Pedro Henriques Martins, Nº 56586
A ação de condenação à prática de ato devido foi introduzida com a
reforma de 2002 e veio pôr fim a um velho trauma de infância do contencioso
administrativo, relativo à separação de poderes. Este trauma teve a sua origem
no contencioso administrativo de tipo francês, onde se entendia que ao juiz
apenas caberia anular atos da Administração, não podendo de forma alguma
ordenar a Administração à prática de determinado ato, ou até condenar esta
mesma. Reinava então uma conceção estrita do princípio da separação de poderes,
em que se entendia que caso o Tribunal condenasse a Administração, estaria a
tomar as suas funções administrativas, algo manifestamente violador do
princípio enunciado. Havia, portanto, uma confusão entre o que correspondia à
tarefa de julgar e o que correspondia à tarefa de administrar.
Um dos grandes problemas que derivavam deste velho trauma prendia-se com
a falta de mecanismos de reação dos particulares perante omissões da
Administração. Visto que, dada a conceção anteriormente explicitada, contra
estas omissões acabava por não ser possível reagir, uma vez que não se estava
perante um ato administrativo, que por sua vez permitisse aceder aos tribunais
pedindo a sua anulação. A única forma de obter alguma tutela, no respeitante a
estas situações, passava pela figura do indeferimento tácito, que ao contrário
de hoje[i], era a
regra em caso de falta de pronúncia administrativa. O que se fazia era
interpretar o silêncio da Administração, aquando do fim do prazo disponível
para se pronunciar sobre determinada pretensão, como um indeferimento tácito. Tal
interpretação permitia ficcionar este silêncio como um ato administrativo de conteúdo
negativo, podendo assim ser impugnado e pedida a sua anulação, o que
representava um “expediente técnico-jurídico”[ii].
Existia então uma tutela bastante precária no tocante às omissões
administrativas, um certo vazio jurídico que veio ser preenchido com as ações
de condenação à prática do ato devido. Estas puseram fim ao trauma de infância,
esvaziando “de função útil a figura do indeferimento tácito”[iii] e
levaram o contencioso até um novo patamar de proteção dos administrados, passando
estes a ter uma forma adequada de reagir. Pode-se dizer que, “deixou de ser
pressuposto de acesso à jurisdição administrativa a existência de atos administrativos
passíveis de impugnação ou ficções destes”[iv]. Desta
forma, cumpre-se o artigo 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa
(CRP) garantindo-se uma tutela jurisdicional efetiva, pois cada interesse dos
particulares, digno de proteção jurídica, encontra uma forma de tutela judicial
correspondente. Hoje, julgar a Administração e condená-la à prática de atos
administrativos, já não é visto como uma violação da separação de poderes no
sentido do tribunal imiscuir-se na função administrativa, mas sim como
tratando-se ainda de julgar. Passou-se então da mera anulação para a plena
jurisdição, superando-se o trauma.
- Âmbito de aplicação
O regime da ação de condenação à prática de atos administrativos
encontra respaldo nos artigos 66º e seguintes do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA).
Da análise do artigo 66º nº 1 CPTA concluímos que estas ações podem ser
utilizadas para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de
determinado prazo, de ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado. Esta
distinção é importante para efeitos do pedido da ação, pois dependendo da
modalidade em causa, variará o pedido formulado[v]. No caso
dos atos administrativos omitidos, será pedida a condenação à emissão do ato
administrativo omitido e no caso de recusa à prática de ato administrativo, o
pedido será de condenação à produção de ato administrativo favorável,
substituindo o anterior ato administrativo de recusa, desfavorável ao
particular. Em qualquer dos casos, o que se pretende é a prática do ato devido,
que VIEIRA DE ANDRADE classifica como “aquele acto administrativo que, na
perspetiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma
pura omissão, um indeferimento ou uma recusa”[vi]. O
mesmo Professor entende ainda que este ato “não tem de ser um acto estritamente
vinculado perante a lei (um acto de conteúdo devido), podendo albergar
momentos discrionários, desde que a sua emissão seja, nas circunstâncias
do caso concreto, legalmente obrigatória”[vii]. Este
entendimento é relevante, pois permite que a Administração seja também
condenada à prática de atos devidos, de emissão obrigatória, no âmbito do seu poder
discricionário, o que levanta outras questões que serão oportunamente
abordadas.
