ACÓRDÃO DO
TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE
(11/05/2017
- (P. 00561/13.4BEPNF-A))
A presente
análise tem por objeto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte,
datado de 11 de Maio de 2017[1],
onde é posta em causa a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Penafiel, que se julgou incompetente para conhecer dos pedidos formulados pelos
autores. A pertinência do acórdão encontra-se traçada na fronteira ténue entre
as ações reais e as ações de indemnização por responsabilidade extracontratual
sujeitas ao regime da responsabilidade extracontratual do Estado, uma vez que
estas matérias se encontram muito frequentemente ligadas e essa imprecisão
acarreta inúmeras consequências na delimitação da competência material entre a
jurisdição administrativa e civil.
Em primeiro lugar, faremos o enquadramento
factual do Acórdão em questão, revelando os pedidos e os factos que foram
chamados à ilação. De seguida, analisaremos a tomada de posição do Tribunal
Central Administrativo Norte. Por fim, faremos a nossa análise crítica,
analisando a delicadeza da determinação da competência material da jurisdição
administrativa na era contemporânea do Contencioso Administrativo.
I) ENQUADRAMENTO FACTUAL DO ACÓRDÃO
A) PEDIDO
FORMULADO JUNTO DO TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA
Analisemos,
ainda que sinteticamente, o pedido formulado em primeira instância para nos
concentrarmo-nos depois, com maior pormenor, no que foi decidido em sede de
recurso. Em primeira instância, os
autores pedem não só o reconhecimento do direito de propriedade relativamente
às águas detidas nas “Poça das Canas”, “Poça do Meio”, “Poça da Beira da
Estrada ou da Fonte” e “Poça da Lage” como também do direito de servidão, de
presa e aqueduto sobre as ditas poças. De facto, desde finais de Outubro de
2010, viram-se impedidos de usar aquelas águas, dada a construção da autoestrada A4/IP4 – Amarante-Vila
Real. A isto acresce um pedido de natureza condenatória: os autores
pedem a condenação das Rés, Auto Estrada do Manhão S.A e outras, a restituírem
as águas e a realizarem as obras necessárias para o efeito. É de notar que os
autores pedem, na impossibilidade de procederem às obras necessárias, que estas
sejam condenadas ao pagamento de uma indemnização em virtude da aludida
privação de água. Ora, sendo
certo que a incompetência do Tribunal em razão da matéria constitui exceção
dilatória cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa[2] e
o seu conhecimento pelo tribunal precede o de qualquer outra matéria[3], o
Tribunal Administrativo Fiscal de Penafiel identificou, desde logo, a sua
incompetência em razão da matéria, razão pela qual a questão subiu ao Tribunal
Central Administrativo Norte.
B) PEDIDO FORMULADO JUNTO DO TRIBUNAL CENTRAL
ADMINISTRATIVO NORTE
Em sede de recurso, os recorrentes invocam que a
declaração de incompetência do tribunal administrativo não tem fundamento por
várias ordens de razão.
Em primeiro lugar, alegam que, apesar da matéria de
direitos reais não se integrar na competência da jurisdição administrativa, a
verdade é que existem vários tipos de ações em que se exige a verificação e a
declaração judicial de uma situação jurídica anteriormente existente. É o que
acontece no caso em apreço, visto que os pedidos de indemnização se encontram
em cumulação aparente com os pedidos de declaração e reconhecimento de
propriedade. Assim, os recorrentes concluem que a decisão recorrida viola o
art.º 4.º, n.º 1, alínea h) do ETAF e o art.º 1. ° n.º 5 da Lei 67/2007, pois
entendem que, se a jurisdição administrativa é materialmente competente para a
apreciação dos pedidos de condenação, é também necessariamente competente para
apreciar os correspondentes pedidos declarativos.
Em segundo lugar, alegam que
compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das ações que
tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas. A construção da autoestrada tinha em vista a realização do
interesse público e foi essa atuação, reveladora de um real ius imperium, que
originou a dita violação dos direitos de propriedade e de servidão de águas.
Assim, para as partes em causa, trata-se verdadeiramente de uma relação
jurídica administrativa.
2)
SOLUÇÃO ADOTADA PELO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE
O Tribunal de Recurso começou por identificar o critério
substancial delimitador da competência da jurisdição administrativa nos termos
do artigo 212.º, n.º 3 da CRP, realidade que é reforçada pelo artigo 1.º do
ETAF. A jurisprudência administrativa[4]
tem bem assente que “para efeito da determinação da competência material do
tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo
autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida
(pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir)”. Neste sentido, o
Tribunal fez referência ao Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16/02/2012 (P.
nº020/11), onde se colocou um problema semelhante. O aludido acórdão adotou a
solução de que, estando perante uma ação de reivindicação do direito de
propriedade e portanto, perante uma ação real, a competência será da jurisdição
comum pois não existe, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF), uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o
conhecimento de ações de reivindicação (nomeadamente, artigo 4º do ETAF).
