Sunday, 17 November 2019

Comentário ao Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 04 de fevereiro de 2016, Proc. 035/15


Ana Carolina Godinho Neves, aluna n.º56901 da FDUL


O presente acórdão incide sobre matéria do âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O autor é uma sociedade por quotas que propõe no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro uma ação administrativa comum sob processo ordinário contra uma Instituição Particular de Solidariedade Social, “Associação de Desenvolvimento Social”, isso porque entre ambos tinha sido celebrado um contrato de empreitada e a Associação nunca chegou a pagar o valor total ao autor, contestando que este nunca tinha procedido à eliminação dos defeitos da obra que lhe foram comunicados, pelo que a sociedade vem perante um Tribunal Administrativo pedir a condenação da ré no pagamento de 34.743,47 € + juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até ao efetivo pagamento.
Acontece que o TAF de Aveiro julgou-se incompetente para decidir da ação. Os autos foram então remetidos ao Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, que, por sua vez, considerou-se competente para julgar o caso. O réu, inconformado, recorre desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, doravante TRP, que decidiu que eram competentes os Tribunais Administrativos e absolveu, portanto, os réus da instância.
Toda essa confusão resultou no requerimento da resolução do conflito negativo de competência, pelo que se enviaram os autos para o Tribunal dos Conflitos.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto deu parecer a favor da competência dos Tribunais Judiciais e o Tribunal dos Conflitos, no acórdão que agora analisamos, vem corroborar essa posição.
Tanto o referido TAF como o parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto consideraram competentes os Tribunais judiciais, porém, por razões diferentes.
O primeiro tomou essa posição fundamentando que aquela era uma ação cujo objetivo era efetivar a responsabilidade civil que surgiu de um contrato entre sujeitos privados e que, portanto, a relação jurídica era de direito privado e não público, pelo que seriam competentes os tribunais comuns.
O Sr. Procurador chegou à mesma conclusão, mas por caminho diferente, pois os seus argumentos relacionam-se não com a natureza dos sujeitos ou do contrato, mas sim com o procedimento pré-contratual: “por entender que o procedimento pré-contratual que precedeu a celebração do contrato foi uma escolha livre da entidade que lançou o concurso e que o art.º4./1e) do ETAF só atribuía essa competência aos Tribunais Administrativos quando aquele procedimento fosse obrigatório por força da lei. O que não era o caso.”
Por outro lado, o TRP pronunciou-se no sentido de considerar os Tribunais Administrativos os competentes para decidir este caso, porquanto o contrato de empreitada tinha “sido precedido de procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público” o que à luz do art.4º/1-e) ETAF inclui-se no âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos.
Dito isso, é percetível que o problema que está em causa é saber se os Tribunais Administrativos são competentes para decidir este caso à sombra da alínea e) do art.4º/1 ETAF.
Façamos uma breve análise da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais:
Em primeira mão, temos o art.212º/3 CRP, que dispõe que os TAF’s têm competência para dirimir ações e recursos “que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Encontramos disposição semelhante no art.1º/1 ETAF, onde se refere novamente a expressão “relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Sendo assim, esse conceito é a base para a delimitação do que é competência dos tribunais administrativos e do que não é, porém, não existe uma definição legislativa de tal conceito, pelo que é a doutrina e a jurisprudência que o constroem.
De acordo com o Professor Freitas do Amaral[1], relação jurídico-administrativa é "aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração".
Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] afirmam que a qualificação “relações jurídicas administrativas” “transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza ‘privada’ ou ‘jurídico civil’. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art.4.º).”
Aceitando que esse é um conceito de difícil delimitação e sabendo que muitos mais autores se pronunciaram sobre esse assunto e que até há tentativa de jurisprudência de dar uma definição para tal conceito, podemos depreender que, tal como nos diz o Professor Vieira de Andrade[3] “relação jurídico-administrativa” pode ser entendida em vários sentidos:
“Pode ser entendido, num sentido subjetivo, em termos de incluir qualquer relação jurídica em que intervenha a Administração, designadamente uma pessoa coletiva pública – a razão de ser da existência de uma jurisdição especial seria a presença da Administração Pública enquanto sujeito da relação, independentemente da veste em que actuasse, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério orgânico como padrão substancial de delimitação.
Mas também pode entender-se, em termos predominantemente objetivos, como as relações jurídicas em que intervenham  entes públicos, mas desde que sejam regulados pelo Direito Administrativo – nesse sentido, a razão de ser da jurisdição administrativa seria, por contraposição com a jurisdição dita ‘comum’, a existência de um estatuto especial do sujeito público, designadamente, a presença de elementos de autoridade administrativa.
E há ainda um outro entendimento, que faz corresponder o caráter ‘administrativo’ da relação ao âmbito substancial da própria função administrativa. Resultaria do contexto constitucional que o domínio considerado próprio dos tribunais administrativos abrange as relações jurídicas que correspondam ao exercício da função administrativa, entendida em sentido material.”
