Acórdão 22/02/2013 – Tribunal Central Administrativo do Norte
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A ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
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A IMPUGNAÇÃO DE ACTOS ADMINISTRATIVOS
Mariana Bernardo
Catalino (24895)
Procedendo,
primeiramente, à análise da matéria de facto do acórdão, tratava-se de um
recurso de uma decisão do Tribunal Administrativo de Braga, que foi no sentido
de considerar procedente a excepção de inimpugnabilidade de um acto
administrativo. Perante uma obra que alteraria a estrutura do edifício e que
implicaria licenciamento, o autor foi notificado, sendo que se verificaram
sucessivas ordens de demolição, por se considerar que a ampliação não cumpria o
exigido pelo alvará de loteamento nº 19/73.
O
recorrente argumentou que: a obra decorreu em moradia já existente e da
inexigibilidade de licenciamento; que estaria em causa um novo acto administrativo
quando foi notificado da necessidade de demolição da obra; que, perante a
classificação do acto pelo Tribunal como sendo um acto meramente confirmativo,
não estariam preenchidos os requisitos cumulativos, visto que não estaria em
causa a mesma situação jurídica, nem em matéria de facto, nem em matéria de
direito, sustentando-se na alteração ao regime jurídico com a entrada em vigor
da Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro.
Colocava-se
a questão de saber se o Tribunal Administrativo de Braga teria, com a sua
decisão, violado os artigos 51º e 53º, do Código de Procedimento dos Tribunais
Administrativos.
Para
que se possa proceder à análise da fundamentação apresentada pelo Tribunal, importa
definir o conceito de acto administrativo impugnável, sendo que, para José
Vieira de Andrade, o acto administrativo impugnável é “um acto regulado por
disposições de direito público, um acto jurídico decisório praticado no
exercício de poderes de autoridade, relativo a uma situação individual e
concreta e com eficácia externa”[1]. Na doutrina e na
jurisprudência, até 1989, a posição dominante assentava por um lado, num
conceito amplo de acto administrativo, que constituía um acto de autoridade,
isto é, uma conduta voluntária unilateral, que seria praticado por um órgão
administrativo no exercício de poderes administrativos e que visava produzir
efeitos jurídicos num determinado caso, não considerando os actos de direito
privado, os contratos ou acordos, os actos políticos, legislativos,
jurisdicionais, as acções materiais e os regulamentos como tal; por outro lado,
um conceito estrito de acto administrativo definitivo e executório, que se
caracterizava por ser adjectivo, por ser um acto susceptível de recurso
contencioso imediato, pressupondo-se uma definitividade material – com a
definição da situação jurídica dos particulares face à Administração; procedimental
– acto final ou incidente autónomo num processo; competencial – acto emanado
por um órgão supremo ou que constitua a última palavra da Administração.
Retomando
a posição adoptada por Vieira de Andrade face ao conceito processual de acto
administrativo impugnável, este adopta uma posição intermédia[2], considerando que este é
mais vasto na dimensão orgânica, nos termos do artigo 51º, nº2, do CPTA, e mais
restrito, por só abranger as decisões administrativas com eficácia externa,
isto é, os actos administrativos que produzam ou constituam efeitos nas
relações jurídicas administrativas[3]. Portanto, para Vieira de
Andrade há que distinguir o conceito de acto administrativo, constante do
artigo 120º, do CPA, do conceito de acto administrativo impugnável do artigo 51º,
do CPTA.
A
posição de Vasco Pereira da Silva vai no sentido de considerar como actos administrativos
todos os actos susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, podendo ser impugnáveis,
desde que se demonstre a possibilidade de lesarem os direitos dos particulares,
nos termos do artigo 268º, nº 4, da Constituição. É a este propósito que Vasco
Pereira da Silva faz referência ao alargamento da impugnabilidade dos actos
administrativos – uma das transformações
internas do conceito de acto administrativo ocorridas pela reforma do
contencioso – determinada pela eficácia externa e pela lesão dos direitos dos
particulares, nos termos do artigo 51º, nº1 do CPTA, e do artigo 268º, nº 4, da
Constituição. No entanto, apesar de reconhecer a solução como correcta, não
deixa de considerá-la “algo infeliz”, devido à “subalternização do critério da
susceptibilidade de lesão de direitos”[4], por ser contraditória ao
disposto no artigo 54º, do CPTA, que prevê a impugnação de actos em que não se
verifique a existência de eficácia externa, desde que se demonstrem lesivos.
