Sunday, 3 November 2019

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Maria Teresa Vizeu Pinheiro

              ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE
                                    (11/05/2017 - (P. 00561/13.4BEPNF-A))


A presente análise tem por objeto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 11 de Maio de 2017[1], onde é posta em causa a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que se julgou incompetente para conhecer dos pedidos formulados pelos autores. A pertinência do acórdão encontra-se traçada na fronteira ténue entre as ações reais e as ações de indemnização por responsabilidade extracontratual sujeitas ao regime da responsabilidade extracontratual do Estado, uma vez que estas matérias se encontram muito frequentemente ligadas e essa imprecisão acarreta inúmeras consequências na delimitação da competência material entre a jurisdição administrativa e civil. 

Em primeiro lugar, faremos o enquadramento factual do Acórdão em questão, revelando os pedidos e os factos que foram chamados à ilação. De seguida, analisaremos a tomada de posição do Tribunal Central Administrativo Norte. Por fim, faremos a nossa análise crítica, analisando a delicadeza da determinação da competência material da jurisdição administrativa na era contemporânea do Contencioso Administrativo.

I) ENQUADRAMENTO FACTUAL DO ACÓRDÃO


A) PEDIDO FORMULADO JUNTO DO TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA


Analisemos, ainda que sinteticamente, o pedido formulado em primeira instância para nos concentrarmo-nos depois, com maior pormenor, no que foi decidido em sede de recurso.  Em primeira instância, os autores pedem não só o reconhecimento do direito de propriedade relativamente às águas detidas nas “Poça das Canas”, “Poça do Meio”, “Poça da Beira da Estrada ou da Fonte” e “Poça da Lage” como também do direito de servidão, de presa e aqueduto sobre as ditas poças. De facto, desde finais de Outubro de 2010, viram-se impedidos de usar aquelas águas, dada a construção da autoestrada A4/IP4 – Amarante-Vila Real. A isto acresce um pedido de natureza condenatória: os autores pedem a condenação das Rés, Auto Estrada do Manhão S.A e outras, a restituírem as águas e a realizarem as obras necessárias para o efeito. É de notar que os autores pedem, na impossibilidade de procederem às obras necessárias, que estas sejam condenadas ao pagamento de uma indemnização em virtude da aludida privação de água. Ora, sendo certo que a incompetência do Tribunal em razão da matéria constitui exceção dilatória cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa[2] e o seu conhecimento pelo tribunal precede o de qualquer outra matéria[3], o Tribunal Administrativo Fiscal de Penafiel identificou, desde logo, a sua incompetência em razão da matéria, razão pela qual a questão subiu ao Tribunal Central Administrativo Norte.

B) PEDIDO FORMULADO JUNTO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE


Em sede de recurso, os recorrentes invocam que a declaração de incompetência do tribunal administrativo não tem fundamento por várias ordens de razão. 

Em primeiro lugar, alegam que, apesar da matéria de direitos reais não se integrar na competência da jurisdição administrativa, a verdade é que existem vários tipos de ações em que se exige a verificação e a declaração judicial de uma situação jurídica anteriormente existente. É o que acontece no caso em apreço, visto que os pedidos de indemnização se encontram em cumulação aparente com os pedidos de declaração e reconhecimento de propriedade. Assim, os recorrentes concluem que a decisão recorrida viola o art.º 4.º, n.º 1, alínea h) do ETAF e o art.º 1. ° n.º 5 da Lei 67/2007, pois entendem que, se a jurisdição administrativa é materialmente competente para a apreciação dos pedidos de condenação, é também necessariamente competente para apreciar os correspondentes pedidos declarativos.

 Em segundo lugar, alegam que compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das ações que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. A construção da autoestrada tinha em vista a realização do interesse público e foi essa atuação, reveladora de um real ius imperium, que originou a dita violação dos direitos de propriedade e de servidão de águas. Assim, para as partes em causa, trata-se verdadeiramente de uma relação jurídica administrativa.

2) SOLUÇÃO ADOTADA PELO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE

O Tribunal de Recurso começou por identificar o critério substancial delimitador da competência da jurisdição administrativa nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da CRP, realidade que é reforçada pelo artigo 1.º do ETAF. A jurisprudência administrativa[4] tem bem assente que “para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir)”. Neste sentido, o Tribunal fez referência ao Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16/02/2012 (P. nº020/11), onde se colocou um problema semelhante. O aludido acórdão adotou a solução de que, estando perante uma ação de reivindicação do direito de propriedade e portanto, perante uma ação real, a competência será da jurisdição comum pois não existe, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação (nomeadamente, artigo 4º do ETAF). 

