Friday, 15 November 2019

A destruição da Santíssima Trindade- Neuza Felizardo Carreira





A destruição da Santíssima Trindade (interesse direto, pessoal e legítimo) e apreciações sobre 55º/1 a) CPTA


Enquadramento Geral:



            O 55º/1 a) CPTA está inserido nos pressupostos relativos às partes, desde logo, mais concretamente, refere-se à legitimidade processual, que é o único pressuposto processual que é objeto de regulamentação própria no CPTA, não sendo assumido como uma condição de procedência da ação. Regra geral, possui legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta o apresente como em condições de figurar nele como autor (9º/1 CPTA). A legitimidade ativa não se esgota nesse preceito. Além disso o 9º/1 CPTA refere-se ao regime comum, de aplicação residual e os tipos de processo que o envolvem aproximam-se dos processos civis. Nestes termos, o 9º/1 CPTA é derrogado por regimes especiais, desde logo o que no presente trabalho está em causa, o 55º CPTA (entre outros como o 57º, 68º, 73º, 77º e 77º-A). Estes regimes especiais são estabelecidos tendo em conta os diferentes tipos de pretensões, sendo que no 55º CPTA está em causa uma ação de impugnação do ato administrativo. Cumpre ainda assinalar que estes regimes especiais concretizam um alargamento da legitimidade ativa, na medida em que não pressupõem uma pré-existência de uma relação jurídica entre as partes. Garante-se assim uma maior proteção da tutela efetiva dos particulares. Cabe ainda referir que o 55º não está numa relação de especialidade proprio sensu face ao 9º/1 CPTA mas antes uma especialidade que significa uma diferença traduzida num alargamento face ao critério geral. O acórdão do STA proc. 01054/08, a este propósito, enuncia uma “adaptação” do princípio geral do 9º/1 CPTA.

            Para Vieira de Andrade, a função de impugnação de atos administrativos é, nos seus termos mais amplos, a do controlo da sua invalidade. Pretende-se assim obter a anulação do ato (sentença constitutiva) ou a sua declaração de nulidade (sentença declarativa). Para este autor, o 55º CPTA tem um alcance objetivista.


Interesse direto, pessoal e legítimo


            O 55º/1 a) CPTA, atualmente, apenas faz menção que para se aferir da legitimidade ativa dos particulares para a ação de impugnação de atos administrativos apenas se tem de se verificar o carácter direto e pessoal do interesse. Porém, esta nem sempre foi a redação do artigo, desde logo os antigos 821º CA e 46º Regulamento do STA, aditavam o carácter de interesse “legítimo”. Esta tradição decorre da herança do sistema Francês, que qualificava de forma tripla este interesse como condição de legitimidade no recurso direto de anulação.

            A questão passa por saber, quem pode ao certo impugnar atos administrativos, quem tem legitimidade ativa para tal. Segundo Justino António de Freitas e para a restante doutrina dominante da época, as palavras-chave para a competência administrativa era “interesse” e “direto”.

Maurice Hauriou, “criador” da tripla qualificação, referia que o interesse teria de se verificar concretamente na pessoa do recorrente (personnel au réclamant), sem que se confunda com o interesse geral da legalidade ou de uma coletividade, que também teria de satisfazer um interesse atual (direct ou immédiat) e por último que teria de ser resultado de uma situação jurídica definida em que o interessado se encontrasse face à administração (légitime). Na doutrina Francesa atual esta qualificação do interesse vai-se mantendo atual.

Para Marcello Caetano, o interesse era uma condição de legitimidade no recurso direto de anulação. Sendo que para o autor, haveriam que ser tratadas duas questões. A primeira acerca de saber quais os atributos necessários dos interesses para se apurar a legitimidade. A segunda passa por saber o lugar das relações entre o processo gracioso e o processo contencioso. Já antes do direito positivo Português exigir como condição da legitimidade a posse de um interesse direito, pessoal e legítimo, o STA definia antes um necessário interesse formal, este interesse seria o interesse processual, aquele que é digno de obter a atenção dos órgãos jurisdicionais. Nesta medida, o Supremo exigia que o recorrente se apresente como titular de um direito subjetivo cuja violação alegasse. Para averiguar da primeira questão, cabe caracterizar os conceitos de “interesse direto, pessoal e legítimo” sendo que há dois caminhos que podem ser seguidos:

1)      Fugir a critérios e definições, para à maneira do Conselho de Estado Francês, conservar a maior liberdade de decisão perante o caso concreto;
2)      Fixar conceitos para dar aos particulares a garantia de uma certeza de rejeição ou receção dos seus recursos, cujas variações desses conceitos apenas surgiriam quanto à análise dos diferentes casos concretos. Foi esta a posição seguida pelo STA Português.

