Friday, 15 November 2019

Comentário ao Acórdão do TCAS de 24/05/2018, Pc: 1336/17.7BELSB - Inês Duarte Silva


Comentário ao Acórdão do TCAS de 24/05/2018, Pc: 1336/17.7BELSB

No acórdão em apreço está em causa perspectivar se os Tribunais Administrativos são competentes para o conhecer de uma decisão que versa uma impugnação de uma contra-ordenação prevista e punida ao abrigo do artigo 21º/1/a), do Decreto-lei nº 309/2002, de 16 de Dezembro, o qual regula a instalação e funcionamento de recintos de espectáculos no âmbito das competências das Câmaras Municipais. Mais concretamente, a arguida fora acusada da prática de um ilícito contra-ordenacional pela utilização de recinto sem licença para os efeitos de realização de espectáculos e de divertimentos públicos.

Como um dos pressupostos processuais relativos ao Tribunal, a competência em razão da jurisdição tem a função de determinar quando uma acção deve ser proposta no âmbito dos tribunais administrativos e fiscais, e não perante os tribunais judiciais. Como enuncia o Professor Mário Aroso de Almeida, a alínea l) do Artigo 4.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, afasta o critério constitucional patente na alínea o), devendo ser observada como uma norma especial que visa derrogar e fazer-se prevalecer face a esse critério, de modo a ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição.

Cabe analisar, no acórdão em concreto, se a impugnação da referida contra-ordenação integra a previsão normativa do artigo 4º/1/l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O Governo apresentou, com a revisão de 2015, à Assembleia da República uma proposta de lei de autorização legislativa, na qual a antiga alínea n) do nº1 do artigo 4º (actual alínea l)), que previa a competência dos tribunais administrativos para a resolução de litígios relativos às “impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado” passou apenas a atribuir a mencionada competência (pelo menos, expressamente) em matéria de urbanismo. Como justificação, foi feita menção à necessidade de, neste momento, ser adoptada uma “perspectiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem prática” e, com isto, remeter para uma futura e progressiva integração das restantes matérias na jurisdição administrativa.

Como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, a impugnação de decisões oriundas da aplicação de coimas foi inicialmente reservada aos Tribunais Judiciais por razões meramente logísticas, ou seja, existia um reduzido número de tribunais e juízes administrativos, o que conferia uma limitação relativa aos poderes instrutórios. 

Tendo a não concordar com a opção do legislador ao suprimir a competência dos Tribunais Administrativos à impugnação de decisões de aplicação de coimas por violação de normas administrativas em matéria de ambiente, ordenamento do território, património cultural e bens do Estado. Tendo optado por adiar este alargamento para data incerta, o legislador foge ao cumprimento do “mandato constitucional”[1], presente no artigo 212º/3 da Lei Fundamental.

Importa avançar com uma interpretação que vai para além do elemento literal subjacente ao preceito em causa: a competência dos Tribunais Administrativos para apreciar a impugnação de decisões que apliquem coimas por violação de normas administrativas urbanísticas estende-se às sanções acessórias que as acompanham[2].

No entanto, relativamente à redução do alargamento da jurisdição às contra-ordenações urbanísticas, importa, sobretudo, identificar que decisões de aplicação de coimas e respectivas sanções acessórias ficarão sujeitas à apreciação dos tribunais administrativos. Desde logo, estará em causa a impugnação das coimas[3] previstas no artigo 98º/2 a /7 do Decreto-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro[4], do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), por se verificar alguma das contra-ordenações previstas no nº1 do mesmo artigo, relativas à violação das regras aí estabelecidas, tendentes à regulação das operações urbanísticas, através do seu controlo prévio e atribuição dos respectivos títulos das operações urbanísticas e fiscalização[5].

Para além do RJUE que, manifestamente, consome grande parte das disposições relevantes sobre contra-ordenações urbanísticas, importa mencionar o Decreto-lei nº 307/2009, de 23 de Outubro[6], Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), cabendo aos tribunais administrativos a impugnação das coimas aplicadas nos nº 2 a 5 do artigo 77º-C deste regime, bem como das sanções subsumíveis às contra-ordenações previstas no nº 1 do mencionado artigo 77º-C.

Deve, ainda considerar-se o Decreto-lei nº 39/2008 de 7 de Março[7], Regime Jurídico da Instalação, Exploração e Funcionamento dos Empreendimentos Turísticos (RJIEFET), na constatação de que os seus preceitos serão tidos como reveladores de normas de natureza urbanística, pelo menos no que toca ao procedimento de controlo prévio das operações tendentes à sua instalação[8], pelo que devem as decisões de aplicação das coimas previstas nos nº2 a 5 do artigo 67º, bem como as sanções acessórias previstas no artigo 68º, serem impugnadas nos Tribunais administrativos, promovendo a alínea l) do nº1 do artigo 4º, a derrogação tácita da remissão presente no artigo 69º-A para o Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral do ilícito de Mera Ordenação Social) no que respeita à jurisdição competente para apreciar as sanções a serem aplicadas pelas Câmaras Municipais e pela ASAE.

Ora, o problema do referido acórdão prende-se com a indeterminação do conceito “matéria de urbanismo”. O Tribunal decidiu que a contra-ordenação em causa e a sua consequente impugnação não se enquadravam em matéria urbanística.
Não deixando de reconhecer a ténue fronteira do conceito entre “direito do ordenamento do território” e “direito do ambiente”, determinou “urbanismo” como sendo um núcleo essencial de normas que versam áreas como a ocupação, uso e transformação do solo para fins de urbanização, construção e entre outros, determinou também a preservação e recuperação de centros históricos[9]. No entanto, considerou que se estava perante uma situação de “direito do ambiente” por considerar a vertente relativa ao ruído estreitamente conexa com essa matéria.

