processo
cautelar In: O Anteprojeto de Revisão do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em debate, 2014.
Carolina de Carvalho e Oliveira Batista, aluna n.º 56867
[1] ALMEIDA,
Mário de Aroso – Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed.. Coimbra: Edições
Almedina, 2016, p.393.
[2] ALMEIDA, Mário de Aroso e CADILHA, Carlos Alberto - Comentário ao Código de Processo dos
Tribunais Administrativos, Coimbra: Edições Almedina, 2005, pag.539.
[3] ALMEIDA,
Mário de Aroso – Manual de Processo
Administrativo, 2.ª ed.. Coimbra: Edições Almedina, 2016.
[4] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 3 de março de 2011,
proc. 07141/11.
[5] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 30 de setembro de
2004, proc.00270/04.
[6] Gomes, Carla Amado - Pretexto, contexto e texto da
intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias In: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor
Inocêncio Galvão Teles, vol. V, 2003, p.27.
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