Ana Carolina Godinho Neves, aluna n.º56901
da FDUL
O presente acórdão incide
sobre matéria do âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O autor é uma sociedade
por quotas que propõe no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro uma ação
administrativa comum sob processo ordinário contra uma Instituição Particular
de Solidariedade Social, “Associação de Desenvolvimento Social”, isso porque
entre ambos tinha sido celebrado um contrato de empreitada e a Associação nunca
chegou a pagar o valor total ao autor, contestando que este nunca tinha
procedido à eliminação dos defeitos da obra que lhe foram comunicados, pelo que
a sociedade vem perante um Tribunal Administrativo pedir a condenação da ré no
pagamento de 34.743,47 € + juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até
ao efetivo pagamento.
Acontece que o TAF de
Aveiro julgou-se incompetente para decidir da ação. Os autos foram então
remetidos ao Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, que, por sua vez,
considerou-se competente para julgar o caso. O réu, inconformado, recorre desta
decisão para o Tribunal da Relação do Porto, doravante TRP, que decidiu que
eram competentes os Tribunais Administrativos e absolveu, portanto, os réus da
instância.
Toda essa confusão resultou
no requerimento da resolução do conflito negativo de competência, pelo que se
enviaram os autos para o Tribunal dos Conflitos.
O Sr. Procurador-Geral
Adjunto deu parecer a favor da competência dos Tribunais Judiciais e o Tribunal
dos Conflitos, no acórdão que agora analisamos, vem corroborar essa posição.
Tanto o referido TAF como
o parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto consideraram competentes os Tribunais
judiciais, porém, por razões diferentes.
O primeiro tomou essa
posição fundamentando que aquela era uma ação cujo objetivo era efetivar a
responsabilidade civil que surgiu de um contrato entre sujeitos privados e que,
portanto, a relação jurídica era de direito privado e não público, pelo que
seriam competentes os tribunais comuns.
O Sr. Procurador chegou à
mesma conclusão, mas por caminho diferente, pois os seus argumentos
relacionam-se não com a natureza dos sujeitos ou do contrato, mas sim com o
procedimento pré-contratual: “por entender que o procedimento pré-contratual
que precedeu a celebração do contrato foi uma escolha livre da entidade que
lançou o concurso e que o art.º4./1e) do ETAF só atribuía essa competência aos
Tribunais Administrativos quando aquele procedimento fosse obrigatório por força
da lei. O que não era o caso.”
Por outro lado, o TRP pronunciou-se
no sentido de considerar os Tribunais Administrativos os competentes para
decidir este caso, porquanto o contrato de empreitada tinha “sido precedido de
procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público” o que à luz
do art.4º/1-e) ETAF inclui-se no âmbito de jurisdição dos Tribunais
Administrativos.
Dito isso, é percetível
que o problema que está em causa é saber se os Tribunais Administrativos são
competentes para decidir este caso à sombra da alínea e) do art.4º/1 ETAF.
Façamos uma breve análise
da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais:
Em primeira mão, temos o
art.212º/3 CRP, que dispõe que os TAF’s têm competência para dirimir ações e
recursos “que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas e fiscais”.
Encontramos disposição
semelhante no art.1º/1 ETAF, onde se refere novamente a expressão “relações
jurídicas administrativas e fiscais”.
Sendo assim, esse conceito
é a base para a delimitação do que é competência dos tribunais administrativos
e do que não é, porém, não existe uma definição legislativa de tal conceito,
pelo que é a doutrina e a jurisprudência que o constroem.
De acordo com o Professor Freitas do Amaral[1],
relação jurídico-administrativa é "aquela que confere poderes de
autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os
particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares
perante a Administração".
Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] afirmam
que a qualificação “relações jurídicas administrativas” “transporta duas dimensões
caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em
que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão
de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas
controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito
administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão
aqui em causa litígios de natureza ‘privada’ ou ‘jurídico civil’. Em termos
positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais
será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de
direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art.4.º).”
Aceitando que esse é um
conceito de difícil delimitação e sabendo que muitos mais autores se
pronunciaram sobre esse assunto e que até há tentativa de jurisprudência de dar
uma definição para tal conceito, podemos depreender que, tal como nos diz o Professor Vieira de Andrade[3]
“relação jurídico-administrativa” pode ser entendida em vários sentidos:
“Pode ser entendido, num
sentido subjetivo, em termos de incluir qualquer relação jurídica em que
intervenha a Administração, designadamente uma pessoa coletiva pública – a
razão de ser da existência de uma jurisdição especial seria a presença da
Administração Pública enquanto sujeito da relação, independentemente da veste
em que actuasse, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério
orgânico como padrão substancial de delimitação.
