A destruição da Santíssima Trindade
(interesse direto, pessoal e legítimo) e apreciações sobre 55º/1 a) CPTA
Enquadramento
Geral:
O 55º/1 a) CPTA está inserido nos
pressupostos relativos às partes, desde logo, mais concretamente, refere-se à
legitimidade processual, que é o único pressuposto processual que é objeto de
regulamentação própria no CPTA, não sendo assumido como uma condição de
procedência da ação. Regra geral, possui legitimidade ativa quem alegue a
titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta o
apresente como em condições de figurar nele como autor (9º/1 CPTA). A
legitimidade ativa não se esgota nesse preceito. Além disso o 9º/1 CPTA refere-se
ao regime comum, de aplicação residual e os tipos de processo que o envolvem
aproximam-se dos processos civis. Nestes termos, o 9º/1 CPTA é derrogado por
regimes especiais, desde logo o que no presente trabalho está em causa, o 55º
CPTA (entre outros como o 57º, 68º, 73º, 77º e 77º-A). Estes regimes especiais
são estabelecidos tendo em conta os diferentes tipos de pretensões, sendo que
no 55º CPTA está em causa uma ação de impugnação do ato administrativo. Cumpre
ainda assinalar que estes regimes especiais concretizam um alargamento da
legitimidade ativa, na medida em que não pressupõem uma pré-existência de uma
relação jurídica entre as partes. Garante-se assim uma maior proteção da tutela
efetiva dos particulares. Cabe ainda referir que o 55º não está numa relação de
especialidade proprio sensu face ao
9º/1 CPTA mas antes uma especialidade que significa uma diferença traduzida num alargamento face ao critério geral. O acórdão do STA proc. 01054/08, a este
propósito, enuncia uma “adaptação” do princípio geral do 9º/1 CPTA.
Para Vieira de Andrade, a função de
impugnação de atos administrativos é, nos seus termos mais amplos, a do
controlo da sua invalidade. Pretende-se assim obter a anulação do ato (sentença
constitutiva) ou a sua declaração de nulidade (sentença declarativa). Para este
autor, o 55º CPTA tem um alcance objetivista.
Interesse direto, pessoal e legítimo
O 55º/1 a) CPTA, atualmente, apenas
faz menção que para se aferir da legitimidade ativa dos particulares para a
ação de impugnação de atos administrativos apenas se tem de se verificar o
carácter direto e pessoal do interesse. Porém, esta nem sempre foi a redação do
artigo, desde logo os antigos 821º CA e 46º Regulamento do STA, aditavam o carácter
de interesse “legítimo”. Esta tradição decorre da herança do sistema Francês,
que qualificava de forma tripla este interesse como condição de legitimidade no
recurso direto de anulação.
A questão passa por saber, quem pode
ao certo impugnar atos administrativos, quem tem legitimidade ativa para tal.
Segundo Justino António de Freitas e para a restante doutrina dominante da
época, as palavras-chave para a competência administrativa era “interesse” e
“direto”.
Maurice
Hauriou, “criador” da tripla qualificação, referia que o interesse teria de se
verificar concretamente na pessoa do recorrente (personnel au réclamant), sem
que se confunda com o interesse geral da legalidade ou de uma coletividade, que
também teria de satisfazer um interesse atual (direct ou immédiat) e por último
que teria de ser resultado de uma situação jurídica definida em que o
interessado se encontrasse face à administração (légitime). Na doutrina
Francesa atual esta qualificação do interesse vai-se mantendo atual.
Para
Marcello Caetano, o interesse era uma condição de legitimidade no recurso direto
de anulação. Sendo que para o autor, haveriam que ser tratadas duas questões. A
primeira acerca de saber quais os atributos necessários dos interesses para se
apurar a legitimidade. A segunda passa por saber o lugar das relações entre o
processo gracioso e o processo contencioso. Já antes do direito positivo
Português exigir como condição da legitimidade a posse de um interesse direito,
pessoal e legítimo, o STA definia antes um necessário interesse formal, este
interesse seria o interesse processual, aquele que é digno de obter a atenção
dos órgãos jurisdicionais. Nesta medida, o Supremo exigia que o recorrente se
apresente como titular de um direito subjetivo cuja violação alegasse. Para
averiguar da primeira questão, cabe caracterizar os conceitos de “interesse
direto, pessoal e legítimo” sendo que há dois caminhos que podem ser seguidos:
1) Fugir
a critérios e definições, para à maneira do Conselho de Estado Francês,
conservar a maior liberdade de decisão perante o caso concreto;
2) Fixar
conceitos para dar aos particulares a garantia de uma certeza de rejeição ou
receção dos seus recursos, cujas variações desses conceitos apenas surgiriam
quanto à análise dos diferentes casos concretos. Foi esta a posição seguida
pelo STA Português.