Assim,
para que se possa considerar um acto administrativo impugnável exige-se que
preencha vários requisitos. Quanto ao conteúdo decisório, este é fundamental
para que possam os actos administrativos ser impugnados nos tribunais
administrativos, sendo que Mário Aroso de Almeida refere a necessidade de estes
exprimirem “uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou o sentido
de condutas a adoptar”[5]. Referir ainda, quanto aos
actos de conteúdo positivo - outro requisito - que só estes podem ser objecto
de um processo de impugnação, no sentido de impugnar ou declarar a nulidade.
No
que toca à eficácia externa, cabe referir que esta não é considerada um
requisito associado à impugnabilidade dos actos administrativos, mas antes à
legitimidade para impugnar, por via do artigo 51º, nº1, do CPTA[6].
Já
quanto à tempestividade da impugnação, não há um prazo para a impugnação de
actos nulos, estipulando-se somente o prazo de um ano ou três meses para a
impugnação de actos anuláveis, conforme seja o impugnante o Ministério Público
ou outro interessado. Ressalva Mário Aroso de Almeida, a propósito do ónus de
impugnação tempestiva de actos administrativos, que o mesmo só se constitui
quando preenchidos os requisitos relacionados com a sua eficácia, momento em
que começam a correr os prazos de impugnação, conforme o disposto no artigo 54º,
nº1, do CPTA. O artigo 59º, respeitante à determinação do momento em que se
inicia a contagem dos prazos de impugnação, implica que, perante a notificação,
a publicação ou o conhecimento do acto a contagem do prazo de impugnação só se
inicie quando se verifique a constituição do ónus de impugnação.
Dado
que no acórdão se faz referência à existência de vários requerimentos por parte
do autor, e tendo em conta que o prazo começa a correr quando este foi
notificado a 17 de Dezembro de 2007, exigia-se, então, que o acto fosse
impugnado nos três meses seguintes à notificação, nos termos do disposto nos
artigos 58º, nº2 e 59º, nº1, do CPTA. Em sede de duração dos prazos não se
verificaram alterações que mereçam uma nota de actualização.
No
acórdão suscita-se a questão de se tratar de um acto meramente confirmativo, e
voltando à questão de, para a existência de um acto administrativo se exigir a verificação
do conteúdo decisório - artigo 120º, do CPA – cabe referir que tal implicaria considerar
o acto como não impugnável. Portanto, os actos meramente confirmativos são
todos os actos em que a Administração apenas confirme decisões jurídicas
introduzidas em actos administrativos anteriores, nos termos do disposto no
artigo 53º, do CPTA.
Nestes
termos, importa fazer uma nota de actualização referente à revisão legislativa,
visto que à data do acórdão ainda não estaria em vigor a autorização legislativa
concedida pela lei nº 100/2015, de 19 de Agosto, com o Decreto-Lei nº
214-G/2015, de 2 de Outubro. Atentando ao disposto no artigo 53º, do CPTA[7], apesar da definição de
acto meramente confirmativo que fora introduzida, não se verificam alterações
que pudessem atingir o seu sentido, ainda que se ressalve a inaplicabilidade da
regra da inimpugnabilidade dos actos confirmativos quando o interessado não
tenha tido o ónus de impugnar o acto confirmado, no caso de não se ter
verificado um dos factos previstos no artigo 59º, nº 2 e 3, do CPTA[8].
Voltando
à análise do acórdão e à formulação anterior do artigo 53º, do CPTA, importa
referir os três requisitos cumulativos para que tal se possa considerar: o acto tem de ser lesivo; o acto tem de ser do
conhecimento do interessado; tem de haver identidade de sujeitos, de objecto e
de decisão entre o acto confirmado e o acto confirmativo. Os requisitos
encontravam-se preenchidos, visto que se trataria da demolição de obra que
implicaria prejuízos monetários, o interessado tinha sido notificado acerca do
ano em 17 de Dezembro de 2007, e não se verificaram alterações na situação
jurídica[9], sendo os sujeitos A e o
Município.
