Monday, 25 November 2019

Breve análise ao revolucionário regime da Ação de condenação à prática de ato devido


Pedro Henriques Martins, Nº 56586

A ação de condenação à prática de ato devido foi introduzida com a reforma de 2002 e veio pôr fim a um velho trauma de infância do contencioso administrativo, relativo à separação de poderes. Este trauma teve a sua origem no contencioso administrativo de tipo francês, onde se entendia que ao juiz apenas caberia anular atos da Administração, não podendo de forma alguma ordenar a Administração à prática de determinado ato, ou até condenar esta mesma. Reinava então uma conceção estrita do princípio da separação de poderes, em que se entendia que caso o Tribunal condenasse a Administração, estaria a tomar as suas funções administrativas, algo manifestamente violador do princípio enunciado. Havia, portanto, uma confusão entre o que correspondia à tarefa de julgar e o que correspondia à tarefa de administrar.

Um dos grandes problemas que derivavam deste velho trauma prendia-se com a falta de mecanismos de reação dos particulares perante omissões da Administração. Visto que, dada a conceção anteriormente explicitada, contra estas omissões acabava por não ser possível reagir, uma vez que não se estava perante um ato administrativo, que por sua vez permitisse aceder aos tribunais pedindo a sua anulação. A única forma de obter alguma tutela, no respeitante a estas situações, passava pela figura do indeferimento tácito, que ao contrário de hoje[i], era a regra em caso de falta de pronúncia administrativa. O que se fazia era interpretar o silêncio da Administração, aquando do fim do prazo disponível para se pronunciar sobre determinada pretensão, como um indeferimento tácito. Tal interpretação permitia ficcionar este silêncio como um ato administrativo de conteúdo negativo, podendo assim ser impugnado e pedida a sua anulação, o que representava um “expediente técnico-jurídico”[ii]. Existia então uma tutela bastante precária no tocante às omissões administrativas, um certo vazio jurídico que veio ser preenchido com as ações de condenação à prática do ato devido. Estas puseram fim ao trauma de infância, esvaziando “de função útil a figura do indeferimento tácito[iii] e levaram o contencioso até um novo patamar de proteção dos administrados, passando estes a ter uma forma adequada de reagir. Pode-se dizer que, “deixou de ser pressuposto de acesso à jurisdição administrativa a existência de atos administrativos passíveis de impugnação ou ficções destes”[iv]. Desta forma, cumpre-se o artigo 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP) garantindo-se uma tutela jurisdicional efetiva, pois cada interesse dos particulares, digno de proteção jurídica, encontra uma forma de tutela judicial correspondente. Hoje, julgar a Administração e condená-la à prática de atos administrativos, já não é visto como uma violação da separação de poderes no sentido do tribunal imiscuir-se na função administrativa, mas sim como tratando-se ainda de julgar. Passou-se então da mera anulação para a plena jurisdição, superando-se o trauma.