O Tribunal tentou superar o
argumento apresentado pelos recorrentes relativamente ao facto de se tratar de
uma cumulação aparente relembrando que o pedido indemnizatório era feito a título subsidiário, não revestindo assim uma natureza autónoma[5].
Tendo em conta que o tribunal administrativo é incompetente para os primeiros
pedidos alegados pelos autores, onde é revelada a preocupação da proteção do
seu direito de propriedade, o recurso foi considerado improcedente dada a
inexistência de uma relação jurídica administrativa.
3)
ANÁLISE CRÍTICA
A) PROBLEMAS QUE SE COLOCAM
O primeiro problema identificado consiste na
caracterização da ação quanto à sua natureza e o seu objeto. A questão da
delimitação da competência vai variar consoante estarmos perante uma ação de
reivindicação ou se, pelo contrário, perante uma ação de responsabilidade
extracontratual a que seja aplicável o regime de responsabilidade do Estado e
demais pessoas coletivas de direito público.
O segundo problema é o problema da cumulação aparente.
Admitindo que a resposta ao primeiro problema supracitado é que o litígio
enquadra-se no perímetro de ação de reivindicação, cabe-nos perguntar se o
facto de estarmos a discutir, paralelamente, a responsabilidade extracontratual
dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da
responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, não
se traduz na atribuição da competência material à jurisdição administrativa ao
abrigo do art. 4º h) do ETAF e número 2 do art. 5º da Lei 67/2007. Ao não
permitir o Tribunal Administrativo analisar a questão prévia do direito de
propriedade, não significaria isso reduzir de forma excessiva o âmbito da
alínea h) do art. 4º ETAF uma vez que as ações de responsabilidade
extracontratual dependem, muitas vezes, da prévia verificação e declaração
judicial da situação jurídica a que correspondem? Não iria esta posição contra
a lógica do art. 4º do CPTA e o princípio da concentração e da integralidade da
relação jurídica?
Por fim, a questão de saber se estamos perante uma
relação jurídica administrativa não é, a meu ver, um problema autónomo na
medida em que esta questão já se encontra subjacente à questão de saber se o
Tribunal Administrativo é competente para conhecer da responsabilidade
extracontratual nos termos da alínea h) do artº. 4º do ETAF e do número 2 do
art.º 5º da Lei 67/2007 visto que a competência material da jurisdição administrativa
terá sempre como crivo delimitador a existência de uma relação jurídica
administrativa.
B) TOMADA DE POSIÇÃO
Relativamente à primeira questão, tal como foi referido,
e bem, no acórdão, a
competência material é aferida de acordo com a configuração da petição inicial
“independentemente da legitimidade das partes ou da procedência da ação”[6].
Assim, afere-se pela forma como o autor configura a ação e pelos objetivos com
ela prosseguidos. Como é bem patente na petição inicial, o que
está em causa é a preocupação pela fundamentação na aquisição da propriedade e
do direito de servidão. Assim, a própria causa de pedir deixa bem claro a
identificação da ação como uma ação real, ficando assim excluída a invocação
quer da alínea h), quer da alínea g) do art. 4º do ETAF.
O problema
da cumulação aparente é, a meu ver, um “falso problema”. De facto, como indica
Miguel Teixeira de Sousa, a cumulação aparente é aquela em que “a parte formula
vários pedidos, mas ela não aufere benefícios distintos pela procedência de
cada um desses pedidos”[7]
ou na aceção de Vasco Pereira da Silva, é aquela onde os pedidos dizem respeito
a “uma e mesma utilidade própria”[8].
É verdade que não podemos negar, numa lógica de mudança de paradigma
processual, que o Contencioso Administrativo se transformou num verdadeiro
Contencioso de “plena jurisdição”, onde se admite “todos os pedidos necessários
à tutela dos direitos das relações administrativas”[9].
Relembrando a posição de Gomes Canotilho e
Vital Moreira[10],
o conceito genérico de relações jurídico-administrativas pretendeu “viabilizar
a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e
poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e
entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de
direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções
de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito
privado”. Encontramos a mesma essência do conceito na posição de Mário Aroso de
Almeida[11] e
ainda Freitas do Amaral[12].
É certo que não se pode negar, de forma absoluta, o eventual relacionamento
destas matérias com questões de direito público (no caso em apreço, a
construção da autoestrada revela traços de exercício de poderes de autoridade)
mas entende-se que só acidentalmente se colocará tal problema se o detentor se
“socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a detenção”[13].