Uma
breve consideração no que concerne ao espírito do conceito de acto
confirmativo, este visava evitar a constante reabertura de litígios, uma vez
que os requerimentos sucessivos constituiriam uma via para tal. Na opinião de
Vieira de Andrade, o artigo 53º, do CPTA, limita “a invocação do carácter
confirmativo do acto impugnado para efeitos de rejeição da impugnação, não
admitindo tal rejeição, designadamente, quando o acto anterior não tenha sido
notificado ao autor[10]”.
Quanto
à aplicação de um quadro legal distinto, nos artigos 6º e 7º, da Lei 60/07, de
4 de Setembro, esta não seria possível, tendo sido sustentado, e bem, que a
alteração do RJUE não estava em vigor à data do requerimento – que ocorrera a
18 de Janeiro de 2008 – e que fora indeferido pelo acto proferido a 28 de
Janeiro de 2008, no qual, mais uma vez, ainda não estava em vigor o novo
regime. A acrescentar ainda quanto à fundamentação do Tribunal que considerou
que, mesmo desligando-se da questão da inaplicabilidade de um quadro legal
distinto, não parece ter ocorrido ou sido possível a aplicação pelo acto
impugnado do novo regime jurídico, daí ter concluído pela inexistência de
qualquer alteração ao quadro normativo e pela natureza meramente confirmativa
do acto impugnado a 3 de Outubro de 2008 e, consequentemente, pela sua inimpugnabilidade,
por via dos artigos 51º e 53º, do CPTA.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA,
Mário Aroso de
-
Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010
GOMES,
Carla Amado; NEVES, Ana Fernanda; SERRÃO, Tiago / CALDEIRA, Mário
-
“Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA” - A impugnação de actos no novo CPTA:
âmbito, delimitação e pressupostos, AAFDL, 2016
SILVA,
Vasco Pereira da
-
“O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2009
-
“Temas e Problemas de Processo Administrativo”, 2ª edição, Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas, 2011
[1] José Vieira de Andrade, “Lições de
Direito Administrativo”, Coimbra, 2012, p. 211
[2] Vieira de Andrade, “Lições de
Direito Administrativo”, Coimbra, 2012, p. 137. Para este autor, ao adoptar o conceito
estrito de acto administrativo, que corresponde a um regime substantivo,
procedimental e processual, é inevitável não considerar no plano processual, a
existência de lesividade efectiva, não comportada, de forma exclusiva, pelo
conceito estrito.
[3] Vieira de Andrade, “Justiça
Administrativa”, Almedina, 2009, p. 211-212.
[4] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2009, p. 344ss.
[5] Mário Aroso de Almeida, “Manual de
Processo Administrativo”, Almedina, 2010, p 270 ss.
[6] No artigo 51º, nº1, do CPTA, é
evidente a associação da eficácia externa do acto à sua susceptibilidade de
lesar direitos ou interesses legalmente protegidos de particulares – um aspecto
também referido no artigo 55º, nº1, alínea a), do CPTA, a propósito da
legitimidade para impugnar.
[7] Carla Amado Gomes, Ana Fernanda
Neves, Tiago Serrão: “Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA”; Mário Caldeira:
“A impugnação de actos no novo CPTA: âmbito, delimitação e pressupostos”,
AAFDL, 2016, p. 252 ss. Uma nota quanto ao nº 4 do artigo 53º, do CPTA, que se
refere aos casos em que seja admitida a impugnação de um acto confirmativo, que
“os efeitos da sentença que conheça objecto do processo são extensivos ao acto
confirmado”, o que se traduz na inviabilidade de subsistência de um acto
administrativo desconforme com a sentença que anula, posteriormente, o seu acto
confirmativo.
[8] Mário Caldeira: “A impugnação de
actos no novo CPTA: âmbito, delimitação e pressupostos”, AAFDL, 2016, p. 252 ss.
[9] Os fundamentos apresentados na
verificação deste requisito foram a identidade de decisão e de assunto, bem
pelo facto de todas as decisões terem sido tomadas no âmbito do mesmo processo
administrativo conduzido pelo ente público demandado. As decisões tomadas eram idênticas, no
sentido de indeferimento do pedido de legalização do edificado formulado e
reiterado pelo recorrente, tendo sido sempre ordenada a demolição, pelo que a
sua fundamentação era idêntica.
[10] José Vieira de Andrade, “A Justiça
Administrativa”, Almedina, 2009, p. 215.
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