A legitimidade dos particulares no
contencioso administrativo e tributário:
Bernardo
Freitas aluno nº: 56732
Enquanto
que no processo civil é intuitivo orientar-se o contencioso, reconhecendo a existência
de um autor e de um réu, para além de se reconhecer aos particulares
legitimidade para surgir em tribunal em igualdade com as outras partes, o mesmo
nem sempre sucedeu no contencioso administrativo e tributário. O “pecado
original” que levou o contencioso administrativo a surgir enquanto corpo
teórico autoritário, tornou possível que a construção da legitimidade dos
particulares para acederem aos tribunais fosse inicialmente uma construção
norteada por referências doutrinárias objetivistas que só foram ultrapassadas à
medida que o contencioso foi lidando com os seus “traumas de infância”, acabando
por adotar um crescente subjetivismo. O professor Vasco Pereira da Silva, foi um
dos autores da doutrina portuguesa que mais contribui-o para que a legitimidade,
enquanto requisito do acesso dos particulares aos tribunais, fosse construída em
moldes que colocassem de lado o passado autoritário da administração[1]. Com isto, o contencioso
passou a reconhecer definitivamente a existência de uma “bipolaridade”, entre o
particular e a administração. Por sua vez, o Professor Francisco Paes Marques
aprofundou ainda mais este avanço na doutrina do direito administrativo[2] ao referir-se pela
primeira vez à noção de conflitos entre particulares no contencioso
administrativo e tributário, construindo, a partir daqui o conceito de “multipolaridade”
na noção de legitimidade das partes. Neste texto procurei fazer uma descrição
das várias correntes que foram sendo apresentadas para compreender o requisito
da legitimidade dos particulares, mas sem fazer referências aos avanços mais
recentes relativos à construção de uma noção de multipolaridade. Também não
serão tidos em linha de conta as matérias relativas aos “cointeressados”.
Tal
como já foi referido, a construção que foi inicialmente atribuída à noção de
legitimidade evidência influências de um objetivismo como forma de entender o
contencioso administrativo e tributário. Os primeiros esboços de uma distinção
entre um referencial doutrinário objetivista e um outro subjetivista, tiveram
como base a noção de poderes do juiz[3]. Foi o autor Aucoc que nas
suas “Conferences sur làdministration et le droit administratif” fez uma
primeira exposição deste debate, sendo mais tarde seguido por Lafferière em “
Traté de la juridiction Administrative et des Recours Contentieux”. Para estes
dois autores a diferença entre um contencioso objetivista e um contencioso
subjetivista decorreria da matéria sobre a qual incide o processo e os poderes
consequentemente atribuídos ao juiz: o contencioso objetivista procuraria
versar sobre um ato administrativo enquanto que o contencioso subjetivista
procuraria versar sobre direitos subjetivos. Atualmente, as distinções entre os
dois modelos de contencioso também estão relacionadas com a função que cada
contencioso procura satisfazer: enquanto que o contencioso objetivista visa, em
primeira linha, a defesa da legalidade e do interesse público, o subjetivismo
procura, pelo contrário tutelar as posições jurídicas individualizadas dos
particulares. A opção por qualquer um destes modelos tem impactos na forma como
é entendida a construção do requisito da legitimidade relativamente ao acesso
dos particulares aos tribunais administrativos e tributários. Tal como sublinha
o professor Vasco Pereira da Silva” Uma análise (…) subjetivista deve começar
por estudar a posição dos particulares e não da administração no processo”[4]. A compreensão
subjetivista do requisito da legitimidade, quando aplicado aos particulares,
depende do reconhecimento de situações de vantagem destes mesmos particulares
face à administração pública. Assim o tratamento dos particulares como partes
iguais à administração pública no âmbito do processo depende do abandono
definitivo dos modelos que permitem a existência de uma administração
autoritária. Segundo o professor Vasco Pereira da Silva:” O entendimento do
particular como titular de posições jurídicas substantivas face à administração
vai implicar uma mudança radical do modo de considerar a legitimidade
processual”[5]
Existem,
no total, seis teorias para a compreensão do requisito da legitimidade[6]. Tendo em vista a temática
sobre a qual versa este texto procurei apresentar sumariamente as teses de cada
uma destas construções teóricas, dando conta das críticas que foram sendo
formuladas contra as doutrinas inspiradas no objetivismo e, entretanto,
ultrapassadas pelo direito administrativo.