De facto, existe uma fronteira pouco rigorosa entre “ambiente” e “urbanismo”. O urbanismo tem como dimensões o planeamento urbanístico, a gestão urbanística, a urbanização, edificação e o urbanismo da reabilitação urbana, sendo que cada uma destas vertentes tem regimes e contra-ordenações específicas e próprias, integrando todas elas a competência dos tribunais administrativos.

Ora, o objecto de impugnação é uma contra-ordenação relativa ao facto de o Recorrido não ter obtido no prazo estipulado, uma licença junto das autoridades competentes para poder laborar com um recinto de espectáculos, como a lei o determina.

Assim sendo, apesar de estarmos perante a emissão de ruídos, no caso música ao vivo no estabelecimento, sem autorização para tal, e de esta matéria se encontrar intrinsecamente ligada ao direito do ambiente, é essencial fazermos uma interpretação lógica do objecto em questão: o problema fulcral contra-ordenacional é oriundo da falta de licença e não da emissão de ruídos.

No seguimento de Fernanda Paula Oliveira, a licença, que deveria ter sido adquirida pelo Recorrido , encontra-se no âmbito do artigo 98.º do RJUE, e, conforme tal, encontra-se abrangida pelo artigo 4.º/1/l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais como sendo parte da “matéria de urbanismo”.

Seguindo a visão consagrada pelo Tribunal no Acórdão em causa, autores como Isabel Celeste Fonseca e José Aventino Ferreira Dantas, propõem a aplicação do 4.º/1/o), ETAF para extensão do âmbito da jurisdição administrativa, a relações jurídicas não especificamente inseridas na alínea l) do mesmo artigo. Equacionando esta possibilidade, teríamos igualmente uma competência da jurisdição administrativa, apenas não no âmbito previsto pela alínea l), mas sim pela alínea residual, o). 

Em suma, não podemos deixar de considerar a intenção inicial do legislador como factor extremamente relevante no que toca à competência atribuída nos termos do ilícito da mera ordenação social. É essencialmente relevante, em termos de contextualização, após a análise deste acórdão, sendo uma linha orientadora de fundamentação implícita para a categorização do Tribunal deste caso, como sendo do âmbito do “direito do ambiente”.

A meu ver, a decisão não se demonstra correcta, pelo facto de o tribunal não observar o objecto da contra-ordenação, mas sim os factos que deram origem à mesma.
Assim, e de modo a concluir, o caso encontra-se subsumido à competência dos tribunais administrativos em razão da jurisdição pela aplicação do artigo 4.º/1/ l), visto tratar-se, em toda a sua plenitude, de uma “matéria de urbanismo”.

Bibliografia:
-Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, Fevereiro 2019;
-Alves correia, Fernando, Manual de Direito do Urbanismo, Vol I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2008;
-Amado Gomes, Carla, Contributo para o Estudo das Operações materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra, 1999;
-Andrade, Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina, 2016;
-Andrade, Vieira de, A “ Via da facto” perante o juiz Administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 104 Março/ Abril, páginas 38 e ss;
-Botelho, Santos, Contencioso Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1999;
-Carvalho, Carlos, Comentários à Revisão do ETAF e CPTA, 3ª Edição;
-Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, páginas 773-775;
-Correia, Sérvulo, Acto Administrativo e âmbito da jurisdição administrativa in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2002, páginas 1156 e ss.;
-Neves, Ana Fernanda, Âmbito de jurisdição e Outras Alterações ao ETAF, in revista E-Pública, nº2, Junho de 2015, página 17 e ss.;
-Pação, Jorge, Comentários à revista do ETAF e do CPTA- Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, 3º Edição;
-Santos, Botelho, Contencioso Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1999;
-Silva, Vasco Pereira da, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre Acções no novo processo administrativo, Almedina, 2º edição, 2013.


Inês Martins Duarte Silva, Subturma 10, 4º Ano,  nº 56954. 








[1] Neste sentido, Sérvulo Correia, A arbitragem voluntária no domínio dos contractos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Castro Mendes, Lex, Lisboa, 1995, página 254.
[2] No mesmo sentido, Ana Fernanda Neves, Âmbito da Jurisdição e Outras Alterações ao ETAF, in Revista E-pública, nº2, Junho 2014, página 17.
[3] Bem como das sanções acessórias, previstas no artigo 99º do RJUE.
[4] Com a última alteração introduzida pelo Decreto-lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro.
[5] No estudo do regime contra-ordenacional do RJUE, Joana Costa Nora, Análise do Regime das Contra-ordenações previstas no Regime Jurídico da Urbanização e edificação à luz do Regime Geral das Contra-Ordenações, in Direito Administrativo das Autarquias Locais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, páginas 323 e seguintes.
[6] Com a última alteração introduzida pelo Decreto-lei nº 136/2014 de 9 de Setembro.
[7] Com a última alteração introduzida pelo Decreto-lei nº 186/2015 de 3 de Setembro.
[8] Fernanda Paula Oliveira/ Dulce Lopes, Empreendimentos Turísticos, Planeamento e registo Predial: A Concretização de um Desígnio Nacional, in STVDIA IVRIDICA 96, Boletim da Faculdade de Direito, Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Henrique Mesquita, Vol. II, Coimbra Editora, 2010, páginas 337 a 389
[9] Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, Vol I, 4ª Ed., Almedina, Coimbra, 2008, página 64.

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