O Tribunal tentou superar o argumento apresentado pelos recorrentes relativamente ao facto de se tratar de uma cumulação aparente relembrando que o pedido indemnizatório era feito a título subsidiário, não revestindo assim uma natureza autónoma[5]. Tendo em conta que o tribunal administrativo é incompetente para os primeiros pedidos alegados pelos autores, onde é revelada a preocupação da proteção do seu direito de propriedade, o recurso foi considerado improcedente dada a inexistência de uma relação jurídica administrativa.

3) ANÁLISE CRÍTICA


A)  PROBLEMAS QUE SE COLOCAM

O primeiro problema identificado consiste na caracterização da ação quanto à sua natureza e o seu objeto. A questão da delimitação da competência vai variar consoante estarmos perante uma ação de reivindicação ou se, pelo contrário, perante uma ação de responsabilidade extracontratual a que seja aplicável o regime de responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

O segundo problema é o problema da cumulação aparente. Admitindo que a resposta ao primeiro problema supracitado é que o litígio enquadra-se no perímetro de ação de reivindicação, cabe-nos perguntar se o facto de estarmos a discutir, paralelamente, a responsabilidade extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, não se traduz na atribuição da competência material à jurisdição administrativa ao abrigo do art. 4º h) do ETAF e número 2 do art. 5º da Lei 67/2007. Ao não permitir o Tribunal Administrativo analisar a questão prévia do direito de propriedade, não significaria isso reduzir de forma excessiva o âmbito da alínea h) do art. 4º ETAF uma vez que as ações de responsabilidade extracontratual dependem, muitas vezes, da prévia verificação e declaração judicial da situação jurídica a que correspondem? Não iria esta posição contra a lógica do art. 4º do CPTA e o princípio da concentração e da integralidade da relação jurídica?

Por fim, a questão de saber se estamos perante uma relação jurídica administrativa não é, a meu ver, um problema autónomo na medida em que esta questão já se encontra subjacente à questão de saber se o Tribunal Administrativo é competente para conhecer da responsabilidade extracontratual nos termos da alínea h) do artº. 4º do ETAF e do número 2 do art.º 5º da Lei 67/2007 visto que a competência material da jurisdição administrativa terá sempre como crivo delimitador a existência de uma relação jurídica administrativa.

B) TOMADA DE POSIÇÃO


Relativamente à primeira questão, tal como foi referido, e bem, no acórdão, a competência material é aferida de acordo com a configuração da petição inicial “independentemente da legitimidade das partes ou da procedência da ação”[6]. Assim, afere-se pela forma como o autor configura a ação e pelos objetivos com ela prosseguidos.  Como é bem patente na petição inicial, o que está em causa é a preocupação pela fundamentação na aquisição da propriedade e do direito de servidão. Assim, a própria causa de pedir deixa bem claro a identificação da ação como uma ação real, ficando assim excluída a invocação quer da alínea h), quer da alínea g) do art. 4º do ETAF.

O problema da cumulação aparente é, a meu ver, um “falso problema”. De facto, como indica Miguel Teixeira de Sousa, a cumulação aparente é aquela em que “a parte formula vários pedidos, mas ela não aufere benefícios distintos pela procedência de cada um desses pedidos”[7] ou na aceção de Vasco Pereira da Silva, é aquela onde os pedidos dizem respeito a “uma e mesma utilidade própria”[8]. É verdade que não podemos negar, numa lógica de mudança de paradigma processual, que o Contencioso Administrativo se transformou num verdadeiro Contencioso de “plena jurisdição”, onde se admite “todos os pedidos necessários à tutela dos direitos das relações administrativas”[9].  Relembrando a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira[10], o conceito genérico de relações jurídico-administrativas pretendeu “viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado”. Encontramos a mesma essência do conceito na posição de Mário Aroso de Almeida[11] e ainda Freitas do Amaral[12].