Quanto à segunda questão, há duas conceções, a monista, para a qual o processo administrativo é um só, embora possa comportar duas fases, são elas a fase graciosa e a fase contenciosa, sendo que é esta conceção que é aceite na antiga doutrina portuguesa. Por contraposição a esta tese, estava a tese dualista.

Para Marcello Caetano, o interesse deveria ter várias qualidades essenciais. Deveria ser pessoal, na medida em que serviria para não confundir este recurso com a actio popularis (ação popular), pois aqui o interesse deverá provir de uma situação jurídica particular em que se ache que o reclamante face ao ato atacado poderia ser lesado, tem de haver um certo grau de individualização. Está preenchido o carácter direto quando o provimento do recurso implique a anulação de atos jurídicos que constituíam obstáculo a satisfação de pretensões anteriormente formuladas pelo recorrente, ou que sejam causa imediata de prejuízos infligidos pela administração. O carácter legítimo teria de resultar de uma situação jurídica definida em face da administração, ou seja, o interesse é legítimo se resultar de um direito adquirido do administrado oponível à administração. Este carácter legítimo também apontaria para que a utilidade conseguida pelo recorrente não fosse reprovada pela ordem jurídica.

Já para Almeida Ferrão, o caracter direto existiria quando o interesse fosse atual e certo, por contraposição a um interesse eventual ou diferido. O interesse que ainda não nasceu não pode ser direto porque, desde logo, ainda não é interesse.


O atual 55º/1 a) CPTA


Abandonou-se a referência ao carácter legítimo do interesse, sendo que esta opção se justifica porque se este carácter legítimo for apenas reportado à ideia de que o interesse que move o autor não pode ser ilícito então este requisito não possui uma real autonomia, seguindo Mário Aroso de Almeida. Se for porventura entendido como interesse legalmente protegido não poderá ser assumido como requisito geral para que um interessado seja admitido a impugnar um ato administrativo, desde logo, porque para a doutrina maioritária, o “designadamente” evidencia um carácter exemplificativo do preceito, ou seja que não é necessária uma ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, basta a circunstância do ato estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor. Para Vieira de Andrade, o facto de já não se exigir que o interesse seja “legítimo” não significa que tal interesse possa ser ilegítimo mas serve apenas para acentuar que basta um interesse de facto, não se exigindo a titularidade de um interesse legalmente protegido (esta divergência doutrina será tratada infra no próximo parágrafo).

Cabe, desde já, enunciar uma das divergências doutrinárias constante do 55º/1 a) CPTA. Para uns autores, a legitimidade ativa dos particulares pode ser aferida tendo em conta meros interesse de facto, não decorrentes de uma posição normativo-subjetiva (algo que é admitido por Vieira de Andrade, Sérvulo Correia, Carlos Fernandes Cadilha e dominante na doutrina e jurisprudência portuguesa) para outros, desde logo, Vasco Pereira da Silva e Rui Machete é negada essa possibilidade, sendo que estes últimos dois autores convolam as situações de interesse de facto reconduzindo-as à identificação de posições subjetivas dos particulares. Esta questão é importante porque se associa o interesse como condição da legitimidade.