Quanto
à segunda questão, há duas conceções, a monista, para a qual o processo
administrativo é um só, embora possa comportar duas fases, são elas a fase
graciosa e a fase contenciosa, sendo que é esta conceção que é aceite na antiga
doutrina portuguesa. Por contraposição a esta tese, estava a tese dualista.
Para
Marcello Caetano, o interesse deveria ter várias qualidades essenciais. Deveria
ser pessoal, na medida em que serviria para não confundir este recurso com a
actio popularis (ação popular), pois aqui o interesse deverá provir de uma
situação jurídica particular em que se ache que o reclamante face ao ato
atacado poderia ser lesado, tem de haver um certo grau de individualização. Está
preenchido o carácter direto quando o provimento do recurso implique a anulação
de atos jurídicos que constituíam obstáculo a satisfação de pretensões
anteriormente formuladas pelo recorrente, ou que sejam causa imediata de
prejuízos infligidos pela administração. O carácter legítimo teria de resultar
de uma situação jurídica definida em face da administração, ou seja, o
interesse é legítimo se resultar de um direito adquirido do administrado
oponível à administração. Este carácter legítimo também apontaria para que a
utilidade conseguida pelo recorrente não fosse reprovada pela ordem jurídica.
Já
para Almeida Ferrão, o caracter direto existiria quando o interesse fosse atual
e certo, por contraposição a um interesse eventual ou diferido. O interesse que
ainda não nasceu não pode ser direto porque, desde logo, ainda não é interesse.
O
atual 55º/1 a) CPTA
Abandonou-se
a referência ao carácter legítimo do interesse, sendo que esta opção se justifica
porque se este carácter legítimo for apenas reportado à ideia de que o
interesse que move o autor não pode ser ilícito então este requisito não possui
uma real autonomia, seguindo Mário Aroso de Almeida. Se for porventura
entendido como interesse legalmente protegido não poderá ser assumido como
requisito geral para que um interessado seja admitido a impugnar um ato administrativo,
desde logo, porque para a doutrina maioritária, o “designadamente” evidencia um
carácter exemplificativo do preceito, ou seja que não é necessária uma ofensa
de um direito ou interesse legalmente protegido, basta a circunstância do ato
estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na
esfera jurídica do autor. Para Vieira de Andrade, o facto de já não se exigir
que o interesse seja “legítimo” não significa que tal interesse possa ser ilegítimo
mas serve apenas para acentuar que basta um interesse de facto, não se exigindo
a titularidade de um interesse legalmente protegido (esta divergência doutrina
será tratada infra no próximo
parágrafo).
Cabe,
desde já, enunciar uma das divergências doutrinárias constante do 55º/1 a)
CPTA. Para uns autores, a legitimidade ativa dos particulares pode ser aferida
tendo em conta meros interesse de facto, não decorrentes de uma posição
normativo-subjetiva (algo que é admitido por Vieira de Andrade, Sérvulo
Correia, Carlos Fernandes Cadilha e dominante na doutrina e jurisprudência
portuguesa) para outros, desde logo, Vasco Pereira da Silva e Rui Machete é
negada essa possibilidade, sendo que estes últimos dois autores convolam as
situações de interesse de facto reconduzindo-as à identificação de posições
subjetivas dos particulares. Esta questão é importante porque se associa o
interesse como condição da legitimidade.