A
primeira doutrina para a compreensão da legitimidade foi formulada por,
Laferrière, Hauriou e Guicciardi. Para esta corrente de pensamento o
particular, na sua intervenção no processo, não seria mais do que um mero
auxiliar da administração. Isto porque, os defensores desta tese entendem que
estando a administração não apenas vinculada a um dever de cumprir com o princípio
da legalidade, mas também a um dever secundário que a obrigava a ter em
consideração a prossecução do interesse público, o particular a ajudaria a
compreender a existência de situações em que estivesse em causa o interesse
público. Logo o interesse do particular na matéria a ser decidida seria o que
lhe permitiria a participação no processo em tribunal. Para além disso o não
reconhecimento de uma legitimidade dos particulares serviria para garantir uma
melhor economia dos recursos e do tempo do tribunal ao evitar que este se visse
obrigado em ter em conta as situações dos particulares enquanto eventuais
partes em igualdade com a administração. Entre os autores da doutrina
portuguesa esta tese foi seguida por Rui Machete[7]. A principal razão pela
qual esta doutrina foi proscrita na compreensão do processo administrativo está
relacionada com a forma como ignora a possibilidade de serem consagradas
situações jurídicas subjetivas face à administração. Em última análise, esta
doutrina simplesmente não é aceitável numa administração pública que exista no
quadro de um estado de direito democrático, por ser tão dispare do pensamento
político que lhe está subjacente.
Segue-se
a doutrina formulada por, Bonnard, Barthélemy, e Walter Jellinek, seguida na
doutrina Portuguesa por Marcello Caetano[8]. O professor Rui Machete,
no artigo que redigiu para os estudos de homenagem a Marcello Caetano,
refere-se expressamente à importância que a reflexão sobre o requisito da
legitimidade no contencioso administrativo e tributário sempre ocupou no
pensamento jurídico de Marcello Caetano. Sumariando as posições desta doutrina,
importa sublinhar que para estes autores, qualquer posição jurídica subjetiva de
que o particular venha a ser titular e pela qual pretenda comparecer em
tribunal deve ter por base um direito objetivo prévio. Esta doutrina entende,
por esta razão, que aquilo de que o particular se pode socorrer é de um direito
à legalidade no qual a garantia da sua posição subjetiva tenha por principal
propósito a garantia do direito objetivo do qual decorra a situação do
particular. Os críticos desta tese entendem que o direito à legalidade seria um
direito sem sujeito, uma vez que em lugar de existirem titulares da norma
devidamente delimitados, exige-se pelo contrário que essa delimitação seja
feita posteriormente aferindo esta titularidade a partir de uma ideia de
interesse na causa a ser decidia que, por isso, recai nos mesmos erros da
primeira doutrina.
A
terceira doutrina, foi formulada por Zanobini e Sandulli, baseando-se na
distinção entre os direitos subjetivos do particular e os denominados
interesses legítimos. Na doutrina portuguesa Freitas do Amaral, tomou posição a
favor desta doutrina[9]. Enquanto que os direitos
subjetivos são interpretados como algo que resulta direta e imediatamente de
uma norma jurídica os interesses legítimos são atribuídos de forma mediata e
reflexa, decorrentes de deveres assumidos pela administração pública. Esta
distinção tem a sua origem numa especificidade da história do direito italiano
relativo aos mecanismos utilizados para fazer a distribuição de competências
entre os tribunais. Segundo esta distribuição os tribunais comuns ficariam
encarregues de julgar as matérias relativas a direitos subjetivos e os
tribunais administrativos ficariam apenas encarregues das questões de legalidade
relacionadas com os interesses legalmente protegidos. Quando em 1923 começa a
surgir na ordem jurídica Italiana uma nova legislação que coloca de lado esta
forma de fazer a distribuição de competência entre os tribunais tornou-se
particularmente difícil continuar a encontrar argumentos para suportar esta
distinção reconduzível a contingências de um momento histórico específico. Nomeadamente, pode ser bastante complexo
perceber se a legislação atribui uma proteção direta a um bem jurídico do
sujeito, ou antes, uma proteção mediada. Também não se deve procurar explicar
as posições jurídicas dos particulares com base em normas que estando
relacionadas com deveres da administração pública estão relacionadas com o conceito
de interesse público na medida em que se poderia estar mais uma vez a
subalternizar a noção de garantia dos particulares a ascendentes autoritários da
administração.