Mas também pode
entender-se, em termos predominantemente objetivos, como as relações jurídicas
em que intervenham entes públicos, mas
desde que sejam regulados pelo Direito Administrativo – nesse sentido, a razão
de ser da jurisdição administrativa seria, por contraposição com a jurisdição
dita ‘comum’, a existência de um estatuto especial do sujeito público,
designadamente, a presença de elementos de autoridade administrativa.
E há ainda um outro
entendimento, que faz corresponder o caráter ‘administrativo’ da relação ao
âmbito substancial da própria função administrativa. Resultaria do
contexto constitucional que o domínio considerado próprio dos tribunais
administrativos abrange as relações jurídicas que correspondam ao exercício da função
administrativa, entendida em sentido material.”
O problema que está
perante nós surge na relação entre os arts.212º/3 CRP + 1º/1 ETAF e as alíneas
do art.4º ETAF, especialmente com a e), pois como nos diz a Juíza Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas[4]
“Na verdade é na área dos litígios relativos a contratos (e através daquelas
normas[5]) que sobretudo se operam
os maiores desvios ao critério material (geral) de delimitação da competência
dos Tribunais Administrativos vertido no artigo 212.º, n.º 3, da CRP e acolhido
no n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.”
O acórdão de 26 de Março
de 2019 do Supremo Tribunal de Justiça[6] afirma que “(...) a fim de
alcançar a natureza administrativa de uma relação jurídica, deverá fazer-se um
juízo de articulação entre a cláusula geral do artigo 1.º, n.º 1, e os
critérios do artigo 4.º, ambos do ETAF, posto que a aludida natureza apenas se
alcança perante uma diversidade de elementos de conexão e será o referido
artigo 4.º, na sua delimitação positiva (n.º 1), bem como na negativa (n.ºs 2 e
3), que permitirá clarificar aquilo que está, efetivamente, abrangido pelo
âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos.”
Façamos então a
delimitação positiva e negativa da alínea e) art.4º ETAF:
A primeira parte da
alínea e) é de fácil interpretação, pois
o Código dos Contratos Públicos determina tipos de contratos administrativos ou
fornece critérios para se proceder a essa determinação.
Já a segunda parte e
citando o Professor Licínio Lopes Martins[7]
a nova alínea e) pretenderá introduzir
uma dupla limitação “pela positiva, para concentrar nos tribunais
administrativos todas as questões (litígios) da contratação pública,
independentemente da qualidade subjetiva das entidades adjudicantes (pessoas
coletivas públicas ou privadas) e independentemente ainda da natureza
administrativa ou privada do contrato que celebrem; e pela negativa, para
excluir deles os contratos de direito privado na Administração e os contratos
(públicos) da Administração que não sejam celebrados nos termos da legislação
sobre contratação pública.”
O referido autor reforça
ainda o facto de que a delimitação da alínea em questão “tem necessariamente de
ser feita através da sua conjugação sistemática com a designada ‘legislação
sobre contratação pública’, o que inclui, desde logo, o CCP e toda ou qualquer
outra legislação especial que a tenha por objeto e, naturalmente, a legislação
do direito europeu, designadamente as diretivas sobre a contratação pública.”
Fazendo um breve resumo[8] da presente alínea:
Temos aí o contencioso
dos contratos, mas apenas dos contratos públicos.
O que está incluído:
·
Código dos Contratos Públicos;
· Toda a legislação especial que tenha por
objeto a contratação pública;
·
Diretivas da UE sobre contratação pública.
O que está excluído:
·
Contratos Públicos cuja celebração não
deva estar sujeita àquela legislação por existir uma expressa exclusão legal,
como por ex.art.4º/2 CCP;
· Contratos “cujo objeto abranja prestações
que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidos à concorrência de mercado”,
arts.16º/1 e 5º/1 CCP;
· Casos em que exista uma limitação
relativamente às entidades da AP clássica na medida em que nem todos os
Contratos públicos celebrados por esta entidade se encontram sujeitos ao regime
da contratação pública.
Uma das notas que foi referida e que é a mais
importante a reter relaciona-se com a subjetividade, isto é, a irrelevância
de um critério subjetivo[9].
