Mariana Bernardo Catalino (24895)
O CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
Considerando
as diversas alterações ao CPTA, através do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro e
da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, irei analisar o regime do contencioso
pré-contratual.
Começando
pelas pretensões, o contencioso pré-contratual assentava na impugnação de actos
administrativos, sendo que com as alterações ao DL nº 214-G/015 se dispõe
expressamente que o meio processual comporta tanto acções de impugnação como as
acções de condenação à prática de actos administrativos.
A
cumulação de pedidos, nos termos do nº3 do artigo 4º, do CPTA, é admitida mesmo
quando um dos pedidos corresponde a uma das formas da acção administrativa urgente.
Atentando
ao âmbito, a que se refere o artigo 100º, no seu número 1, do CPTA, o regime do
contencioso pré-contratual urgente compreende actualmente, acções que incidam
sobre actos relativos à formação de contratos de concessão de serviços
públicos. Neste sentido, a Directiva 89/665/CEE, do Conselho, de 21 de Dezembro
de 1989, encontra aplicabilidade, nos termos do artigo 1º, nº1, aos contratos a
que se refere a Directiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de
28 de Março de 2014 e às concessões adjudicadas por entidades adjudicantes, presentes
na Directiva 2014/23/UE.
Não
são, portanto, admissíveis os processos judiciais que compreendam actos relativos
à formação de contratos não abrangidos no artigo 100º, nº 1, do CPTA. É neste
âmbito que Pedro Melo e Maria Ataíde Cordeiro questionam o regime aplicável no
caso em que se trate de um processo relativo à formação de contrato misto, havendo
uma divergência doutrinária neste âmbito: há quem defenda aplicabilidade do “regime
da componente mais relevante, nomeadamente do ponto de vista económico e financeiro”,
e quem defenda que “existindo prestações contratuais enquadráveis nos contratos
previstos no art. 100º, nº 1, do CPTA, deve observar-se o regime do contencioso
pré-contratual”[1]
No entanto, a posição deste autores vai no sentido de aplicar o regime
pré-contratual urgente, justificando-o por “elementares razões de prudência”.
Em
questões de prazo e de legitimidade, não se verificam alterações, pelo que se
mantém o prazo de um mês, que se aplica tanto às acções de impugnação como às
de condenação à prática do acto devido. No entanto, outra questão que é suscitada
na doutrina[2]
e na jurisprudência[3]
tem que ver com o prazo de um mês ser aplicável à impugnação de actos
administrativos nulos, e que tem apontado para uma resposta afirmativa, entendem
os autores[4] que se a resposta fosse negativa
haveria o legislador de concretizar e referir expressamente. Contra esta
posição, excluindo o contencioso dos actos nulos do artigo 101º, do CPTA estão Maria
João Estorninho, Pedro Costa Gonçalves, André Salgado de Matos e muitos outros
autores[5]. Haveria que atender ao
artigo 101º, do CPTA e a remissão para o disposto no artigo 58º, nº3, do CPTA,
o constante do nº1 do artigo 58º, que estabelece que a impugnação de actos
nulos pode ser sujeita a prazo, bem como o artigo 162º, nº2, do CPA e o artigo 283º,
nº1, do CCP.
Com
a remissão presente no artigo 101º, do CPTA, para os artigos 59º e 60º do CPTA,
permite-se a flexibilização do prazo através dos mecanismos do artigo 58º, nº 3,
do CPTA, estabelecendo-se o início da contagem do prazo no artigo 59º, nº1 a 3,
do CPTA. A suspensão do prazo ocorre em caso de utilização de meios de impugnação
administrativa, nos termos do nº 4 e 5 do artigo supra mencionado.
O
critério de legitimidade introduzido no âmbito dos processos de contencioso
pré-contratual encontra-se consagrado no artigo 101º, do CPTA. Cabe referir a
este propósito que, a legitimidade para intentar uma acção de impugnação se
afere através do artigo 55º, do CPTA, e a legitimidade para intentar uma acção
de condenação à prática do acto devido segue o disposto no artigo 68º, do CPTA.
No
que diz respeito à tramitação, segue a mesma que a acção administrativa, nos
termos dos artigos 78º a 96º, do CPTA, ainda que se deva atender às
especificidades do artigo 102º, do CPTA, que aliás não sofreram alterações.