A
quarta doutrina é inspirada nas primeiras noções formuladas relativamente à
distinção entre direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos e foi
formulada pelo jurista Nigro. Só que nesta interpretação a distinção entre
estas duas categorias está dependente da necessidade de existir ou não um
exercício de poder administrativo. Esta doutrina também resulta das contingências
históricas do direito italiano e com isso a forma como o direito italiano
ultrapassou esta distinção também coloca em causa a adequação dos fundamentos
basilares desta posição. A doutrina que faz depender a distinção destes dois
conceitos num exercício do poder da administração pública também se mostra
pouco adequada às realidades de uma administração prestadora. Nesta
administração, característica tanto do estado social e de estados pós-sociais,
existem uma grande quantidade de garantias atribuídas aos particulares que não
estão dependentes de exercícios de poder como acontece nos serviços
relacionados com a educação ou a saúde, por exemplo. Assim esta interpretação
do que justifica as posições de vantagem dos particulares face à administração e
a partir dai a sua legitimidade num processo administrativo revela-se
desadequada.
A
quinta doutrina foi cunhada por, Kornprobst, Laligant e Rouber Enterría,
defendo a necessidade de postular uma distinção entre direitos clássicos
considerados como activos e direitos eventuais ou futuros. Existiria um direito
eventual quando houvesse a interposição de um pedido em tribunal para proteger
um interesse que serve de incidência ou objeto do direito eventual. Esta
posição é criticada porque confunde o direito subjetivo previsto com a situação
da qual resulta a lesão deste direito.
A
sexta posição é a teoria da norma de protecção que não efectua nenhuma das
divisões que se verificam nas doutrinas inspiradas no ordenamento jurídico
Italiano e que trata de forma conjunta as situações jurídicas subjetivas que
devem ser protegidas.É a partir desta última tese que o professor Vasco Pereira da Silva construí a sua posição quanto à legitimidade. Também me parece que esta doutrina é a mais adequada. Esta ideia de existência de uma norma de proteção permite
estabelecer uma disposição atributiva de direitos subjetivos dos particulares
face à administração pública. Isto porque, o reconhecimento desta norma garante
uma vinculação da administração face a um conjunto de garantias dos
particulares, que atribui benefícios a pessoas determinadas ou determináveis,
mesmo que os beneficiários sejam aferidos por via da interpretação. Por último
esta norma também é garantida jurisdicionalmente pela hipótese de recurso ao
tribunal com o propósito de sindicar o desrespeito das garantias dos
particulares por parte da administração. Neste julgamento as partes têm de ser
consideradas como iguais, ou seja administração e particulares tem de ser
tratados de forma equiparada. Assim, esta doutrina fundamenta a existência de
posições de vantagem dos particulares face à administração enquadrando-se, por
isso, na lógica do estado de direito e ao mesmo tempo fundamenta a legitimidade
dos particulares de fazerem vales as posições garantidas por esta norma de
proteção através da formulação de um pedido em tribunal ou por qualquer outro
meio processual previsto.
[2]
Marques, Francisco Paes, Conflitos entre Particulares no Contencioso
Administrativo
[5]
Silva, Vasco Pereira, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares pp.
122
[6]
Silva, Vasco Pereira, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares pp.
84
[7]
Machete, Rui, Contribuição para o estudo das relações entre o processo administrativo
gracioso e contencioso
[8]
Caetano, Marcello sobre o problema da legitimidade das partes no contencioso
administrativo português .
[9]
Machete, Rui, Estudos em homenagem ao professor Marcello Caetano, pp. 611 a 612
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