Comentário ao Acórdão do TCA sul, de 24 de maio de 2018
O
presente texto incidirá sobre a decisão do Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul, de 24 de maio de 2018, Proc. 1336/17.7BELSB, relativo a
uma impugnação judicial de uma decisão da Administração Pública de aplicação de
uma coima, em virtude de uma contraordenação.
Caso
O
café, Lda., impugnou judicialmente uma decisão proferida pela Câmara municipal
de Lisboa no âmbito de um processo de contraordenação, que a condenou ao
pagamento de uma coima no valor de EUR 600,00, prevista e punida pelo artigo 21.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de Dezembro, na redação dada pelo
Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro.
Em
concreto, a arguida foi acusada da prática de um ilícito contraordenacional
pela utilização de um recinto sem licença de utilização para os efeitos de
realização de espetáculos e de divertimentos públicos.
Apreciação
da decisão do tribunal
O
problema aqui em causa diz respeito à competência em razão da jurisdição, nomeadamente
se o tribunal administrativo é competente para apreciar o litígio, ou se, pelo
contrário, deve remeter o processo para os tribunais judiciais. Para que tal
duvida seja esclarecida, é necessário discernir quanto à possibilidade de
integração deste caso no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e
fiscais, designadamente na al.l) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF), que estabelece a competência para
apreciar litígios por parte destes tribunais em questões relativas a
“Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas
no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito
administrativo em matéria de urbanismo.
Cabe,
então, saber se há uma violação de normas de direito administrativo em matéria
de urbanismo para efeitos de competência do tribunal administrativo para apreciar
o litígio.
Ora,
como fora supramencionado, uma das questões que importa abordar incide sobre a
competência em razão da jurisdição, isto é, se a ação deve ser proposta perante
a jurisdição administrativa e fiscal, e não perante tribunais judiciais – diga-se
de passagem que, no acórdão, o tribunal decidiu não conhecer do objeto do recurso,
declarando a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria.
As
questões de delimitação do âmbito da jurisdição não deixam de ser, em bom
rigor, questões de competência em razão da matéria, na medida em que se
distribuem as competências de acordo com um critério de especialização em
função da natureza do litígio a dirimir. No entanto, justifica-se esta distinção,
diferenciando as questões de competência em razão da matéria que se colocam
dentro do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, daquelas que se colocam
no âmbito das jurisdições[1].
Com
a revisão de 2015, o legislador do ETAF assumiu o reconhecimento da natureza
administrativa dos litígios sobre o ilícito de mera ordenação social através da
atribuição do poder de fiscalizar a legalidade desses atos aos tribunais
administrativos. Não obstante a tentativa de atribuição de competência em
matéria de ambiente, de ordenamento do território, de urbanismo, de património
cultural e de bens do Estado, a Lei de Autorização[2] apenas autorizou o Governo
a atribuir essa competência quando a aplicação dessas coimas se fundar na
violação de normas em matéria de urbanismo, na medida em que associado a isso
está uma rede de tribunais e juízes administrativos insuficiente[3]. Tal insuficiência leva o
legislador a colocar matérias de direito administrativo no âmbito dos tribunais
judiciais – até por uma questão de garantia da tutela jurisdicional efetiva
(art.20/4 CRP).
O
Direito do urbanismo é um conceito muito amplo, pelo que há uma manifesta
dificuldade de distinção em relação ao direito do ordenamento do território.
Ora,
antes de mais, importa referir que o urbanismo engloba o planeamento
urbanístico e a gestão urbanística, distinguindo-se ainda, a propósito deste
último, o urbanismo de nova urbanização e edificação e o urbanismo de
reabilitação urbana. Todas estas figuras têm regimes próprios com respetivas
contraordenações. No entanto, dá-se que nem todas integram o contencioso
administrativo.
Neste
contexto, a questão que essencialmente se coloca é a de saber qual é, afinal, o
âmbito das matérias transferidas para esta jurisdição, questão que se pode
dividir em outras duas:
(i) Quais são as contraordenações
urbanísticas?
(ii) Para
além da decisão de aplicação da coima (artigo 59.º do RGCO) os tribunais
administrativos passam também a ser competentes para a impugnação judicial das
decisões, despachos e demais medidas das autoridades administrativas tomadas no
decurso do processo de contraordenação que lesem imediatamente direitos ou
interesses das pessoas (artigo 55.º do RGCO)?