Relativamente ao artigo 66º nº 2 CPTA, retiramos que o objeto do
processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação
da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória. O mesmo é
dizer que o objeto do processo não é o ato administrativo, mas sim o direito a
obter da Administração determinada conduta devida. Trata-se do direito
subjetivo do particular à obtenção de determinado ato devido, cuja omissão ou
recusa lesa a sua esfera jurídica. Deve então o tribunal apreciar a relação
jurídica entre o particular e a Administração, não se restringindo à análise da
omissão ou dos fundamentos de indeferimento do ato administrativo. Assim se
explica o facto do artigo 71º nº 1 CPTA[viii] exigir
a pronúncia do tribunal sobre a pretensão material do interessado, impondo a
prática do ato devido, se for caso disso. Sendo ainda relevante para este
entendimento o facto do artigo 70º CPTA vincar que o tribunal não se deve
restringir à apreciação dos “factos ou comportamentos anteriores à abertura do
processo, mas deve abarcar também os actos administrativos (total ou
parcialmente) desfavoráveis, praticados na pendência da acção, uma vez que
estes afetam aqueles mesmos direitos e aquela mesma relação jurídica que foi
trazida a juízo”[ix].
Devem desta forma os poderes do juiz “ir tão longe quanto o exigirem os
direitos dos particulares necessitados de tutela”[x].
O artigo 67º nº 1 CTPA exige, para a condenação à prática do ato
administrativo, um procedimento prévio de iniciativa do interessado, regra
geral um requerimento com a pretensão de obtenção da prática de ato
administrativo, e que constitua o órgão competente no dever de decidir. Posto
isto, para ser pedida a ação, é necessária a verificação de uma das seguintes
situações[xi]:
i.
Omissão da prática desse ato requerido, no
prazo legalmente estabelecido, desde que a lei não ligue essa inércia a outras
consequências, como o deferimento tácito[xii], alínea
a). Tem por objeto situações de incumprimento do dever de decidir, artigo 13º
do Código de Procedimento Administrativo;
ii.
Recusa da prática do ato devido,
indeferimento expresso da pretensão, alínea b), 1ª parte. Nestes casos pode
causar estranheza a sua inclusão no âmbito da condenação à prática do ato
devido, tendo em conta que se podia simplesmente impugnar essa recusa. A justificação
prende-se com o facto de “a pretensão do particular não ser eliminar o ato de
indeferimento do ordenamento jurídico – até porque isso deixa-o na mesma
posição jurídica em que se encontrava antes -, mas sim obter o que pretendia
inicialmente, pedindo para tal, que a Administração seja condenada a praticar o
ato devido”[xiii];
iii.
Recusa de apreciação do requerimento, alínea
b), 2ª parte;
iv.
Pratica de ato administrativo de conteúdo
positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado, alínea c),
indeferimento parcial.
Há, no entanto, situações que não exigem a apresentação de requerimento
pelo particular:
v.
Situação em que não tenha sido cumprido o
dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei, artigo
67º nº 4 a). Entende-se que tem de existir um atraso manifesto e desrazoável
para se poder invocar este preceito;
vi.
Situação do particular que pretenda a substituição
do conteúdo de um ato administrativo positivo, artigo 67º nº 4 b), ou seja, não
basta uma mera impugnação para satisfazer direitos e interesses do particular.
O artigo 68º nº 1 CPTA esclarece quem pode apresentar um pedido de
condenação à prática de ato devido, sendo estes:
a)
Quem alegue ser titular de direitos ou
interesses legalmente protegidos, dirigidos à emissão desse ato;
b)
O Ministério Público, sem necessidade da
apresentação de requerimento, quando o dever de praticar o ato resulte
diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, a
defesa de interesses públicos especialmente relevantes ou de qualquer dos
valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º;
c)
Pessoas coletivas, públicas ou privadas, em
relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender;
d)
Órgãos administrativos, relativamente a
condutas de outros órgãos da Administração Pública, que alegadamente
comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas aos
primeiros, para a prossecução de interesses pelos quais estes órgãos sejam
diretamente responsáveis;
e)
Presidentes de órgãos colegiais,
relativamente à conduta do respetivo órgão, bem como outras autoridades, em
defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na lei;
f)
As demais pessoas e entidades mencionadas no
nº 2 do artigo 9º.
