Comentário ao Acórdão do TCAS de 24/05/2018, Pc:
1336/17.7BELSB
No acórdão em apreço está em causa perspectivar
se os Tribunais Administrativos são competentes para o conhecer de uma decisão que
versa uma impugnação de uma contra-ordenação prevista e punida ao abrigo do
artigo 21º/1/a), do Decreto-lei nº 309/2002, de 16 de Dezembro, o qual regula a
instalação e funcionamento de recintos de espectáculos no âmbito das
competências das Câmaras Municipais. Mais concretamente, a arguida fora acusada
da prática de um ilícito contra-ordenacional pela utilização de recinto sem
licença para os efeitos de realização de espectáculos e de divertimentos públicos.
Como um dos pressupostos processuais
relativos ao Tribunal, a competência em razão da jurisdição tem a função de
determinar quando uma acção deve ser proposta no âmbito dos tribunais
administrativos e fiscais, e não perante os tribunais judiciais. Como enuncia o
Professor Mário Aroso de Almeida, a alínea l) do Artigo 4.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, afasta o critério
constitucional patente na alínea o), devendo ser observada como uma norma
especial que visa derrogar e fazer-se prevalecer face a esse critério, de modo
a ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição.
Cabe analisar, no acórdão em concreto, se a impugnação da
referida contra-ordenação integra a previsão normativa do artigo 4º/1/l) do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O Governo apresentou, com a revisão de 2015, à Assembleia da
República uma proposta de lei de autorização legislativa, na qual a antiga
alínea n) do nº1 do artigo 4º (actual alínea l)), que previa a competência dos
tribunais administrativos para a resolução de litígios relativos às “impugnações judiciais de decisões da
Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera
ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria
de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens
do Estado” passou apenas a atribuir a mencionada competência (pelo menos,
expressamente) em matéria de urbanismo. Como justificação, foi feita menção à
necessidade de, neste momento, ser adoptada uma “perspectiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem
prática” e, com isto, remeter para uma futura e progressiva integração das
restantes matérias na jurisdição administrativa.
Como refere o Professor Mário Aroso de
Almeida, a impugnação de decisões oriundas da aplicação de coimas foi
inicialmente reservada aos Tribunais Judiciais por razões meramente logísticas,
ou seja, existia um reduzido número de tribunais e juízes administrativos, o
que conferia uma limitação relativa aos poderes instrutórios.
Tendo a não concordar com a opção do
legislador ao suprimir a competência dos Tribunais Administrativos à impugnação
de decisões de aplicação de coimas por violação de normas administrativas em
matéria de ambiente, ordenamento do território, património cultural e bens do
Estado. Tendo optado por adiar este alargamento para data incerta, o legislador
foge ao cumprimento do “mandato constitucional”[1], presente
no artigo 212º/3 da Lei Fundamental.
Importa avançar com uma interpretação
que vai para além do elemento literal subjacente ao preceito em causa: a competência
dos Tribunais Administrativos para apreciar a impugnação de decisões que
apliquem coimas por violação de normas administrativas urbanísticas estende-se
às sanções acessórias que as acompanham[2].
No entanto, relativamente à redução do
alargamento da jurisdição às contra-ordenações urbanísticas, importa,
sobretudo, identificar que decisões de aplicação de coimas e respectivas sanções
acessórias ficarão sujeitas à apreciação dos tribunais administrativos. Desde
logo, estará em causa a impugnação das coimas[3]
previstas no artigo 98º/2 a /7 do Decreto-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro[4], do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), por se verificar alguma
das contra-ordenações previstas no nº1 do mesmo artigo, relativas à violação
das regras aí estabelecidas, tendentes à regulação das operações urbanísticas,
através do seu controlo prévio e atribuição dos respectivos títulos das
operações urbanísticas e fiscalização[5].
Para além do RJUE que, manifestamente,
consome grande parte das disposições relevantes sobre contra-ordenações
urbanísticas, importa mencionar o Decreto-lei nº 307/2009, de 23 de Outubro[6],
Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), cabendo aos tribunais administrativos
a impugnação das coimas aplicadas nos nº 2 a 5 do artigo 77º-C deste regime,
bem como das sanções subsumíveis às contra-ordenações previstas no nº 1 do
mencionado artigo 77º-C.
Deve, ainda considerar-se o Decreto-lei
nº 39/2008 de 7 de Março[7],
Regime Jurídico da Instalação, Exploração e Funcionamento dos Empreendimentos Turísticos
(RJIEFET), na constatação de que os seus preceitos serão tidos como reveladores
de normas de natureza urbanística, pelo menos no que toca ao procedimento de
controlo prévio das operações tendentes à sua instalação[8],
pelo que devem as decisões de aplicação das coimas previstas nos nº2 a 5 do
artigo 67º, bem como as sanções acessórias previstas no artigo 68º, serem
impugnadas nos Tribunais administrativos, promovendo a alínea l) do nº1 do
artigo 4º, a derrogação tácita da remissão presente no artigo 69º-A para o Decreto-lei
nº 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral do ilícito de Mera Ordenação Social)
no que respeita à jurisdição competente para apreciar as sanções a serem aplicadas
pelas Câmaras Municipais e pela ASAE.
