Friday, 1 November 2019

Análise do Acordão do Tribunal de Conflitos, Mafalda Saraiva

Análise do Acordão do Tribunal de Conflitos- Processo 058/2017


  No acordão supra citado, o Tribunal de Conflitos é chamado a decidir um litígio quanto ao âmbito de jurisdição, gerado entre o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela e a instância local, de competência genérica de Vila Pouca de Aguiar, Comarca de Vila Real.
  Na análise deste acordão vamos indagar a posição adotada pelo Tribunal de Conflitos, que decidiu pela incompetência do TAF, adotando um determinado conceito de “contrato administrativo”, cabendo-nos desde já discordar da referida decisão. 

  Antes demais, em causa nesta decisão está a análise do art 4º do ETAF que permite determinar as matérias que competem à jurisdição administrativa e fiscal e que por isso devem a ela ser sujeitas e, em particular, a análise da alínea e) do citado artigo e a consequente análise do conceito de “contrato administrativo”. Desta forma, cumpre-nos tecer algumas considerações gerais sobre estes conceitos. 
  Como sabemos, existem diversos pressupostos processuais que devem estar preenchidos quando uma questão é colocada perante um Tribunal Administrativo, sendo 4 os planos em causa quando analisamos os pressupostos relativos ao Tribunal. A saber:
    • Competência em razão da jurisdição: distinção entre o domínio de atuação da jurisdição administrativa e fiscal e o domínio de atuação da jurisdição civil;
    • Competência em razão da matéria: questão de saber se uma ação deve ser proposta perante os tribunais administrativos e fiscais;
    • Competência em razão da hierarquia: qual o nível hierárquico do tribunal perante o qual a ação deve ser proposta:
    • Competência em razão do território: questão de saber que tribunal escolher perante a rede que cobre o território nacional. 