  •  Âmbito de aplicação


O regime da ação de condenação à prática de atos administrativos encontra respaldo nos artigos 66º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Da análise do artigo 66º nº 1 CPTA concluímos que estas ações podem ser utilizadas para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado. Esta distinção é importante para efeitos do pedido da ação, pois dependendo da modalidade em causa, variará o pedido formulado[v]. No caso dos atos administrativos omitidos, será pedida a condenação à emissão do ato administrativo omitido e no caso de recusa à prática de ato administrativo, o pedido será de condenação à produção de ato administrativo favorável, substituindo o anterior ato administrativo de recusa, desfavorável ao particular. Em qualquer dos casos, o que se pretende é a prática do ato devido, que VIEIRA DE ANDRADE classifica como “aquele acto administrativo que, na perspetiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma pura omissão, um indeferimento ou uma recusa[vi]. O mesmo Professor entende ainda que este ato “não tem de ser um acto estritamente vinculado perante a lei (um acto de conteúdo devido), podendo albergar momentos discrionários, desde que a sua emissão seja, nas circunstâncias do caso concreto, legalmente obrigatória”[vii]. Este entendimento é relevante, pois permite que a Administração seja também condenada à prática de atos devidos, de emissão obrigatória, no âmbito do seu poder discricionário, o que levanta outras questões que serão oportunamente abordadas.
Relativamente ao artigo 66º nº 2 CPTA, retiramos que o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória. O mesmo é dizer que o objeto do processo não é o ato administrativo, mas sim o direito a obter da Administração determinada conduta devida. Trata-se do direito subjetivo do particular à obtenção de determinado ato devido, cuja omissão ou recusa lesa a sua esfera jurídica. Deve então o tribunal apreciar a relação jurídica entre o particular e a Administração, não se restringindo à análise da omissão ou dos fundamentos de indeferimento do ato administrativo. Assim se explica o facto do artigo 71º nº 1 CPTA[viii] exigir a pronúncia do tribunal sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido, se for caso disso. Sendo ainda relevante para este entendimento o facto do artigo 70º CPTA vincar que o tribunal não se deve restringir à apreciação dos “factos ou comportamentos anteriores à abertura do processo, mas deve abarcar também os actos administrativos (total ou parcialmente) desfavoráveis, praticados na pendência da acção, uma vez que estes afetam aqueles mesmos direitos e aquela mesma relação jurídica que foi trazida a juízo”[ix]. Devem desta forma os poderes do juiz “ir tão longe quanto o exigirem os direitos dos particulares necessitados de tutela”[x].

  •  Pressupostos


O artigo 67º nº 1 CTPA exige, para a condenação à prática do ato administrativo, um procedimento prévio de iniciativa do interessado, regra geral um requerimento com a pretensão de obtenção da prática de ato administrativo, e que constitua o órgão competente no dever de decidir. Posto isto, para ser pedida a ação, é necessária a verificação de uma das seguintes situações[xi]:
      i.         Omissão da prática desse ato requerido, no prazo legalmente estabelecido, desde que a lei não ligue essa inércia a outras consequências, como o deferimento tácito[xii], alínea a). Tem por objeto situações de incumprimento do dever de decidir, artigo 13º do Código de Procedimento Administrativo;
    ii.         Recusa da prática do ato devido, indeferimento expresso da pretensão, alínea b), 1ª parte. Nestes casos pode causar estranheza a sua inclusão no âmbito da condenação à prática do ato devido, tendo em conta que se podia simplesmente impugnar essa recusa. A justificação prende-se com o facto de “a pretensão do particular não ser eliminar o ato de indeferimento do ordenamento jurídico – até porque isso deixa-o na mesma posição jurídica em que se encontrava antes -, mas sim obter o que pretendia inicialmente, pedindo para tal, que a Administração seja condenada a praticar o ato devido”[xiii];
   iii.         Recusa de apreciação do requerimento, alínea b), 2ª parte;
   iv.         Pratica de ato administrativo de conteúdo positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado, alínea c), indeferimento parcial.
Há, no entanto, situações que não exigem a apresentação de requerimento pelo particular:
   v.           Situação em que não tenha sido cumprido o dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei, artigo 67º nº 4 a). Entende-se que tem de existir um atraso manifesto e desrazoável para se poder invocar este preceito;
   vi.         Situação do particular que pretenda a substituição do conteúdo de um ato administrativo positivo, artigo 67º nº 4 b), ou seja, não basta uma mera impugnação para satisfazer direitos e interesses do particular.

  •     Legitimidade ativa


O artigo 68º nº 1 CPTA esclarece quem pode apresentar um pedido de condenação à prática de ato devido, sendo estes:
a)          Quem alegue ser titular de direitos ou interesses legalmente protegidos, dirigidos à emissão desse ato;
b)         O Ministério Público, sem necessidade da apresentação de requerimento, quando o dever de praticar o ato resulte diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, a defesa de interesses públicos especialmente relevantes ou de qualquer dos valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º;
c)          Pessoas coletivas, públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender;
d)         Órgãos administrativos, relativamente a condutas de outros órgãos da Administração Pública, que alegadamente comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas aos primeiros, para a prossecução de interesses pelos quais estes órgãos sejam diretamente responsáveis;
e)          Presidentes de órgãos colegiais, relativamente à conduta do respetivo órgão, bem como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na lei;
f)          As demais pessoas e entidades mencionadas no nº 2 do artigo 9º.