Em termos de legitimidade passiva, o artigo 68º nº 2 CPTA estabelece que
para além da entidade responsável pela situação de ilegalidade, deverão ser
demandados os contrainteressados a quem a prática do ato pretendido possa
diretamente prejudicar ou que tenham legitimo interesse em que ele não seja
praticado, estabelecendo-se um litisconsórcio necessário passivo entre estes e
a Administração. Note-se ainda que, segundo o artigo 10º nº 2 CPTA, a parte
demandada é a pessoa coletiva ou o ministério a que pertence o órgão competente
para a prática do ato devido.
O prazo de propositura da ação varia consoante se esteja perante uma
omissão, sendo para estas o prazo de um ano, artigo 69º nº 1 CPTA, ou perante
um ato administrativo de conteúdo negativo, sendo o prazo de três meses, artigo
69º nº 2 CPTA. Importa salientar que o decurso do prazo não implica a sanação da
invalidade, tendo apenas consequências ao nível processual.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA apelida as
ações de condenação à prática de atos administrativos como “processos de
geometria variável, no sentido em que não conduzem todos à emissão de pronúncias
judiciais com idêntico alcance”[xiv]. No
que diz respeito à decisão do tribunal, importa à partida fazer a destrinça
entre atos devidos vinculados ou discricionários, pois o conteúdo da sentença
irá variar conforme a natureza do ato em causa.
Nos casos de estrita vinculação da Administração quanto ao conteúdo do
ato administrativo, a questão não se coloca, uma vez que está determinado o
conteúdo do ato, apenas faltando a sua efetivação ou substituição pela
Administração. Assim sendo, nestes casos, o conteúdo da decisão judicial
passará por condenar a Administração à prática de ato administrativo com
determinado conteúdo.
Casos mais complicados são aqueles em que é deixado à Administração um
âmbito de discrionariedade no que toca ao conteúdo do ato administrativo. Nestas
situações, quando a Administração não emita o ato, a ação de condenação não
poderá condenar a Administração à prática de ato administrativo de determinado
conteúdo, dado que estaríamos perante uma violação do princípio da separação de
poderes, em que seria a justiça a decidir o conteúdo de um ato a praticar pela
Administração. De facto, é isto mesmo que resulta do artigo 71º nº 2 do CPTA, sendo
que este preceito impede o tribunal de determinar o conteúdo do ato a praticar
pela Administração que envolva a formulação de valorações próprias do exercício
da função administrativa. Nestes casos haverá uma condenação genérica, devendo
o tribunal indicar a forma “de exercício do poder discricionário (...)
estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais”[xv], não pondo
assim em causa a autonomia decisória da Administração.
É então possível distinguir duas
modalidades de sentenças no que toca ao pedido de condenação à prática do ato
devido: 1) “Aquelas que cominam à prática de um acto administrativo cujo
conteúdo é, desde logo, determinado pela sentença, já que corresponde ao
exercício de poderes vinculados tanto quanto à oportunidade como quanto ao modo
de exercício”[xvi].
Impõe-se assim o dever da Administração emitir um ato administrativo de
conteúdo determinado. 2) “Aquelas que cominam à prática de um acto
administrativo, cujo conteúdo é relativamente indeterminado, na medida em que
estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração, mas em
que o tribunal, mesmo assim, deve indicar a ‘forma correta’ de exercício de
exercício do poder discricionário, no caso concreto, estabelecendo o alcance e
os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos
parâmetros e critérios de decisão”[xvii]. A
sentença nestes casos tem um caráter misto, pois combina uma vertente
condenatória, no tocante à prática do ato administrativo, bem como no referente
aos aspetos vinculados, e declarativa, no que respeita aos elementos discricionários
do poder, permitindo ao tribunal orientar a Administração quanto aos aspetos
legais da decisão que deve tomar, definindo um quadro legal de atuação. A
consagração deste tipo de sentenças significa, para VASCO PEREIRA DA SILVA, o
ultrapassar dos velhos traumas do contencioso administrativo[xviii].
