Wednesday, 18 December 2019

A legitimidade dos particulares no contencioso administrativo e tributário:


A legitimidade dos particulares no contencioso administrativo e tributário:

Bernardo Freitas aluno nº: 56732
            Enquanto que no processo civil é intuitivo orientar-se o contencioso, reconhecendo a existência de um autor e de um réu, para além de se reconhecer aos particulares legitimidade para surgir em tribunal em igualdade com as outras partes, o mesmo nem sempre sucedeu no contencioso administrativo e tributário. O “pecado original” que levou o contencioso administrativo a surgir enquanto corpo teórico autoritário, tornou possível que a construção da legitimidade dos particulares para acederem aos tribunais fosse inicialmente uma construção norteada por referências doutrinárias objetivistas que só foram ultrapassadas à medida que o contencioso foi lidando com os seus “traumas de infância”, acabando por adotar um crescente subjetivismo. O professor Vasco Pereira da Silva, foi um dos autores da doutrina portuguesa que mais contribui-o para que a legitimidade, enquanto requisito do acesso dos particulares aos tribunais, fosse construída em moldes que colocassem de lado o passado autoritário da administração[1]. Com isto, o contencioso passou a reconhecer definitivamente a existência de uma “bipolaridade”, entre o particular e a administração. Por sua vez, o Professor Francisco Paes Marques aprofundou ainda mais este avanço na doutrina do direito administrativo[2] ao referir-se pela primeira vez à noção de conflitos entre particulares no contencioso administrativo e tributário, construindo, a partir daqui o conceito de “multipolaridade” na noção de legitimidade das partes. Neste texto procurei fazer uma descrição das várias correntes que foram sendo apresentadas para compreender o requisito da legitimidade dos particulares, mas sem fazer referências aos avanços mais recentes relativos à construção de uma noção de multipolaridade. Também não serão tidos em linha de conta as matérias relativas aos “cointeressados”.
            Tal como já foi referido, a construção que foi inicialmente atribuída à noção de legitimidade evidência influências de um objetivismo como forma de entender o contencioso administrativo e tributário. Os primeiros esboços de uma distinção entre um referencial doutrinário objetivista e um outro subjetivista, tiveram como base a noção de poderes do juiz[3]. Foi o autor Aucoc que nas suas “Conferences sur làdministration et le droit administratif” fez uma primeira exposição deste debate, sendo mais tarde seguido por Lafferière em “ Traté de la juridiction Administrative et des Recours Contentieux”. Para estes dois autores a diferença entre um contencioso objetivista e um contencioso subjetivista decorreria da matéria sobre a qual incide o processo e os poderes consequentemente atribuídos ao juiz: o contencioso objetivista procuraria versar sobre um ato administrativo enquanto que o contencioso subjetivista procuraria versar sobre direitos subjetivos. Atualmente, as distinções entre os dois modelos de contencioso também estão relacionadas com a função que cada contencioso procura satisfazer: enquanto que o contencioso objetivista visa, em primeira linha, a defesa da legalidade e do interesse público, o subjetivismo procura, pelo contrário tutelar as posições jurídicas individualizadas dos particulares. A opção por qualquer um destes modelos tem impactos na forma como é entendida a construção do requisito da legitimidade relativamente ao acesso dos particulares aos tribunais administrativos e tributários. Tal como sublinha o professor Vasco Pereira da Silva” Uma análise (…) subjetivista deve começar por estudar a posição dos particulares e não da administração no processo”[4]. A compreensão subjetivista do requisito da legitimidade, quando aplicado aos particulares, depende do reconhecimento de situações de vantagem destes mesmos particulares face à administração pública. Assim o tratamento dos particulares como partes iguais à administração pública no âmbito do processo depende do abandono definitivo dos modelos que permitem a existência de uma administração autoritária. Segundo o professor Vasco Pereira da Silva:” O entendimento do particular como titular de posições jurídicas substantivas face à administração vai implicar uma mudança radical do modo de considerar a legitimidade processual”[5]