Em termos de legitimidade passiva, o artigo 68º nº 2 CPTA estabelece que para além da entidade responsável pela situação de ilegalidade, deverão ser demandados os contrainteressados a quem a prática do ato pretendido possa diretamente prejudicar ou que tenham legitimo interesse em que ele não seja praticado, estabelecendo-se um litisconsórcio necessário passivo entre estes e a Administração. Note-se ainda que, segundo o artigo 10º nº 2 CPTA, a parte demandada é a pessoa coletiva ou o ministério a que pertence o órgão competente para a prática do ato devido.

  •    Prazos de propositura da ação


O prazo de propositura da ação varia consoante se esteja perante uma omissão, sendo para estas o prazo de um ano, artigo 69º nº 1 CPTA, ou perante um ato administrativo de conteúdo negativo, sendo o prazo de três meses, artigo 69º nº 2 CPTA. Importa salientar que o decurso do prazo não implica a sanação da invalidade, tendo apenas consequências ao nível processual.

  •  Sentença


MÁRIO AROSO DE ALMEIDA apelida as ações de condenação à prática de atos administrativos como “processos de geometria variável, no sentido em que não conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico alcance”[xiv]. No que diz respeito à decisão do tribunal, importa à partida fazer a destrinça entre atos devidos vinculados ou discricionários, pois o conteúdo da sentença irá variar conforme a natureza do ato em causa.
Nos casos de estrita vinculação da Administração quanto ao conteúdo do ato administrativo, a questão não se coloca, uma vez que está determinado o conteúdo do ato, apenas faltando a sua efetivação ou substituição pela Administração. Assim sendo, nestes casos, o conteúdo da decisão judicial passará por condenar a Administração à prática de ato administrativo com determinado conteúdo.
Casos mais complicados são aqueles em que é deixado à Administração um âmbito de discrionariedade no que toca ao conteúdo do ato administrativo. Nestas situações, quando a Administração não emita o ato, a ação de condenação não poderá condenar a Administração à prática de ato administrativo de determinado conteúdo, dado que estaríamos perante uma violação do princípio da separação de poderes, em que seria a justiça a decidir o conteúdo de um ato a praticar pela Administração. De facto, é isto mesmo que resulta do artigo 71º nº 2 do CPTA, sendo que este preceito impede o tribunal de determinar o conteúdo do ato a praticar pela Administração que envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa. Nestes casos haverá uma condenação genérica, devendo o tribunal indicar a forma “de exercício do poder discricionário (...) estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais”[xv], não pondo assim em causa a autonomia decisória da Administração.
            É então possível distinguir duas modalidades de sentenças no que toca ao pedido de condenação à prática do ato devido: 1) “Aquelas que cominam à prática de um acto administrativo cujo conteúdo é, desde logo, determinado pela sentença, já que corresponde ao exercício de poderes vinculados tanto quanto à oportunidade como quanto ao modo de exercício”[xvi]. Impõe-se assim o dever da Administração emitir um ato administrativo de conteúdo determinado. 2) “Aquelas que cominam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é relativamente indeterminado, na medida em que estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração, mas em que o tribunal, mesmo assim, deve indicar a ‘forma correta’ de exercício de exercício do poder discricionário, no caso concreto, estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão”[xvii]. A sentença nestes casos tem um caráter misto, pois combina uma vertente condenatória, no tocante à prática do ato administrativo, bem como no referente aos aspetos vinculados, e declarativa, no que respeita aos elementos discricionários do poder, permitindo ao tribunal orientar a Administração quanto aos aspetos legais da decisão que deve tomar, definindo um quadro legal de atuação. A consagração deste tipo de sentenças significa, para VASCO PEREIRA DA SILVA, o ultrapassar dos velhos traumas do contencioso administrativo[xviii].