Voltemos ao caso concreto:
Apenas para clarificar, a autora é sujeito de direito
privado e a ré pessoa coletiva de direito público, porém, como acabámos de ver,
não é a qualidade dos sujeitos que vai definir quais os Tribunais competentes,
pelo que temos de concordar com o parecer do Procurador-Adjunto nesse ponto.
O contrato presente neste caso não era administrativo,
pelo que devemos logo afastar a 1ª parte da alínea e) e verificar se se inseria
na 2ª.
Ficou provado que foi publicado anúncio pela
Instituição de Solidariedade no Diário da República e que, portanto, o
procedimento pré-contratual foi regulado por normas de direito público, visto
que a “celebração do contrato de empreitada que serve de fonte às pretensões
formuladas pela autora foi precedida de concurso público nos termos previstos
no art.48º do DL n.º405/93, de 10/12.”
Por essa 2ª parte já haveria possibilidade de serem os
TAF competentes para julgar deste caso, contudo, não foi isso que decidiu este
Tribunal, pois este entendeu que teria de haver um comando no referido artigo
48º ou até do art.23º Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade
Social, aprovado pelo DL 119/83, de 25 de Fevereiro, que obrigasse a um
procedimento pré-contratual público, isto é, teria de haver uma imposição legal
para se adotar tal procedimento, o que não existia neste caso, apenas houve
vontade por parte do Instituto em agir daquela forma.
Porém, não parece haver nada na letra do artigo que
imponha essa exigência e parece ter sido este o entendimento do TRP, que
decidiu que “a circunstância do contrato ter sido precedido de procedimento
pré-contratual regulado por normas de direito público bastava para que, por
força do disposto na citada norma do ETAF, a competência para o julgamento da
acção tivesse de ser atribuída aos TAF’s.”
Na 13ª versão do ETAF (Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio),
a alínea e) dispunha o seguinte: “Questões relativas à validade de actos
pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito
dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam
submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito
público;”
Porém, já na 14ª versão (DL
n.º 214-G/2015, de 02/10), isso foi alterado para o que temos hoje na 15ª
versão.
Parece-me que olhando
apenas ao sentido literal do artigo (“nos termos de legislação sobre
contratação pública”) estaríamos a abrir demasiado o leque de competência,
visto que os TAF’s teriam competência para julgar sempre que um contrato
privado pudesse seguir procedimento pré-contratual regulado pelo direito
público. Estaríamos a ir contra a divisão feita entre os tipos de Tribunais.
Pelo que a exigência tem de ser um pouco maior do que a que lemos na alínea e).
É por essa razão que
concordo com o que foi decidido no presente acórdão, que este é um caso que deve ser decidido pelos Tribunais Comuns.
Notas de Rodapé:
[2] Canotilho, Gomes & Vital Moreira (2010), Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição
revista, Coimbra Editora, Coimbra,
págs.566 e 567.
[3] Andrade, José Carlos Vieira de (2014), A Justiça Administrativa Lições, 13ª edição, Almedina, Coimbra, pág.48.
[4] Canelas, Maria Helena Barbosa Ferreira,
A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em Sede de
Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, in Julgar
n.º15-2011, Coimbra Editora, pág.110, disponível no seguinte website: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/07/05-DEBATER-A-compet%C3%AAncia-dos-Tribunais-Administrativos.pdf
[5] Refere-se às antigas alíneas b),
e) e f) ETAF, mas penso que a atual alínea e) (agrega todas as 3) continua a
ser das que faz um desvio maior ao critério do disposto nos arts.212º/3 CRP e
1º/1 ETAF.
[6]Proc. 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1,
acessível através do seguinte website: http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1af9d8e1c00963f1802583ca005645e4?OpenDocument
[7] Martins, Licínio Lopes,
Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais revisto, in Justiça Administrativa n.º 106
de Julho/Agosto 2016,
pág.13.
Bibliografia:
- Amaral, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, Vol. III, Lisboa;
- Andrade, José Carlos Vieira de (2014), A Justiça Administrativa Lições, 13ª edição, Almedina, Coimbra;
- Canelas, Maria Helena Barbosa Ferreira, A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em Sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, in Julgar n.º15-2011, Coimbra Editora;
- Canotilho, Gomes & Vital Moreira (2010), Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra;
- Martins, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Justiça Administrativa n.º 106 de Julho/Agosto 2016.
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