Para
Mário Aroso de Almeida, o preenchimento do 55º/1 a) CPTA não é necessária a
verificação da titularidade efetiva da situação jurídica invocada, basta a mera
alegação pelo autor dessa titularidade (teoria subjetivista- Alemã, pelo
contrário se seguíssemos a teoria objetivista- Francesa, teríamos uma tutela do
interesse público, da legalidade, que atribuiria, no extremo, legitimidade a
toda e qualquer pessoa que testemunhasse algum ato ilegal. Seguindo a teoria
subjetivista, o que se está a tutelar são os direitos e interesses pessoais dos
cidadãos). Este autor distingue o carácter direto do pessoal. O interesse
pessoal será aquele que verdadeiramente integra o pressuposto da legitimidade
processual, trata-se assim de exigir uma utilidade pessoal com a anulação/
declaração de nulidade do ato administrativo, algo que o interessado
reivindique para si próprio. O interesse será direto desde que seja atual, efetivo,
trata-se de saber se o interessado está numa situação de efetiva lesão que
justifique o meio impugnatório. Posto isto, poderá concluir-se que para este
autor, o interesse direto não integra a legitimidade ativa mas antes diz
respeito ao interesse processual, ou seja, se há uma efetiva necessidade de
tutela judiciária, se há interesse em agir. Para haver legitimidade ativa basta
averiguar o carácter pessoal do interesse visto que o carácter direto já diz
respeito à averiguação do interesse processual. Por outras palavras, poderá
concluir-se que para o 55º/1 a) CPTA estar preenchido nos dois pressupostos que
apresenta (interesse direito e interesse pessoal) que a existência de interesse
processual é uma condição para tal.
Contrariamente,
José Duarte Coimbra refere, fazendo um trocadilho, que há uma
“legitimidade” do interesse na legitimidade ativa de particulares para a
impugnação de atos administrativos, por contraposição à célebre frase de
Macello Caetano- “o interesse como condição da legitimidade no recurso directo
de anulação”. Este autor refere que há uma confusão envolta desta matéria e
pretende assim fazer um “afinamento” conceptual. Tal como para Vasco Pereira da
Silva e Rui Machete também para José Duarte Coimbra a legitimidade ativa dos
particulares no 55º/1 a) não pode ser aferida tendo em conta meros interesses
de facto. A associação feita entre interesse como condição de legitimidade é
explicável em termos históricos mas atualmente já não tem virtualidade. O
artigo em causa continuar a fazer essa associação porque sempre o fez e sempre
o fará, estão em causa razões de imobilismo. Este autor pretende assim atacar
este imobilismo. Sendo que começa por tentar caracterizar o que será este “interesse”
vertido no 55º/1 a) CPTA.
O
interesse é um conceito controvertido, Menezes Cordeiro, no direito privado
duvida da sua operatividade dogmática. Sendo que o interesse pode ser
concretizado de várias formas:
1) O
interesse da impugnação satisfaria uma certa necessidade (Margarida Lima Rego),
um contra-argumento pode passar pela dificuldade da prévia definição dessa
necessidade.
2) O
interesse como se a impugnação fosse algo bom para o titular, um
contra-argumento a utilizar poderia ser qual seria o valor do bem e quem o
definiria?;
3) O
autor teria razões para querer essa impugnação (Pedro Múrias).
Para
José Duarte Coimbra, restaria assim a terceira opção, ou seja, observar o
interesse como razão jurídica para o querer da impugnação, desta forma
justifica-se o conceito de legitimidade. Ter interesse, e portanto, ter
legitimidade é ter uma base jurídica, nesta medida a base desta legitimidade
não poderá ser um mero interesse de facto mas terá antes de ser uma qualquer
posição jurídica subjetiva.
Em suma, enquanto para Mário Aroso
de Almeida o interesse pessoal seria requisito necessário para haver
legitimidade ativa nos termos do 55º/1 a) CPTA e por sua vez o interesse direto
já estaria relacionado com o interesse em agir. Para José Duarte Coimbra o
interesse vertido no 55º/1 a) CPTA não é o interesse processual mas um outro
interesse que com ele não se confunde, além disso o qualificativo do interesse como
“pessoal” e o antigo “interesse legítimo” não trazem nada de novo à referência
do interesse nada medida em que a posição jurídica ao existir é claramente
pessoal e sendo conferida pelo ordenamento jurídico também ela será legítima.