O problema que está perante nós surge na relação entre os arts.212º/3 CRP + 1º/1 ETAF e as alíneas do art.4º ETAF, especialmente com a e), pois como nos diz a Juíza Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas[4] “Na verdade é na área dos litígios relativos a contratos (e através daquelas normas[5]) que sobretudo se operam os maiores desvios ao critério material (geral) de delimitação da competência dos Tribunais Administrativos vertido no artigo 212.º, n.º 3, da CRP e acolhido no n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.”
O acórdão de 26 de Março de 2019 do Supremo Tribunal de Justiça[6] afirma que “(...) a fim de alcançar a natureza administrativa de uma relação jurídica, deverá fazer-se um juízo de articulação entre a cláusula geral do artigo 1.º, n.º 1, e os critérios do artigo 4.º, ambos do ETAF, posto que a aludida natureza apenas se alcança perante uma diversidade de elementos de conexão e será o referido artigo 4.º, na sua delimitação positiva (n.º 1), bem como na negativa (n.ºs 2 e 3), que permitirá clarificar aquilo que está, efetivamente, abrangido pelo âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos.”
Façamos então a delimitação positiva e negativa da alínea e) art.4º ETAF:
A primeira parte da alínea  e) é de fácil interpretação, pois o Código dos Contratos Públicos determina tipos de contratos administrativos ou fornece critérios para se proceder a essa determinação.
Já a segunda parte e citando o Professor Licínio Lopes Martins[7] a nova alínea e) pretenderá  introduzir uma dupla limitação “pela positiva, para concentrar nos tribunais administrativos todas as questões (litígios) da contratação pública, independentemente da qualidade subjetiva das entidades adjudicantes (pessoas coletivas públicas ou privadas) e independentemente ainda da natureza administrativa ou privada do contrato que celebrem; e pela negativa, para excluir deles os contratos de direito privado na Administração e os contratos (públicos) da Administração que não sejam celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.
O referido autor reforça ainda o facto de que a delimitação da alínea em questão “tem necessariamente de ser feita através da sua conjugação sistemática com a designada ‘legislação sobre contratação pública’, o que inclui, desde logo, o CCP e toda ou qualquer outra legislação especial que a tenha por objeto e, naturalmente, a legislação do direito europeu, designadamente as diretivas sobre a contratação pública.”
Fazendo um breve resumo[8] da presente alínea:
Temos aí o contencioso dos contratos, mas apenas dos contratos públicos.
O que está incluído:
·         Código dos Contratos Públicos;
·    Toda a legislação especial que tenha por objeto a contratação pública;
·         Diretivas da UE sobre contratação pública.
O que está excluído:
·         Contratos Públicos cuja celebração não deva estar sujeita àquela legislação por existir uma expressa exclusão legal, como por ex.art.4º/2 CCP;
·      Contratos “cujo objeto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidos à concorrência de mercado”, arts.16º/1 e 5º/1 CCP;
·     Casos em que exista uma limitação relativamente às entidades da AP clássica na medida em que nem todos os Contratos públicos celebrados por esta entidade se encontram sujeitos ao regime da contratação pública.
Uma das notas que foi referida e que é a mais importante a reter relaciona-se com a subjetividade, isto é, a irrelevância de um critério subjetivo[9].
Voltemos ao caso concreto:
Apenas para clarificar, a autora é sujeito de direito privado e a ré pessoa coletiva de direito público, porém, como acabámos de ver, não é a qualidade dos sujeitos que vai definir quais os Tribunais competentes, pelo que temos de concordar com o parecer do Procurador-Adjunto nesse ponto.
O contrato presente neste caso não era administrativo, pelo que devemos logo afastar a 1ª parte da alínea e) e verificar se se inseria na 2ª.
Ficou provado que foi publicado anúncio pela Instituição de Solidariedade no Diário da República e que, portanto, o procedimento pré-contratual foi regulado por normas de direito público, visto que a “celebração do contrato de empreitada que serve de fonte às pretensões formuladas pela autora foi precedida de concurso público nos termos previstos no art.48º do DL n.º405/93, de 10/12.”
Por essa 2ª parte já haveria possibilidade de serem os TAF competentes para julgar deste caso, contudo, não foi isso que decidiu este Tribunal, pois este entendeu que teria de haver um comando no referido artigo 48º ou até do art.23º Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL 119/83, de 25 de Fevereiro, que obrigasse a um procedimento pré-contratual público, isto é, teria de haver uma imposição legal para se adotar tal procedimento, o que não existia neste caso, apenas houve vontade por parte do Instituto em agir daquela forma.
Porém, não parece haver nada na letra do artigo que imponha essa exigência e parece ter sido este o entendimento do TRP, que decidiu que “a circunstância do contrato ter sido precedido de procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público bastava para que, por força do disposto na citada norma do ETAF, a competência para o julgamento da acção tivesse de ser atribuída aos TAF’s.”
Na 13ª versão do ETAF (Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio), a alínea e) dispunha o seguinte: Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;”
Porém, já na 14ª versão (DL n.º 214-G/2015, de 02/10), isso foi alterado para o que temos hoje na 15ª versão.
Parece-me que olhando apenas ao sentido literal do artigo (“nos termos de legislação sobre contratação pública”) estaríamos a abrir demasiado o leque de competência, visto que os TAF’s teriam competência para julgar sempre que um contrato privado pudesse seguir procedimento pré-contratual regulado pelo direito público. Estaríamos a ir contra a divisão feita entre os tipos de Tribunais. Pelo que a exigência tem de ser um pouco maior do que a que lemos na alínea e).
É por essa razão que concordo com o que foi decidido no presente acórdão, que este é um caso que deve ser decidido pelos Tribunais Comuns.