Ora, o problema do referido acórdão
prende-se com a indeterminação do conceito “matéria de urbanismo”. O Tribunal decidiu que a contra-ordenação em causa e a sua consequente
impugnação não se enquadravam em matéria urbanística.
Não deixando de reconhecer a ténue
fronteira do conceito entre “direito do ordenamento do território” e “direito do
ambiente”, determinou “urbanismo” como sendo um núcleo essencial de normas que
versam áreas como a ocupação, uso e transformação do solo para fins de
urbanização, construção e entre outros, determinou também a preservação e
recuperação de centros históricos[9].
No entanto, considerou que se estava perante uma situação de “direito do
ambiente” por considerar a vertente relativa ao ruído estreitamente conexa com
essa matéria.
De facto, existe uma fronteira pouco
rigorosa entre “ambiente” e “urbanismo”. O urbanismo tem como dimensões o
planeamento urbanístico, a gestão urbanística, a urbanização, edificação e o
urbanismo da reabilitação urbana, sendo que cada uma destas vertentes tem
regimes e contra-ordenações específicas e próprias, integrando todas elas a
competência dos tribunais administrativos.
Ora, o objecto de impugnação é uma
contra-ordenação relativa ao facto de o Recorrido não ter obtido no prazo
estipulado, uma licença junto das autoridades competentes para poder laborar
com um recinto de espectáculos, como a lei o determina.
Assim sendo, apesar de estarmos perante
a emissão de ruídos, no caso música ao vivo no estabelecimento, sem autorização
para tal, e de esta matéria se encontrar intrinsecamente ligada ao direito do
ambiente, é essencial fazermos uma interpretação lógica do objecto em questão:
o problema fulcral contra-ordenacional é oriundo da falta de licença e não da
emissão de ruídos.
No seguimento de Fernanda Paula
Oliveira, a licença, que deveria ter sido adquirida pelo Recorrido , encontra-se
no âmbito do artigo 98.º do RJUE, e, conforme tal, encontra-se abrangida pelo artigo
4.º/1/l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais como sendo parte
da “matéria de urbanismo”.
Seguindo a visão consagrada pelo
Tribunal no Acórdão em causa, autores como Isabel Celeste Fonseca e José
Aventino Ferreira Dantas, propõem a aplicação do 4.º/1/o), ETAF para extensão
do âmbito da jurisdição administrativa, a relações jurídicas não
especificamente inseridas na alínea l) do mesmo artigo. Equacionando esta
possibilidade, teríamos igualmente uma competência da jurisdição
administrativa, apenas não no âmbito previsto pela alínea l), mas sim pela
alínea residual, o).
Em suma, não podemos deixar de
considerar a intenção inicial do legislador como factor extremamente relevante
no que toca à competência atribuída nos termos do ilícito da mera ordenação
social. É essencialmente relevante, em termos de contextualização, após a
análise deste acórdão, sendo uma linha orientadora de fundamentação implícita
para a categorização do Tribunal deste caso, como sendo do âmbito do “direito
do ambiente”.
A meu ver, a decisão não se demonstra
correcta, pelo facto de o tribunal não observar o objecto da contra-ordenação,
mas sim os factos que deram origem à mesma.
Assim, e de modo a concluir, o caso
encontra-se subsumido à competência dos tribunais administrativos em razão da
jurisdição pela aplicação do artigo 4.º/1/ l), visto tratar-se, em toda a sua
plenitude, de uma “matéria de urbanismo”.
Bibliografia:
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do Urbanismo, Vol I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2008;
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2ª edição, Almedina, Coimbra, 1999;
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CPTA- Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em
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-Santos,
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Inês Martins Duarte Silva, Subturma 10, 4º Ano, nº 56954.
[1] Neste sentido, Sérvulo Correia, A arbitragem voluntária no domínio dos contractos administrativos, in Estudos
em Memória do Professor Castro Mendes, Lex, Lisboa, 1995, página 254.
[2] No mesmo sentido, Ana Fernanda
Neves, Âmbito da Jurisdição e Outras
Alterações ao ETAF, in Revista
E-pública, nº2, Junho 2014, página 17.
[3] Bem como das sanções acessórias,
previstas no artigo 99º do RJUE.
[4] Com a última alteração
introduzida pelo Decreto-lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro.
[5] No estudo do regime
contra-ordenacional do RJUE, Joana Costa Nora, Análise do Regime das Contra-ordenações previstas no Regime Jurídico da
Urbanização e edificação à luz do Regime Geral das Contra-Ordenações, in Direito
Administrativo das Autarquias Locais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010,
páginas 323 e seguintes.
[6] Com a última alteração
introduzida pelo Decreto-lei nº 136/2014 de 9 de Setembro.
[7] Com a última alteração
introduzida pelo Decreto-lei nº 186/2015 de 3 de Setembro.
[8] Fernanda Paula Oliveira/ Dulce
Lopes, Empreendimentos Turísticos,
Planeamento e registo Predial: A Concretização de um Desígnio Nacional, in STVDIA IVRIDICA 96, Boletim da
Faculdade de Direito, Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel
Henrique Mesquita, Vol. II, Coimbra Editora, 2010, páginas 337 a 389
[9] Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, Vol I,
4ª Ed., Almedina, Coimbra, 2008, página 64.
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