Para Mário Aroso de Almeida, o preenchimento do 55º/1 a) CPTA não é necessária a verificação da titularidade efetiva da situação jurídica invocada, basta a mera alegação pelo autor dessa titularidade (teoria subjetivista- Alemã, pelo contrário se seguíssemos a teoria objetivista- Francesa, teríamos uma tutela do interesse público, da legalidade, que atribuiria, no extremo, legitimidade a toda e qualquer pessoa que testemunhasse algum ato ilegal. Seguindo a teoria subjetivista, o que se está a tutelar são os direitos e interesses pessoais dos cidadãos). Este autor distingue o carácter direto do pessoal. O interesse pessoal será aquele que verdadeiramente integra o pressuposto da legitimidade processual, trata-se assim de exigir uma utilidade pessoal com a anulação/ declaração de nulidade do ato administrativo, algo que o interessado reivindique para si próprio. O interesse será direto desde que seja atual, efetivo, trata-se de saber se o interessado está numa situação de efetiva lesão que justifique o meio impugnatório. Posto isto, poderá concluir-se que para este autor, o interesse direto não integra a legitimidade ativa mas antes diz respeito ao interesse processual, ou seja, se há uma efetiva necessidade de tutela judiciária, se há interesse em agir. Para haver legitimidade ativa basta averiguar o carácter pessoal do interesse visto que o carácter direto já diz respeito à averiguação do interesse processual. Por outras palavras, poderá concluir-se que para o 55º/1 a) CPTA estar preenchido nos dois pressupostos que apresenta (interesse direito e interesse pessoal) que a existência de interesse processual é uma condição para tal.

Contrariamente, José Duarte Coimbra refere, fazendo um trocadilho, que há uma “legitimidade” do interesse na legitimidade ativa de particulares para a impugnação de atos administrativos, por contraposição à célebre frase de Macello Caetano- “o interesse como condição da legitimidade no recurso directo de anulação”. Este autor refere que há uma confusão envolta desta matéria e pretende assim fazer um “afinamento” conceptual. Tal como para Vasco Pereira da Silva e Rui Machete também para José Duarte Coimbra a legitimidade ativa dos particulares no 55º/1 a) não pode ser aferida tendo em conta meros interesses de facto. A associação feita entre interesse como condição de legitimidade é explicável em termos históricos mas atualmente já não tem virtualidade. O artigo em causa continuar a fazer essa associação porque sempre o fez e sempre o fará, estão em causa razões de imobilismo. Este autor pretende assim atacar este imobilismo. Sendo que começa por tentar caracterizar o que será este “interesse” vertido no 55º/1 a) CPTA.

O interesse é um conceito controvertido, Menezes Cordeiro, no direito privado duvida da sua operatividade dogmática. Sendo que o interesse pode ser concretizado de várias formas:

1)      O interesse da impugnação satisfaria uma certa necessidade (Margarida Lima Rego), um contra-argumento pode passar pela dificuldade da prévia definição dessa necessidade.

2)      O interesse como se a impugnação fosse algo bom para o titular, um contra-argumento a utilizar poderia ser qual seria o valor do bem e quem o definiria?;

3)      O autor teria razões para querer essa impugnação (Pedro Múrias).

Para José Duarte Coimbra, restaria assim a terceira opção, ou seja, observar o interesse como razão jurídica para o querer da impugnação, desta forma justifica-se o conceito de legitimidade. Ter interesse, e portanto, ter legitimidade é ter uma base jurídica, nesta medida a base desta legitimidade não poderá ser um mero interesse de facto mas terá antes de ser uma qualquer posição jurídica subjetiva.

            Em suma, enquanto para Mário Aroso de Almeida o interesse pessoal seria requisito necessário para haver legitimidade ativa nos termos do 55º/1 a) CPTA e por sua vez o interesse direto já estaria relacionado com o interesse em agir. Para José Duarte Coimbra o interesse vertido no 55º/1 a) CPTA não é o interesse processual mas um outro interesse que com ele não se confunde, além disso o qualificativo do interesse como “pessoal” e o antigo “interesse legítimo” não trazem nada de novo à referência do interesse nada medida em que a posição jurídica ao existir é claramente pessoal e sendo conferida pelo ordenamento jurídico também ela será legítima. Restando assim o carácter direto do interesse poderemos observá-lo como sendo uma “imediatividade” entre a impugnação do ato administrativo e os benefícios daí decorrentes (Vieira de Andrade) ou então poderíamos interpretar esta característica do interesse direto como “atualidade” e “efetividade” teríamos de a considerar como ligada ao interesse processual (Mário Aroso de Almeida). Por seu turno, para José Coimbra, o interesse processual, infra mencionado, nada tem que ver com a efetividade e atualidade do interesse direto do 55º/1 a) CPTA, ou seja, a convolação de “interesse direto” para interesse processual é desnecessária porque a falta de atualidade ou de efetividade manifesta-se apenas na questão do mérito da causa e nessa medida pode ainda continuar a haver um interesse processual porque a utilidade e a adequação do meio processual ainda estão presentes.