Em tom conclusivo é novamente de realçar a importância da introdução do
regime da ação de condenação à prática de ato devido, pois com este colmatou-se
uma grave lacuna existente, garantindo-se desta forma uma tutela jurisdicional
efetiva e plena dos particulares, artigo 268º nº 4 CRP. Permitiu-se ainda pôr
fim ao velho trauma do contencioso administrativo, respeitante à separação de
poderes, embora a linha ainda seja ténue uma vez que, “estamos num dos domínios
em que de forma mais delicada se coloca a questão da fronteira entre o domínio
do administrar, que não se pretende dos tribunais, sobrepondo os seus
próprios juízos subjectivos aos daqueles que exercem a função administrativa, e
o domínio do julgar, em que do que se trata é de verificar a
conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e os princípios de
Direito a que eles se encontram obrigados e, por isso, de determinar, no
exercício legítimo dos poderes públicos.”[xix] Para que
esta linha não seja ultrapassada, muito contribui o artigo 71º nº 2 CPTA, que
garante efetivamente esta separação de poderes, ao delimitar o poder de
pronúncia dos tribunais, no tocante à condenação à prática de atos
administrativos em que a Administração tenha um poder discricionário de decisão.
Parece ser este o preceito chave no que toca ao equilíbrio entre a necessidade
de garantir meios de tutela jurisdicional adequados para os particulares
reagirem perante omissões ou recusas ilegais, e a necessidade de garantir uma
estrita separação de poderes que se conforme com as necessidades de um
verdadeiro Estado de Direito Democrático.
[i] Artigo 130º do Código de
Procedimento Administrativo.
[ii] Correia, Sérvulo, O
Incumprimento do Dever de Decidir, em Cadernos de Justiça
Administrativa, (2005), Nº 54, p.
14.
[iii] Idem, p. 16.
[iv] Aroso de Almeida, Mário, O Novo
Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, (2005), p.
168.
[v] Pereira da Silva, Vasco, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina,
(2009), p. 382.
[vi] Vieira de Andrade, José, A
Justiça Administrativa (Lições), 17ª Edição, Almedina, (2017), p. 194.
[vii] Idem, p. 194.
[viii] Como defende VASCO PEREIRA DA
SILVA, op. Cit., p. 386.
[ix] Idem, p. 388.
[x] Ibidem, p. 388.
[xi] Viera de Andrade, ob. Cit.,
p. 196-198.
[xii] VASCO PEREIRA DA SILVA entende que
nos casos de deferimento tácito há também lugar a ação de condenação à prática
do ato devido, ob. Cit., p. 400.
[xiii] Leitão,
Alexandra, A condenação à prática de ato devido no novo
Código de Processo dos Tribunais Administrativos: âmbito, delimitação e
pressupostos processuais, em Comentários à Revisão do
ETAF e do CPTA, (2017), 3ª Edição, AAFDL Editora, p. 611.
[xiv] Aroso de Almeida, Mário, Sobre
as Acções de Condenação à Prática de Actos Administrativos, em Temas
e Problemas de Processo Administrativo, (2011), 2ª Edição, Instituto de
Ciências Jurídico-Políticas, p. 110.
[xv] Pereira da Silva, Vasco, ob.
Cit., p. 393.
[xvi] Idem, p. 392-393.
[xvii] Ibidem, p. 393.
[xviii] Ibidem, p. 395.
[xix] Aroso de Almeida, Mário, (2011), ob.
Cit., p. 106.
Bibliografia
Aroso de Almeida, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, (2019).
Aroso de Almeida, Mário, O Novo Regime
do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, (2005).
Aroso de Almeida, Mário, Sobre as
Acções de Condenação à Prática de Actos Administrativos, em Temas e
Problemas de Processo Administrativo, (2011), 2ª Edição, Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas.
Correia, Sérvulo, O Incumprimento do
Dever de Decidir, em Cadernos de Justiça Administrativa, (2005), Nº
54.
Leitão,
Alexandra, A condenação à prática de ato devido no novo
Código de Processo dos Tribunais Administrativos: âmbito, delimitação e
pressupostos processuais, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, (2017), 3ª
Edição, AAFDL Editora.
Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, (2009).
Vieira de Andrade, José, A Justiça
Administrativa (Lições), 17ª Edição, Almedina, (2017).