            Existem, no total, seis teorias para a compreensão do requisito da legitimidade[6]. Tendo em vista a temática sobre a qual versa este texto procurei apresentar sumariamente as teses de cada uma destas construções teóricas, dando conta das críticas que foram sendo formuladas contra as doutrinas inspiradas no objetivismo e, entretanto, ultrapassadas pelo direito administrativo.
            A primeira doutrina para a compreensão da legitimidade foi formulada por, Laferrière, Hauriou e Guicciardi. Para esta corrente de pensamento o particular, na sua intervenção no processo, não seria mais do que um mero auxiliar da administração. Isto porque, os defensores desta tese entendem que estando a administração não apenas vinculada a um dever de cumprir com o princípio da legalidade, mas também a um dever secundário que a obrigava a ter em consideração a prossecução do interesse público, o particular a ajudaria a compreender a existência de situações em que estivesse em causa o interesse público. Logo o interesse do particular na matéria a ser decidida seria o que lhe permitiria a participação no processo em tribunal. Para além disso o não reconhecimento de uma legitimidade dos particulares serviria para garantir uma melhor economia dos recursos e do tempo do tribunal ao evitar que este se visse obrigado em ter em conta as situações dos particulares enquanto eventuais partes em igualdade com a administração. Entre os autores da doutrina portuguesa esta tese foi seguida por Rui Machete[7]. A principal razão pela qual esta doutrina foi proscrita na compreensão do processo administrativo está relacionada com a forma como ignora a possibilidade de serem consagradas situações jurídicas subjetivas face à administração. Em última análise, esta doutrina simplesmente não é aceitável numa administração pública que exista no quadro de um estado de direito democrático, por ser tão dispare do pensamento político que lhe está subjacente.
            Segue-se a doutrina formulada por, Bonnard, Barthélemy, e Walter Jellinek, seguida na doutrina Portuguesa por Marcello Caetano[8]. O professor Rui Machete, no artigo que redigiu para os estudos de homenagem a Marcello Caetano, refere-se expressamente à importância que a reflexão sobre o requisito da legitimidade no contencioso administrativo e tributário sempre ocupou no pensamento jurídico de Marcello Caetano. Sumariando as posições desta doutrina, importa sublinhar que para estes autores, qualquer posição jurídica subjetiva de que o particular venha a ser titular e pela qual pretenda comparecer em tribunal deve ter por base um direito objetivo prévio. Esta doutrina entende, por esta razão, que aquilo de que o particular se pode socorrer é de um direito à legalidade no qual a garantia da sua posição subjetiva tenha por principal propósito a garantia do direito objetivo do qual decorra a situação do particular. Os críticos desta tese entendem que o direito à legalidade seria um direito sem sujeito, uma vez que em lugar de existirem titulares da norma devidamente delimitados, exige-se pelo contrário que essa delimitação seja feita posteriormente aferindo esta titularidade a partir de uma ideia de interesse na causa a ser decidia que, por isso, recai nos mesmos erros da primeira doutrina.
            A terceira doutrina, foi formulada por Zanobini e Sandulli, baseando-se na distinção entre os direitos subjetivos do particular e os denominados interesses legítimos. Na doutrina portuguesa Freitas do Amaral, tomou posição a favor desta doutrina[9]. Enquanto que os direitos subjetivos são interpretados como algo que resulta direta e imediatamente de uma norma jurídica os interesses legítimos são atribuídos de forma mediata e reflexa, decorrentes de deveres assumidos pela administração pública. Esta distinção tem a sua origem numa especificidade da história do direito italiano relativo aos mecanismos utilizados para fazer a distribuição de competências entre os tribunais. Segundo esta distribuição os tribunais comuns ficariam encarregues de julgar as matérias relativas a direitos subjetivos e os tribunais administrativos ficariam apenas encarregues das questões de legalidade relacionadas com os interesses legalmente protegidos. Quando em 1923 começa a surgir na ordem jurídica Italiana uma nova legislação que coloca de lado esta forma de fazer a distribuição de competência entre os tribunais tornou-se particularmente difícil continuar a encontrar argumentos para suportar esta distinção reconduzível a contingências de um momento histórico específico.  Nomeadamente, pode ser bastante complexo perceber se a legislação atribui uma proteção direta a um bem jurídico do sujeito, ou antes, uma proteção mediada. Também não se deve procurar explicar as posições jurídicas dos particulares com base em normas que estando relacionadas com deveres da administração pública estão relacionadas com o conceito de interesse público na medida em que se poderia estar mais uma vez a subalternizar a noção de garantia dos particulares a ascendentes autoritários da administração.