  A regra base no que respeita à competência dos tribunais administrativos e fiscais é que os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais são, em princípio, julgados nos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do art 1º do ETAF e 212º/3 CRP, sendo que é no art 4º/1 do mesmo diploma que encontramos a concretização desta competência. Neste artigo, verificamos que nos números 3 e 4 estão consagradas algumas exceções e que no número 1, na generalidade das suas alíneas, há uma concretização do que sejam “ litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”. As questões de delimitação do âmbito de jurisdição não deixam de ser questões de competência em razão da matéria, pois está em causa a distribuição de competências entre tribunais de acordo com a natureza dos litígios, sendo que neste caso está em causa um conflito que envolve tribunais de ordens jurisdicionais diferentes: a comum e a administrativa. 
  No caso em apreço está em causa o incumprimento de um “convénio” celebrado entre as partes, em que os Autores- proprietários de um prédio rústico- se comprometiam a ceder um lote de 135 metros quadrados, onde a Câmara Municipal de Ribeira de Pena pretendia construir uma ETAR, em troca da cedência de dois lotes de terreno, ainda não construídos. Em causa está, como já referido, um conflito negativo de jurisdição, que é definido desde logo pelo art 109º CPC, situação em que dois ou mais tribunais de diferentes ordens jurisdicionais se declaram incompetentes para conhecer da mesma questão, por decisões contrárias e definitivas, ou seja, insuscetíveis de recurso. Neste caso, entendeu o TAF ser incompetente por atribuir esta matéria à jurisdição civil e entendeu o Tribunal comum ser incompetente em razão da matéria, a favor do TAF. O Tribunal de Conflitos é então chamado a pronunciar-se sempre que surge uma questão deste tipo (art 29º ETAF, seguindo-se a tramitação prevista nos art 109º ss do CPC com as adaptações resultantes dos arts 135º ss do CPTA). 
  Como acima referi, sufrago o entendimento segundo o qual o Tribunal comum deveria ser competente. Passo a desenvolver. Como é sabido, a competência do tribunal afere-se no momento da propositura da ação (art 5º ETAF)  de acordo com a pretensão do autor, abrangendo os fundamentos por ele invocados, não sendo relevante averiguar a viabilidade jurídica dessa pretensão. O que está na base da delimitação de competências entre diferentes jurisdições é o princípio da especialização que determina e reconhece a vantagem que determinados orgãos detêm no conhecimento das matérias, sendo que os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização (art 211º/1 CRP e 64º CPC), tendo os restantes competência limitada às matérias que lhes são expressamente atribuídas. Nesta base, o critério determinante para a jurisdição administrativa é, como já foi identificado, a relação jurídico-administrativa, vertida no art 212º/3 CRP e que diz respeito ao conjunto de relações onde a administração pública tem poderes de autoridade no cumprimento das suas principais tarefas, nomeadamente, a satisfação do interesse público. É desde logo neste ponto que surgem as maiores dificuldades- que relação jurídica é esta? 
  No entender do Professor Vieira de Andrade, está em causa uma relação em que pelo menos um dos sujeitos é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de poderes públicos, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. Já segundo a doutrina do Professor Mário Aroso de Almeida, as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis” (Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág.57) pelo que devem estar em causa atuações que sejam praticadas por orgãos da administração pública e que sejam materialmente administrativas. A orientação que me parece de perfilhar é a que determina que estamos perante uma relação deste tipo quando se conferem poderes de autoridade ou se impõem restrições de interesse público à Administração perante particulares, ou a que atribui direitos e impõe deveres aos particulares, perante a Administração, posição defendida pelo Professor Freitas do Amaral. 
  Ora, neste caso não parece que as cláusulas contratuais estabelecidas entre as partes confiram poderes especiais de autoridade ou que estabeleçam restrições de interesse público por forma a enquadrarmos este contrato no Direito Administrativo. Também não parece estar em causa a prevalência do interesse público sobre o interesse do particular, que nomeadamente fez investimentos no sentido em que entregou o terreno a que se tinha proposto, o que representa uma diminuição do seu património. 
  As partes regularam sim um contrato que postulava obrigações recíprocas e em que ambas negociavam em pé de igualdade, sem atender a uma especial posição de uma das partes. Desta forma, o que pode estar em causa é um contrato de permuta, tal como identifica o TAF, uma vez que em causa está a transferência da propriedade de bens imóveis entre as partes, bens imóveis esses que constituíam bens futuros (art 211º CC) no caso do terreno cujo loteamento ainda viria a ser feito. Como sabemos, este contrato não se encontra expressamente previsto no Código Civil mas resulta da autonomia das partes (liberdade de estipulação e celebração vertidas no art 405º CC) a sua celebração. Ao ser um contrato de direito privado, é segundo as normas de direito privado (nomeadamente são-lhe aplicáveis as normas do contrato de Compra e venda, ex vii do art 939º CC) que deve ser regulado pelo que a análise do seu incumprimento deve ser vista à luz deste direito. O argumento que contribui para este entendimento é que a alínea e) do art 4º/1 do ETAF não tem em vista os contratos públicos cuja celebração não se encontre ou não deva estar sujeita aquela legislação por existir uma expressa exclusão legal (art 4º/2 CCP); por não estarem em causa contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou são suscetíveis de estar submetidos à concorrência de mercado (art 16º/1 e 5º/1 CCP) e os casos em que exista uma limitação relativamente às entidades da administração pública na medida em que nem todos os contratos celebrados por estas entidades se encontram sujeitos ao regime da contratação pública. Ora, o presente caso encontra-se excluído do âmbito do código desde logo pelo primeiro argumento: é expressamente excluído pelo art 4º/2 c) CCP. 
  Recorrendo ainda a um argumento histórico, nos termos do já revogado art 178º CPA elencava os contratos que considerava terem cariz administrativo. Eram eles: a concessão da exploração de domínio público, a empreitada de obras públicas, a concessão de serviços públicos, a concessão de uso privativo do domínio público, a concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar, o fornecimento contínuo e de prestação de serviços para fins de utilidade pública. Ora, é certo que este elenco não é exaustivo mas é o mais próximo que temos do pensamento do legislador e em nada se assemelha com o contrato que está em causa. 
  Não é fácil traçar a distinção entre as duas jurisdições em causa, sendo que nessa distinção importa “considerar a presença de um membro da Administração pública, a ligação do objeto do contrato às finalidades de interesse publico que esse ente prossiga.(…) mas também as marcas de administratividade e os traços reveladores de uma ambiência de direito público existentes nas relações que neles se estabelecem” (Acordão do STA, Processo 021/03).De modo a facilitar a distinção, o Professor Mário Aroso de Almeida aponta como critério do que seja um contrato administrativo o que esteja submetido a regras de contratação pública.O presente caso não se encontra sujeito às regras do CCP, como vimos, e para além disso, apesar de as partes terem aparentemente regulado a sujeição a regras de Direito Administrativo também previram, subsidiariamente, o recurso à Lei Civil. Este facto, aliado à situação de não termos no caso o exercício de poderes de autoridade, a imposição de deveres  ou a sujeição a limitações faz com que me pareça ser de sujeitar o regime deste “convénio” à jurisdição civil, por estar em causa uma relação jurídico-privada, que pode ter como parte contraente um ente público (Cf. Art 200º/1 CPA). De facto, a pretensão dos Autores fundamenta-se no incumprimento de um contrato que não tem implícito um justificado interesse público e que por isso deva estar sujeito ao Direito Público. 



Bibliografia: 

  • ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3º Edição, 2019.
  • PAÇÃO, Jorge, Comentários à revista do ETAF e do CPTA- Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos- em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº1 do ETAF, 3º edição.
  • MARTINS, Licínio Lopes, Âmbito  de jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto
  • SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, 2009.



Mafalda Marques Saraiva, nº56931, Subturma 10, Turma A

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