            O STA tem entendido que o “interesse direto” deve ser apreciado por referência ao conteúdo da petição inicial, em funções das vantagens que o impugnante alegue ter com a impugnação do ato, tais efeitos devem repercutir-se de forma direta e imediata na esfera do impugnante.


           
O verdadeiro Interesse Processual


            Independentemente da posição perfilhada sobre que tipo de “interesse” está vertido no 55º/1 a) CPTA, cabe referir que para Miguel Teixeira de Sousa o interesse processual, no processo civil e como regime subsidiário aplicável no contencioso administrativo, terá de definir-se duplamente: 1) em termos de utilidade, de indispensabilidade do autor recorrer em juízo e 2) em termos de adequação do meio processual escolhido. Se o autor terá uma utilidade com o processo, consequentemente o réu terá um prejuízo. O Tribunal Central Administrativo do Sul define interesse processual como “ pressuposto processual autónomo (…) necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir determinada ação”. O interesse processual é, no contencioso administrativo, uma figura de âmbito geral e há três locais onde de forma direta/indiretamente se refere o interesse processual:

1)      39º CPTA- O interesse em agir revela maior acuidade sobretudo no que respeita a ações de simples apreciação;

2)      51º/4 CPTA- relativo aos atos de indeferimento, face a estes deverá ser formulado uma ação de condenação à prática do ato devido pois, de entre outros, será o meio mais adequado para realizar a pretensão do autor, na medida em que, por exemplo pedir a simples declaração de ilegalidade do ato de indeferimento não serviria de nada porque o que o interessado pretende é obter um ato de deferimento;

3)      56º CPTA- Vasco Pereira da Silva entende o requisito da não-aceitação do ato administrativo impugnado como uma manifestação do interesse processual, por sua vez, Vieira de Andrade e Mário Aroso de Almeida entendem-no como um pressuposto processual autónomo.

A partir do momento em que no Contencioso administrativo, o novo sistema que coloca à disposição dos interessados várias novas vias de acesso à justiça administrativa, passam a existir meios processuais adequados à obtenção de certos resultados, pelo que deixa de haver interesse processual na utilização de outros meios que do ponto de vista da efetividade de tutela não se apresentam tão adequados, tal como refere Mário de Aroso de Almeida- O novo regime nos tribunais administrativos, Almedina, 2004. O nosso CPTA, tal como o Alemão, não consagra em termos gerais o interesse em agir como pressuposto processual mas não deixa este pressuposto de ter um alcance geral. Pode assim haver um interesse pessoal, direto e legítimo sem que haja um interesse processual.




Bibliografia:

- GOMES, Carla Amado, NEVES, Ana Fernanda, SERRÃO, Tiago – Comentário ao Novo Código de Procedimento Administrativo, Vol. I, AAFDL editora, 2018.

- ALMEIDA, Mário Aroso de, O Novo Regime de processo nos tribunais administrativos, 3º edição, Almedina, 2004.

-SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, 2º edição, Almedina, 2013.

-CAETANO, Marcello, Estudos de Direito Administrativo, Edições Ática, 2974.

-MACHETE, Rui Chancerelle de, A legitimidade dos contra-interessados nas ações administrativas comuns e especiais in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetnao, Vol. II, Coimbra Editora, 2006.

- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3º edição, Almedina, 2017.

-REGO, Margarida Lima, O contrato de Seguro e Terceiro, Coimbra editora, 2010.

-MÚRIAS, Pedro, O que é um interesse, no sentido que geralmente interesse aos juristas in estudos em memória ao Prof. Doutor Saldanha Sanches, Coimbra editora, 2011.

- SILVA, Vasco Pereira da, Para um Contencioso dos Particulares, Almedina, 2005.

-COIMBRA, José Duarte, A “legitimidade” do interesse na legitimidade ativa de particulares para a impugnação de atos administrativos, paper on-line (2013).


Neuza Felizardo Carreira, nº 57098, subturma 10, 4º ao, Turma A.

No comments:

Post a Comment

OS PROCESSOS URGENTES

Mariana Bernardo Catalino (24895) O CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL Considerando as diversas alterações ao CPTA, através do DL n...