Entre
os argumentos invocados pelo tribunal para se declarar incompetente e, portanto,
para o facto pelo qual a coima foi aplicada não integrar o art.4.º do ETAF, estão:
(1) uma opção do legislador em deixar de fora do âmbito do urbanismo as
contraordenações em matérias de ambiente e de ordenamento do território, já que
não pretendia atribuir aos tribunais administrativos uma competência genérica
nesta matéria, bem como (2) o “direito do urbanismo” tratar-se de
um conceito muito amplo que, embora não conheça fronteiras perfeitamente
definidas, designadamente considerando o chamado “direito do ordenamento do
território” ou o “direito do ambiente”, refere-se no seu núcleo essencial ao
conjunto de normas e de institutos respeitantes à ocupação, uso e transformação
do solo, designadamente para fins de urbanização e de construção, fins
agrícolas e florestais, de valorização e proteção da natureza, de recuperação e
preservação dos centros históricos[4].
Acrescente-se
que, como refere a professora Fernanda Paula Oliveira, só as contraordenações
do RJUE (Regime jurídico de Urbanização e Edificação) constituem contraordenações
urbanísticas. Com efeito, e defendendo o que é sustentado pela professora,
é-nos dada a resposta à primeira questão. Aliás, o próprio artigo 75.º - A da
Lei-Quadro das contraordenações ambientais leva-nos a sustentar que as decisões
de contraordenações por violação do RJUE devem ser integradas no âmbito do
direito do urbanismo e, portanto, só estas devem ser alvo de impugnação para os
tribunais administrativos.
Assim,
seguindo a posição da professora, as matérias reguladas pelo RJUE (artigos 98.º
e 99.º) são da competência dos tribunais administrativos em caso de impugnação de decisões da Administração Publica, bem como as matérias
do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana (RJRU), constantes dos artigos 77.º-C
a 77.º-F, que em grande parte coincidem com as primeiras.
Quanto
à segunda questão, ainda que estivéssemos no domínio ambiental, importa aqui
afastar a sua relevância em relação ao caso, na medida em que está em causa uma
licença de utilização de recinto, e não uma possível lesão de direitos ou
interesses das pessoas associada à questão do ruido do espetáculo.
Segundo
a LQCA, na redação do artigo 1.º/4, “Constitui contraordenação do ordenamento
do território a violação dos planos municipais e intermunicipais e das medidas
preventivas”. Por sua vez, o artigo 1.º/2 do mesmo diploma dispõe que “Constitui
contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um
tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares
relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual
se comine uma coima”.
Ora,
como decorre do acórdão, a contraordenação em causa está tipificada em diploma
que regulamenta a instalação e funcionamento de recintos de espetáculos, no
âmbito das competências das câmaras municipais, em desenvolvimento do regime
previsto na alínea s) do n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 30-C/2000.
Parece-me
evidente que, estando em causa uma licença de utilização de recinto, que não
foi emitida pela Câmara municipal por falta de documentos pela requerente da
licença (Café, Lda.), estamos no âmbito de uma contraordenação ambiental.
Neste
plano, justifica-se a decisão do tribunal, ao declarar-se incompetente e,
portanto, remetendo para os tribunais judiciais competentes. O caso aqui
tratado está inserido na matéria ambiental. Ainda que o direito do urbanismo
englobe inúmeras outras matérias, designadamente o direito do ambiente, esta
matéria não está inserida na conceção de urbanismo presente no artigo 4.º do
ETAF para efeitos da sua aplicação. Como já foi referido, e devidamente
sustentado pela professora Fernanda Paula Oliveira, que inclusivamente é citada
no acórdão, as contraordenações em matérias urbanísticas que podem ser alvo de
impugnação são as que constam do RJUE e RJRU.
David Rito Mendes
4º ANO Subturma 10
Nº 28526
Contencioso Administrativo e Tributário
-
ALMEIDA, Mário Aroso de “Manual de processo administrativo”, 3ª edição,
Coimbra, 2017.
-SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”,
2ª edição, Almedina, 2009.
-
CORREIA, Fernando Alves, Estudos de Direito do Urbanismo, Almedina, 1997.
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Urbanismo2014_2017.pdf.
[1] AROSO DE
ALMEIDA, Mário – Manual de processo administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 157.
[2] Lei n.º
100/2015, de 19 de agosto
[3] AROSO DE
ALMEIDA, Mário – Manual de processo administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 176.
[4] CORREIA,
Fernando Alves – Estudos de Direito do Urbanismo, 1997, pág.97.
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