Em tom conclusivo é novamente de realçar a importância da introdução do regime da ação de condenação à prática de ato devido, pois com este colmatou-se uma grave lacuna existente, garantindo-se desta forma uma tutela jurisdicional efetiva e plena dos particulares, artigo 268º nº 4 CRP. Permitiu-se ainda pôr fim ao velho trauma do contencioso administrativo, respeitante à separação de poderes, embora a linha ainda seja ténue uma vez que, “estamos num dos domínios em que de forma mais delicada se coloca a questão da fronteira entre o domínio do administrar, que não se pretende dos tribunais, sobrepondo os seus próprios juízos subjectivos aos daqueles que exercem a função administrativa, e o domínio do julgar, em que do que se trata é de verificar a conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e os princípios de Direito a que eles se encontram obrigados e, por isso, de determinar, no exercício legítimo dos poderes públicos.”[xix] Para que esta linha não seja ultrapassada, muito contribui o artigo 71º nº 2 CPTA, que garante efetivamente esta separação de poderes, ao delimitar o poder de pronúncia dos tribunais, no tocante à condenação à prática de atos administrativos em que a Administração tenha um poder discricionário de decisão. Parece ser este o preceito chave no que toca ao equilíbrio entre a necessidade de garantir meios de tutela jurisdicional adequados para os particulares reagirem perante omissões ou recusas ilegais, e a necessidade de garantir uma estrita separação de poderes que se conforme com as necessidades de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.




[i] Artigo 130º do Código de Procedimento Administrativo.
[ii] Correia, Sérvulo, O Incumprimento do Dever de Decidir, em Cadernos de Justiça Administrativa, (2005), Nº 54, p. 14.
[iii] Idem, p. 16.
[iv] Aroso de Almeida, Mário, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, (2005), p. 168.
[v] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, (2009), p. 382.
[vi] Vieira de Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 17ª Edição, Almedina, (2017), p. 194.
[vii] Idem, p. 194.
[viii] Como defende VASCO PEREIRA DA SILVA, op. Cit., p. 386.
[ix] Idem, p. 388.
[x] Ibidem, p. 388.
[xi] Viera de Andrade, ob. Cit., p. 196-198.
[xii] VASCO PEREIRA DA SILVA entende que nos casos de deferimento tácito há também lugar a ação de condenação à prática do ato devido, ob. Cit., p. 400.
[xiii] Leitão, Alexandra, A condenação à prática de ato devido no novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos: âmbito, delimitação e pressupostos processuais, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, (2017), 3ª Edição, AAFDL Editora, p. 611.
[xiv] Aroso de Almeida, Mário, Sobre as Acções de Condenação à Prática de Actos Administrativos, em Temas e Problemas de Processo Administrativo, (2011), 2ª Edição, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, p. 110.
[xv] Pereira da Silva, Vasco, ob. Cit., p. 393.
[xvi] Idem, p. 392-393.
[xvii] Ibidem, p. 393.
[xviii] Ibidem, p. 395.
[xix] Aroso de Almeida, Mário, (2011), ob. Cit., p. 106.


Bibliografia

Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, (2019).

Aroso de Almeida, Mário, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, (2005).

Aroso de Almeida, Mário, Sobre as Acções de Condenação à Prática de Actos Administrativos, em Temas e Problemas de Processo Administrativo, (2011), 2ª Edição, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas.

Correia, Sérvulo, O Incumprimento do Dever de Decidir, em Cadernos de Justiça Administrativa, (2005), Nº 54.

Leitão, Alexandra, A condenação à prática de ato devido no novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos: âmbito, delimitação e pressupostos processuais, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, (2017), 3ª Edição, AAFDL Editora.

Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, (2009).

Vieira de Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 17ª Edição, Almedina, (2017).






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