Quanto
à impugnação dos documentos conformadores do procedimento, regulado no artigo 103º,
do CPTA , e alvo de revisão assente na necessidade de solucionar questões que anteriormente
não eram expressamente esclarecidas e que contribuíam para a incerteza, introduz-se
uma ressalva: a impugnação dos documentos conformadores do procedimento rege-se
pelo disposto no artigo 102º, do CPTA. O pedido de declaração de ilegalidade pode
ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no
procedimento de formação do contrato, conforme dispõe o artigo 103º, nº2, do
CPTA. A este propósito, Marco Caldeira pronuncia-se acerca do critério de
legitimidade adoptado, referindo que o mesmo é muito restritivo, no sentido de
que se baseia na legitimidade activa à participação ou interesse na
participação do autor no procedimento pré-contratual, excluindo outros casos em
que o autor não poderia participar no procedimento, ou de terceiros que tenham
interesse na revogação da decisão de contratar e num novo procedimento
pré-contratual.[6]
O
pedido de impugnação pode ser deduzido durante a pendência do procedimento a
que os documentos se reportem, atendendo ao nº 3 do artigo 103º, do CPTA, sendo
que estando em causa um acto administrativo de aplicação de uma norma
procedimental ilegal deve cumprir-se o prazo estabelecido no artigo 101º, do
CPTA. O nº4 do artigo 103º, do CPTA, no qual se estabelece que pode ser
deduzida impugnação dos regulamentos que tenham por objecto conformar mais do
que um procedimento de formação de contratos, rege-se pelos artigos 72º a 77º,
do CPTA.
Outra
alteração feita na revisão tem que ver com a consagração do efeito suspensivo
automático e adopção de medidas provisórias, previsto no artigo 103º-A, do CPTA,
transpondo-se a Directivas-Recursos, no seu artigo 2º, nº3. Seguindo o disposto
nos artigos 100º e seguintes, suscita-se a questão de saber o momento a partir
do qual se deve considerar o acto suspenso. Os autores[7] defendem que a suspensão
se deve iniciar quando a entidade demandada e os contrainteressados tomarem
conhecimento da propositura da acção, operando portanto, com o acto de citação.
O
levantamento do efeito suspensivo, sobre o qual dispõe o artigo 103º-A, no seu
nº 2, pode ser requerido pela entidade demandada e pelos contrainteressados,
sob pena de afectar o interesse público e outros interesses envolvidos,
conforme esclarece o nº4 do referido artigo. Em matéria de prazos, e uma vez
que este não se encontra expressamente consagrado, deve atender-se ao disposto
no artigo 102º, nº3, alínea c), do CPTA, correspondendo o mesmo a cinco dias.
Neste sentido, dispõe o autor de sete dias para responder, findos os quais o
juiz profere decisão, à luz do nº4 do artigo 103º-A.
Alguns
autores pronunciaram-se a este propósito, nomeadamente Rodrigo Esteves de
Oliveira, entendendo ser preferível optar-se por uma suspensão determinada pelo
autor, pressupondo-se a existência de um direito potestativo que implicaria a
pretensão de requerer a suspensão “sem necessidade de fundamentação ou
justificação”. Discutia a doutrina a questão de saber se o efeito suspensivo poderia
ser afastado através da adopção de medidas provisórias “menos gravosa para os
interesses em jogo”[8].
Defendeu Rodrigo E. Oliveira que a resposta seria afirmativa. É de concordar
com o referido por Duarte Rodrigues Silva que considera infeliz a redacção do nº4
do artigo 103º-A, sustentando para tal o facto de se exigir um “juízo
ponderativo de comparação entre interesses” que colide com o juízo exigido pela
Directiva-Recursos. Referir ainda que este autor rejeita a interpretação que “absolutize
o conceito indeterminado de gravemente prejudicial em detrimento da necessária
ponderação entre os vários interesses em presença”[9].
Já
o artigo 103º-B está pensado para acções de contencioso pré-contratual em que
não se aplique ou não tenha sido levantado o efeito suspensivo automático sobre
o qual dispõe o artigo 103º-A. Nesses casos, pode o autor requerer ao juiz a
adopção de medidas provisórias, numa lógica de “tutela cautelar especial”,
visto que se pretende assegurar que o mesmo não corre o risco de se ter constituído
uma situação de facto consumado no momento em que a sentença venha a ser
proferida, ou ainda de ser impossível retomar o procedimento pré-contratual, atendendo-se
ao princípio do contraditório e à natureza urgente do processo, conforme os nºs
1 e 2 do artigo 103º-B.