Assim, não é por estarem em causa poderes de autoridade, que a matéria se
insere necessariamente na jurisdição administrativa. Aliás, como foi referido
pelo Tribunal, o pedido indemnizatório foi formulado a título subsidiário e esse
pedido apenas pode determinar
uma extensão da competência material dos tribunais judiciais. O centro do
pedido baseia-se no direito de propriedade e por essa razão, há que concluir
que a matéria em causa cabe necessariamente na competência da jurisdição civil.
Já não seria esta a solução se o autor tivesse colocado a questão de forma
distinta.
Veja-se por exemplo o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15 de Março
de 2018[14]:
estava também em causa uma questão de responsabilidade extracontratual por
violação do direito de propriedade de dois poços pertencentes aos autores. Ora,
o Tribunal de conflitos considerou que tal conflito era da competência material
da jurisdição administrativa porque os autores não discutiam nem
reclamavam o seu direito de propriedade sobre os dois poços em causa: a sua
pretensão consistia na responsabilidade extracontratual da Ré, sujeita a um
regime de direito público, sendo os direitos de propriedade meros pressupostos
factuais e jurídicos na base da pretensão.
A meu ver,
existe ainda outro argumento que podemos apontar. Ao admitir que os tribunais
administrativos fossem competentes para conhecer de “todos os pedidos” sempre
que existisse uma questão prévia de apreciação da propriedade, tal significaria
extravasar a competência dos tribunais judiciais. No caso em apreço, não só a
centralidade do pedido se focava na questão do direito de propriedade, como o
pedido de indemnização era feito a título subsidiário. A cláusula presente na
alínea o) do art. 4º do ETAF e no número 3 do 211º da CRP não pode ser interpretada
como uma reserva material absoluta da jurisdição administrativa e fiscal. Na verdade, quer a doutrina[15] ,
quer a jurisprudência[16]
consideram que se trata apenas de uma “reserva relativa que deixa à liberdade do poder
legislativo a introdução de alguns desvios a essa reserva desde que preserve o
núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição
administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material,
permitindo assim o texto constitucional que o legislador ordinário, dentro
desses limites, possa alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais
administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas”.
Maria Teresa Prudêncio Vizeu Pinheiro
Nº 57356
4º ano, Subturma 10
2019
[1]
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (P. 00561/13.4BEPNF-A) de 11
de Maio de 2017.
[3]
Nos termos do 13º do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos, o “âmbito da jurisdição administrativa
e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é
de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
[4]
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 9 de Junho de
2010 (Proc. n.º 05/10).
[5]
O próprio 1284º do Código Civil,
que aborda a matéria possessória, revela que o pedido indemnizatório se integra
na ação da restituição da coisa, dispondo o preceito que “o possuidor mantido
ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em
consequência da turbação ou do esbulho”.
[6]
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Colendo STA de 16 de Fevereiro de 2012 (P.
nº 021/11).
[7]
TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel «Cumulação de Pedidos e Cumulação Aparente no
Contencioso Administrativo», in «Cadernos de Justiça», nº34 Julho/ Agosto,
2002, p.37.
[8]
PEREIRA DA SILVA, Vasco «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise.
Ensaios sobre as ações no novo processo administrativo», 2ª edição, 2009, p.
323.
[9] PEREIRA DA SILVA, Vasco «O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaios sobre as ações no novo processo
administrativo», 2ª edição, 2009, p. 327.
[10]
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 566 e 567.
[11]
AROSO DE ALMEIDA, Mário (O Novo
Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina,
Coimbra, pág. 57) afirma que as relações jurídico-administrativas não devem ser
definidas segundo o critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas
segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas
aplicáveis. Nesta perspetiva, serão relações jurídicas administrativas as
derivadas de atuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da
Administração Pública ou equiparados.
[12]
FREITAS DO AMARAL, Diogo (Direito Administrativo, vol. III, págs. 439 e 440)
define a relação jurídico-administrativa como aquela que confere poderes de
autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os
particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos ou particulares
perante a Administração.
[13]
Neste sentido, veja-se o Acórdão
do Tribunal de Conflitos de 9 de Junho 2010 (P. 012/10) e o Acórdão do Tribunal
de Conflitos de 29 de Setembro de 2010 (P. 02/10).
[15]
FREITAS DO AMARAL, Diogo e AROSO DE ALMEIDA,
Mário, «Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo», p. 21 e ss;
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos in «A Justiça Administrativa», 4ª ed., p. 107 e
ss; SÉRVULO CORREIA, in «Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes» 1995, p.
254; RUI MEDEIROS, «Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de
responsabilidade», in CJA, n° 16, pp. 35 e 36. JORGE MIRANDA, «Os parâmetros
constitucionais da reforma do contencioso administrativo», in CJA, n° 24, p. 3
e segs.
[16]
Acórdãos do Tribunal de
Conflitos n° 372/94 de 3 de Setembro de 1994, nº 347/97 de 25 de Julho de 1997
e nº 284/2003 de 29 de Maio de 2003.
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