Notas de Rodapé:

[1] Amaral, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, Vol. III, Lisboa.
[2] Canotilho, Gomes & Vital Moreira (2010), Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, págs.566 e 567.
[3] Andrade, José Carlos Vieira de (2014), A Justiça Administrativa Lições, 13ª edição, Almedina, Coimbra, pág.48.
[4] Canelas, Maria Helena Barbosa Ferreira, A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em Sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, in Julgar n.º15-2011, Coimbra Editora, pág.110, disponível no seguinte website: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/07/05-DEBATER-A-compet%C3%AAncia-dos-Tribunais-Administrativos.pdf
[5] Refere-se às antigas alíneas b), e) e f) ETAF, mas penso que a atual alínea e) (agrega todas as 3) continua a ser das que faz um desvio maior ao critério do disposto nos arts.212º/3 CRP e 1º/1 ETAF.
[7] Martins, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Justiça Administrativa n.º 106 de Julho/Agosto 2016, pág.13.
[8] Apontamentos de aulas práticas baseados na obra citada de Licínio Lopes Martins.
[9] Martins, Licínio Lopes, obra citada, págs.14 e 15.

Bibliografia:  
  • Amaral, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, Vol. III, Lisboa;
  • Andrade, José Carlos Vieira de (2014), A Justiça Administrativa Lições, 13ª edição, Almedina, Coimbra;
  • Canelas, Maria Helena Barbosa Ferreira, A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em Sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, in Julgar n.º15-2011, Coimbra Editora;
  • Canotilho, Gomes & Vital Moreira (2010), Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra;
  • Martins, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Justiça Administrativa n.º 106 de Julho/Agosto 2016.



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