Os
recursos nos processos urgentes sobre os quais dispõem os artigos 140º e
seguintes, do CPTA, não apresentam alterações. No entanto, tendo em conta as
alterações feitas aos artigos 40º do ETAF – que se traduz no funcionamento dos
tribunais administrativos de círculo com juiz singular - e 27º, nº1, do CPTA –
nos termos do qual os poderes do relator apenas se aplicam a processos em
primeiro grau de jurisdição em tribunais superiores. Admite-se recurso
jurisdicional directo de sentenças proferidas nos tribunais administrativos de
círculo para os tribunais superiores.
Por
fim, aferindo a questão da arbitragem de actos pré-contratuais, importa fazer
referência ao artigo 180º, do CPTA, no qual se exige no nº2 que, quando existam
contrainteressados estes aceitem o compromisso arbitral.
BIBLIOGRAFIA
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Mário Aroso de; CADILHA, Carlos “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos”, Almedina, 2018
CADILHA;
António; CADILHA, Carlos, “O Contencioso Pré-contratual e o Regime de
Invalidade dos Contratos Públicos” – Perspectivas Face à Directiva 2007/77/CE
(Segunda Directiva «Meios Contenciosos», Almedina, 2013
CALDEIRA,
Mário, “Estudos sobre o Contencioso Pré-contratual”, Almedina, 2017
CALDEIRA,
Mário, “Novidades no domínio do contencioso pré-contratual”, in Colecção
Formação Contínua, 2017
LEITÃO,
Alexandra, “O novo contencioso pré-contratual: em especial, o âmbito de
aplicação e o prazo de propositura da acção”, in O Anteprojecto de
Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos
Tribunais Administrativos em Debate
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Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio
sobre as acções no novo procedimento administrativo”, 2ª edição, Almedina
WEBGRAFIA
https://www.servulo.com/pt/investigacao-e-conhecimento/As-alteraces-ao-regime-de-contencioso-pre-contratual-do-CPTA/6710/
[1] Pedro Melo, Maria Ataíde Cordeiro,
“O regime do contencioso pré-contratual urgente”, in Comentários à Revisão do
ETAF e do CPTA, p. 658
[2] Mário Caldeira, “Novidades no
domínio do contencioso pré-contratual”, p. 157; Alexandra Leitão, “O novo
contencioso pré-contratual: em especial, o âmbito de aplicação e o prazo de
propositura da acção”, in O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos em
Debate, p. 192
[3] A jurisprudência tem entendido que
o artigo 101º, do CPTA, comporta tanto actos administrativos anuláveis, como
actos administrativos nulos e inexistentes, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal
Administrativo, Processos nº 0598/06, de 3 de Outubro de 2006, 0598/06, de 6 de
Fevereiro de 2007; do Tribunal Central Administrativo Sul, Processos nº
01213/05, de 12 de Janeiro de 2006, 00645/05, de 21 de Abril de 2005
[4] Pedro Melo, Maria Ataíde Cordeiro,
“O regime do contencioso…”, p. 661
[5] Vide Carlos Fernandes Cadilha e
António Cadilha, “O Contencioso Pré-contratual e o Regime de Invalidade dos
Contratos Públicos” – Perspectivas Face à Directiva 2007/77/CE (Segunda Directiva
«Meios Contenciosos», Almedina, 2013 – p.201; Rodrigo
Esteves de Oliveira, “O contencioso urgente da contratação pública”, in
Cadernos de Justiça Administrativa, nº 78, Novembro/Dezembro 2009, p. 10
[6] Mário Caldeira, “Novidades no
domínio do contencioso pré-contratual”, p. 167
[7] Pedro Melo, Maria Ataíde Cordeiro,
“O regime do contencioso…”, p. 672
[8] Mário Caldeira, “O novo contencioso
pré-contratual”, 2017
[9]
Vide o Acórdão do Tribunal de Justiça,
de 18 de Julho de 2007, Ministero dell’Industria, del Commercio e
dell’Artigianato c. Lucchini SpA, proc. C-119/05, n.º 60
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