Wednesday, 18 December 2019

Análise da figura do efeito suspensivo automático - Uma forma de salvaguarda da legalidade do contencioso pré-contratual?

Análise da figura do efeito suspensivo automático - Uma forma de salvaguarda da legalidade do contencioso pré-contratual?

Ricardo Serra nº26122

Com a reforma do CPTA de 2015, o conceito bipolar das formas de processo foi posto de parte, tendo por sua vez sido adotada a ação administrativa única, prevista no artigo 35º do CPTA, a qual consiste na unificação das ações administrativas comum e especial, que resultou na génese de uma relação processual própria em sede de contencioso administrativo, aproximando-o do direito processual civil. 
Da reforma, resultaram também um novo meio processual urgente – os procedimentos de massa, assim como a atribuição dum efeito suspensivo por mera decorrência legal, como consequência da impugnação do ato de adjudicação relativo a contratos nomeadamente de empreitada de obras públicas, contratos públicos de fornecimento e contratos públicos de serviços (previstos na Diretiva Recursos 2007/66/CE), assim como os previstos no artigo 100º do CPTA. 
Esta alteração legislativa foi o resultado da tardia transposição por parte do Estado Português das Diretivas Recursos[1], as quais tinham por fim a implementação de um efeito suspensivo automático à impugnação dos atos de adjudicação, como prevê o ponto 5.2. do preâmbulo do DL nº214-G/2015, de 2 de Outubro. Anteriormente à transposição, o CPTA de 2002 não previa nenhuma disposição relativamente a processos urgentes de contencioso pré-contratual, tal como não havia nenhuma previsão no sentido de suster uma decisão adjudicatória, sendo a alternativa mais próxima do concorrente uma providência cautelar de suspensão da eficácia do ato. 
Feita esta introdução e sendo possível concluir a existência desta figura no atual CPTA e a sua razão de ser, cabe-nos apreciar o seu conteúdo, os seus efeitos e por fim a sua utilidade. 

O que é?
 

O efeito suspensivo automático encontra-se previsto no artigo 103º-A do CPTA e figura-se como um efeito que pode ser acionado em sede de contencioso pré-contratual, o qual é uma forma de processo urgente, como resulta dos artigos 36º/1, c) e 100º e 
ss do CPTA. O contencioso pré-contratual compreende assim nos termos do nº1 do artigo 100º do CPTA, as ações de impugnação ou de condenação à prática de atos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços. Este efeito consiste na suspensão de uma determinada situação jurídica ou processual, impedindo que a situação afetada produza efeitos até que se verifique a condição de que faz depender o fim desse impedimento. Por outras palavras, o efeito suspensivo é uma paralisação superveniente de efeitos de um ato jurídico, não podendo este produzir quaisquer efeitos enquanto a paralisação subsiste. 

Para que serve?
 

Os contratos públicos são celebrados pela Administração Pública. Esta frase levanta algumas particularidades, visto que o conceito de contrato tem uma raiz fortemente civilística, de direito privado. Atuando a Administração Pública no âmbito do direito público, foi necessário encontrar um conjunto de princípios que se mostrassem idóneos a orientar esta figura, entre os quais: o princípio da igualdade; o princípio da concorrência; o princípio da transparência (todos eles previstos no artigo 1º/4 do CCP); o princípio da boa fé (artigos 76º, 79º e 105º do CCP); o princípio da colaboração recíproca (artigo 289º do CCP); e o princípio da conexão material e da proporcionalidade das prestações contratuais (artigo 281º do CCP). Sendo a finalidade dos contratos a sua devida execução, deverá ser antes desta que os vícios contratuais são devidamente apurados e se possível sanados. Foi esta a lógica do legislador ao atribuir aos interessados meios de tutela eficazes a combater a ilegalidade das condutas das entidades adjudicantes, afastando ao mesmo tempo uma solução de mera tutela indemnizatória ao promover a legalidade da atuação das entidades adjudicantes em sede de contratação pública.
 

Porque é que se afigura automático?
 

Para este efeito se dar, basta o preenchimento dos requisitos previstos no nº1 do artigo 103º-A do CPTA, não havendo qualquer imputação de um ónus a quem impugna, verificando-se assim um verdadeiro efeito suspensivo 
ope legisEstamos então perante uma obrigação legal de standstill[2], ou seja, de não dar continuidade à adjudicação aquando de um procedimento ou execução de um contrato público, até que este efeito seja levantado nos termos do nº4 do artigo 103º-A do CPTA, tutelando-se assim os interesses dos concorrentes e garantindo a prossecução do interesse público por parte da entidade adjudicante, podendo este efeito também ser levantado pela entidade demandada ou pelos contrainteressados nos termos do nº2 do mesmo artigo, podendo o autor contestar o levantamento nos termos do nº3. 
Verificados os pressupostos que acionam a suspensão, cabe saber quando é que a obrigação de não atuar, ou por outras palavras de congelar a adjudicação se constitui. Esta constitui-se, nos termos do artigo 128º/1 do CPTA, ou seja, após a citação, visto ser a partir deste momento que a entidade adjudicante tem conhecimento do processo de impugnação contratual, assegurando por sua vez um processo justo, proporcional e transparente. A citação é realizada nos termos do artigo 246º do CPC. 