Restando assim o carácter direto do interesse poderemos observá-lo como sendo
uma “imediatividade” entre a impugnação do ato administrativo e os benefícios
daí decorrentes (Vieira de Andrade) ou então poderíamos interpretar esta
característica do interesse direto como “atualidade” e “efetividade” teríamos
de a considerar como ligada ao interesse processual (Mário Aroso de Almeida).
Por seu turno, para José Coimbra, o interesse processual, infra mencionado, nada tem que ver com a efetividade e atualidade
do interesse direto do 55º/1 a) CPTA, ou seja, a convolação de “interesse
direto” para interesse processual é desnecessária porque a falta de atualidade
ou de efetividade manifesta-se apenas na questão do mérito da causa e nessa
medida pode ainda continuar a haver um interesse processual porque a utilidade
e a adequação do meio processual ainda estão presentes.
O STA tem entendido que o “interesse
direto” deve ser apreciado por referência ao conteúdo da petição inicial, em
funções das vantagens que o impugnante alegue ter com a impugnação do ato, tais
efeitos devem repercutir-se de forma direta e imediata na esfera do impugnante.
O verdadeiro Interesse Processual
Independentemente da posição
perfilhada sobre que tipo de “interesse” está vertido no 55º/1 a) CPTA, cabe
referir que para Miguel Teixeira de Sousa o interesse processual, no processo
civil e como regime subsidiário aplicável no contencioso administrativo, terá
de definir-se duplamente: 1) em termos de utilidade, de indispensabilidade do
autor recorrer em juízo e 2) em termos de adequação do meio processual
escolhido. Se o autor terá uma utilidade com o processo, consequentemente o réu
terá um prejuízo. O Tribunal Central Administrativo do Sul define interesse
processual como “ pressuposto processual
autónomo (…) necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir
determinada ação”. O interesse processual é, no contencioso administrativo,
uma figura de âmbito geral e há três locais onde de forma direta/indiretamente
se refere o interesse processual:
1) 39º
CPTA- O interesse em agir revela maior acuidade sobretudo no que respeita a
ações de simples apreciação;
2) 51º/4
CPTA- relativo aos atos de indeferimento, face a estes deverá ser formulado uma
ação de condenação à prática do ato devido pois, de entre outros, será o meio
mais adequado para realizar a pretensão do autor, na medida em que, por exemplo
pedir a simples declaração de ilegalidade do ato de indeferimento não serviria de
nada porque o que o interessado pretende é obter um ato de deferimento;
3) 56º
CPTA- Vasco Pereira da Silva entende o requisito da não-aceitação do ato
administrativo impugnado como uma manifestação do interesse processual, por sua
vez, Vieira de Andrade e Mário Aroso de Almeida entendem-no como um pressuposto
processual autónomo.
A partir do momento em que no
Contencioso administrativo, o novo sistema que coloca à disposição dos
interessados várias novas vias de acesso à justiça administrativa, passam a
existir meios processuais adequados à obtenção de certos resultados, pelo que
deixa de haver interesse processual na utilização de outros meios que do ponto
de vista da efetividade de tutela não se apresentam tão adequados, tal como
refere Mário de Aroso de Almeida- O novo
regime nos tribunais administrativos, Almedina, 2004. O nosso CPTA, tal
como o Alemão, não consagra em termos gerais o interesse em agir como
pressuposto processual mas não deixa este pressuposto de ter um alcance geral. Pode
assim haver um interesse pessoal, direto e legítimo sem que haja um interesse
processual.
Bibliografia:
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AAFDL editora, 2018.
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Marcello, Estudos de Direito
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-MACHETE,
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contra-interessados nas ações administrativas comuns e especiais in Estudos em
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2006.
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ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de
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Margarida Lima, O contrato de Seguro e
Terceiro, Coimbra editora, 2010.
-MÚRIAS,
Pedro, O que é um interesse, no sentido
que geralmente interesse aos juristas in estudos em memória ao Prof. Doutor
Saldanha Sanches, Coimbra editora, 2011.
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SILVA, Vasco Pereira da, Para um
Contencioso dos Particulares, Almedina, 2005.
-COIMBRA,
José Duarte, A “legitimidade” do
interesse na legitimidade ativa de particulares para a impugnação de atos
administrativos, paper on-line (2013).
Neuza Felizardo Carreira, nº 57098, subturma 10, 4º ao, Turma A.
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