            A quarta doutrina é inspirada nas primeiras noções formuladas relativamente à distinção entre direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos e foi formulada pelo jurista Nigro. Só que nesta interpretação a distinção entre estas duas categorias está dependente da necessidade de existir ou não um exercício de poder administrativo. Esta doutrina também resulta das contingências históricas do direito italiano e com isso a forma como o direito italiano ultrapassou esta distinção também coloca em causa a adequação dos fundamentos basilares desta posição. A doutrina que faz depender a distinção destes dois conceitos num exercício do poder da administração pública também se mostra pouco adequada às realidades de uma administração prestadora. Nesta administração, característica tanto do estado social e de estados pós-sociais, existem uma grande quantidade de garantias atribuídas aos particulares que não estão dependentes de exercícios de poder como acontece nos serviços relacionados com a educação ou a saúde, por exemplo. Assim esta interpretação do que justifica as posições de vantagem dos particulares face à administração e a partir dai a sua legitimidade num processo administrativo revela-se desadequada.
            A quinta doutrina foi cunhada por, Kornprobst, Laligant e Rouber Enterría, defendo a necessidade de postular uma distinção entre direitos clássicos considerados como activos e direitos eventuais ou futuros. Existiria um direito eventual quando houvesse a interposição de um pedido em tribunal para proteger um interesse que serve de incidência ou objeto do direito eventual. Esta posição é criticada porque confunde o direito subjetivo previsto com a situação da qual resulta a lesão deste direito.
            A sexta posição é a teoria da norma de protecção que não efectua nenhuma das divisões que se verificam nas doutrinas inspiradas no ordenamento jurídico Italiano e que trata de forma conjunta as situações jurídicas subjetivas que devem ser protegidas.É a partir desta última tese que o professor Vasco Pereira da Silva construí a sua posição quanto à legitimidade. Também me parece que esta doutrina é a mais adequada. Esta ideia de existência de uma norma de proteção permite estabelecer uma disposição atributiva de direitos subjetivos dos particulares face à administração pública. Isto porque, o reconhecimento desta norma garante uma vinculação da administração face a um conjunto de garantias dos particulares, que atribui benefícios a pessoas determinadas ou determináveis, mesmo que os beneficiários sejam aferidos por via da interpretação. Por último esta norma também é garantida jurisdicionalmente pela hipótese de recurso ao tribunal com o propósito de sindicar o desrespeito das garantias dos particulares por parte da administração. Neste julgamento as partes têm de ser consideradas como iguais, ou seja administração e particulares tem de ser tratados de forma equiparada. Assim, esta doutrina fundamenta a existência de posições de vantagem dos particulares face à administração enquadrando-se, por isso, na lógica do estado de direito e ao mesmo tempo fundamenta a legitimidade dos particulares de fazerem vales as posições garantidas por esta norma de proteção através da formulação de um pedido em tribunal ou por qualquer outro meio processual previsto.



[1] Silva, Vasco Pereira, Em Busca do Ato administrativo perdido

[2] Marques, Francisco Paes, Conflitos entre Particulares no Contencioso Administrativo

[5] Silva, Vasco Pereira, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares pp. 122

[6] Silva, Vasco Pereira, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares pp. 84

[7] Machete, Rui, Contribuição para o estudo das relações entre o processo administrativo gracioso e contencioso

[8] Caetano, Marcello sobre o problema da legitimidade das partes no contencioso administrativo português .

[9] Machete, Rui, Estudos em homenagem ao professor Marcello Caetano, pp. 611 a 612

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