Qual a sua duração?
 

No que diz respeito à duração da suspensão, a Lei não faz referência a qualquer limite, definindo o 103º-A apenas as condições nas quais o efeito opera, as suas formas de levantamento e o prazo de contestação por parte do autor ao levantamento previsto no nº2. Na falta de previsão do CPTA a este respeito, há que recorrer à Diretiva 2007/66/CE, mais especificamente ao artigo 2º/3, o qual prevê que a suspensão opera enquanto a ação administrativa de contencioso pré-contratual urgente estiver pendente, cessando apenas com uma decisão definitiva por parte ou de um Tribunal Administrativo de Círculo sob a forma de caso julgado, ou de uma instância superior[3].
 Caso sejam praticados quaisquer atos durante a subsistência da suspensão, esses atos devem ser considerados como ineficazes, não produzindo assim quaisquer efeitos, por aplicação analógica do artigo 128º/4 do CPTA. 

Como e quando se extingue?
 

O levantamento do efeito suspensivo automático depende da verificação cumulativa de dois requisitos. Em primeiro lugar, é necessária a alegação e prova por parte da entidade demandada ou dos contrainteressados de grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas manifestamente desproporcionais para outros interesses devolvidos, não bastando a existência de mera 
prejudicialidade para o interesse público. Em segundo, é necessário ponderar todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade, não bastando meras consequências desproporcionadas. É o que resulta no fundo do nº4 do artigo 103º-A, conjugado com o previsto no artigo 120º/2 do CPTA, devendo sempre esta apreciação ser feita em termos concretos, verificando-se aqui novamente uma manifestação do princípio da transparência, não existindo, contudo, um “molde analítico”, devendo ser cada caso apreciado por si só, através de uma análise casuística, observando-se os fatos subjacentes à situação jurídica em apreço. 
Postulando a ideia de que o prejuízo deve ser acima do normal, deve o julgador optar por ponderar entre os danos e prejuízos causados com a subsistência da suspensão e os danos e prejuízos causados com o levantamento da mesma. 

Considerações finais
 

Esta recente figura revela uma evolução sobretudo positiva do contencioso pré-contratual urgente, incorporando uma tutela jurisdicional efetiva
[4] dos particulares. Contudo, esta figura poderá suscitar alguns problemas, nomeadamente ao nível da proporcionalidade e da tutela da confiança. A existência deste mecanismo pode causar um repúdio à contratação pública já que a suspensão dos efeitos previstos no contrato é suscetível de gerar instabilidade jurídica, ao tornar as posições jurídicas das partes numa situação de imprevisibilidade material e tempestiva, e económica afetando o mercado ao pôr em causa a celeridade da adjudicação. Existe ainda o risco desta figura ser utilizada como um meio de estratégia processual, a fim de dilatar o processo adjudicatório com o intuito de prejudicar a contraparte. 
Não obstante, tal como referi anteriormente, considero que esta figura é um passo no sentido certo. É um passo na aproximação dos particulares que lidam com entidades públicas ao promover a transparência e a participação dos interessados no processo administrativo, assim como na garantia da correta execução dos contratos, esforçando-se por garantir que ambas as partes beneficiam da relação mútua sem que nenhuma saía lesada, matéria essa que também é de interesse público, princípio basilar da atuação da Administração Pública.

Referências Bibliográficas:

PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª Edição;
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017;
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa, Almedina, 10ª Edição;
- CADILHA, Carlos Alberto Fernandes; e CADILHA, António, O Contencioso Pré-Contratual e o regime de Invalidade dos Contratos Públicos, Almedina, 2013;
- CADILHA, Carlos Alberto Fernandes; e AROSO DE ALMEIDA, Mário, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2018, 4ª Edição;
- CELESTE CARVALHO, Ana, A Reforma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Funchal, 2015, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/fich-pdf/cpa/ana_celeste_carvalho.pdf.

Notas de rodapé:

[1]
Diretiva 89/665 CEE; Diretiva 92/13/CEE; Diretiva 2007/66/CE.[2]Nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva: “Se não houver standstill, o contencioso dos contratos torna-se contencioso da responsabilidade civil, pois das duas uma, se o particular celebra um contrato com a administração e a administração tem de pôr termo ao contrato, tem de haver uma indemnização”.
[3]É este o entendimento dos Profs. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha.
[4]
Artigo 2º do CPTA

No comments:

Post a Comment

OS PROCESSOS URGENTES

Mariana Bernardo Catalino (24895) O CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL Considerando as diversas alterações ao CPTA, através do DL n...