 É certo que não se pode negar, de forma absoluta, o eventual relacionamento destas matérias com questões de direito público (no caso em apreço, a construção da autoestrada revela traços de exercício de poderes de autoridade) mas entende-se que só acidentalmente se colocará tal problema se o detentor se “socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a detenção”[13]. Assim, não é por estarem em causa poderes de autoridade, que a matéria se insere necessariamente na jurisdição administrativa. Aliás, como foi referido pelo Tribunal, o pedido indemnizatório foi formulado a título subsidiário e esse pedido apenas pode determinar uma extensão da competência material dos tribunais judiciais. O centro do pedido baseia-se no direito de propriedade e por essa razão, há que concluir que a matéria em causa cabe necessariamente na competência da jurisdição civil. Já não seria esta a solução se o autor tivesse colocado a questão de forma distinta. 

Veja-se por exemplo o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15 de Março de 2018[14]: estava também em causa uma questão de responsabilidade extracontratual por violação do direito de propriedade de dois poços pertencentes aos autores. Ora, o Tribunal de conflitos considerou que tal conflito era da competência material da jurisdição administrativa porque os autores não discutiam nem reclamavam o seu direito de propriedade sobre os dois poços em causa: a sua pretensão consistia na responsabilidade extracontratual da Ré, sujeita a um regime de direito público, sendo os direitos de propriedade meros pressupostos factuais e jurídicos na base da pretensão.

A meu ver, existe ainda outro argumento que podemos apontar. Ao admitir que os tribunais administrativos fossem competentes para conhecer de “todos os pedidos” sempre que existisse uma questão prévia de apreciação da propriedade, tal significaria extravasar a competência dos tribunais judiciais. No caso em apreço, não só a centralidade do pedido se focava na questão do direito de propriedade, como o pedido de indemnização era feito a título subsidiário. A cláusula presente na alínea o) do art. 4º do ETAF e no número 3 do 211º da CRP não pode ser interpretada como uma reserva material absoluta da jurisdição administrativa e fiscal. Na verdade, quer a doutrina[15] , quer a jurisprudência[16] consideram que se trata apenas de uma “reserva relativa que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios a essa reserva desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, permitindo assim o texto constitucional que o legislador ordinário, dentro desses limites, possa alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas”.


Maria Teresa Prudêncio Vizeu Pinheiro
Nº 57356
4º ano, Subturma 10
2019



[1] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (P. 00561/13.4BEPNF-A) de 11 de Maio de 2017.
[2] Como dispõe o 493.º, n.º 1 e 2 e 494.º, al. a) do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA.
[3] Nos termos do 13º do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos, o “âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
[4] Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 9 de Junho de 2010 (Proc. n.º 05/10).

[5] O próprio 1284º do Código Civil, que aborda a matéria possessória, revela que o pedido indemnizatório se integra na ação da restituição da coisa, dispondo o preceito que “o possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho”.
[6] Neste sentido, veja-se o Acórdão do Colendo STA de 16 de Fevereiro de 2012 (P. nº 021/11).
[7] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel «Cumulação de Pedidos e Cumulação Aparente no Contencioso Administrativo», in «Cadernos de Justiça», nº34 Julho/ Agosto, 2002, p.37.
[8] PEREIRA DA SILVA, Vasco «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaios sobre as ações no novo processo administrativo», 2ª edição, 2009, p. 323.
[9]  PEREIRA DA SILVA, Vasco «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaios sobre as ações no novo processo administrativo», 2ª edição, 2009, p. 327.
[10] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 566 e 567.
[11] AROSO DE ALMEIDA, Mário (O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 57) afirma que as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo o critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. Nesta perspetiva, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de atuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.
[12] FREITAS DO AMARAL, Diogo (Direito Administrativo, vol. III, págs. 439 e 440) define a relação jurídico-administrativa como aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos ou particulares perante a Administração.
[13] Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 9 de Junho 2010 (P. 012/10) e o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 29 de Setembro de 2010 (P. 02/10).
[14] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15 de Março de 2018 (P. 062/17).
[15]  FREITAS DO AMARAL, Diogo e AROSO DE ALMEIDA, Mário, «Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo», p. 21 e ss; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos in «A Justiça Administrativa», 4ª ed., p. 107 e ss; SÉRVULO CORREIA, in «Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes» 1995, p. 254; RUI MEDEIROS, «Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade», in CJA, n° 16, pp. 35 e 36. JORGE MIRANDA, «Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo», in CJA, n° 24, p. 3 e segs.
[16] Acórdãos do Tribunal de Conflitos n° 372/94 de 3 de Setembro de 1994, nº 347/97 de 25 de Julho de 1997 e nº 284/2003 de 29 de Maio de 2003.

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