Sunday, 17 November 2019

Comentário ao Acórdão do TCA sul, de 24 de maio de 2018


Comentário ao Acórdão do TCA sul, de 24 de maio de 2018

O presente texto incidirá sobre a decisão do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 24 de maio de 2018, Proc. 1336/17.7BELSB, relativo a uma impugnação judicial de uma decisão da Administração Pública de aplicação de uma coima, em virtude de uma contraordenação.

Caso

O café, Lda., impugnou judicialmente uma decisão proferida pela Câmara municipal de Lisboa no âmbito de um processo de contraordenação, que a condenou ao pagamento de uma coima no valor de EUR 600,00,  prevista e punida pelo artigo 21.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de Dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro.

Em concreto, a arguida foi acusada da prática de um ilícito contraordenacional pela utilização de um recinto sem licença de utilização para os efeitos de realização de espetáculos e de divertimentos públicos.

Apreciação da decisão do tribunal

O problema aqui em causa diz respeito à competência em razão da jurisdição, nomeadamente se o tribunal administrativo é competente para apreciar o litígio, ou se, pelo contrário, deve remeter o processo para os tribunais judiciais. Para que tal duvida seja esclarecida, é necessário discernir quanto à possibilidade de integração deste caso no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, designadamente na al.l) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF), que estabelece a competência para apreciar litígios por parte destes tribunais em questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Cabe, então, saber se há uma violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo para efeitos de competência do tribunal administrativo para apreciar o litígio.

Ora, como fora supramencionado, uma das questões que importa abordar incide sobre a competência em razão da jurisdição, isto é, se a ação deve ser proposta perante a jurisdição administrativa e fiscal, e não perante tribunais judiciais – diga-se de passagem que, no acórdão, o tribunal decidiu não conhecer do objeto do recurso, declarando a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria.

As questões de delimitação do âmbito da jurisdição não deixam de ser, em bom rigor, questões de competência em razão da matéria, na medida em que se distribuem as competências de acordo com um critério de especialização em função da natureza do litígio a dirimir. No entanto, justifica-se esta distinção, diferenciando as questões de competência em razão da matéria que se colocam dentro do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, daquelas que se colocam no âmbito das jurisdições[1].

Com a revisão de 2015, o legislador do ETAF assumiu o reconhecimento da natureza administrativa dos litígios sobre o ilícito de mera ordenação social através da atribuição do poder de fiscalizar a legalidade desses atos aos tribunais administrativos. Não obstante a tentativa de atribuição de competência em matéria de ambiente, de ordenamento do território, de urbanismo, de património cultural e de bens do Estado, a Lei de Autorização[2] apenas autorizou o Governo a atribuir essa competência quando a aplicação dessas coimas se fundar na violação de normas em matéria de urbanismo, na medida em que associado a isso está uma rede de tribunais e juízes administrativos insuficiente[3]. Tal insuficiência leva o legislador a colocar matérias de direito administrativo no âmbito dos tribunais judiciais – até por uma questão de garantia da tutela jurisdicional efetiva (art.20/4 CRP).

O Direito do urbanismo é um conceito muito amplo, pelo que há uma manifesta dificuldade de distinção em relação ao direito do ordenamento do território.

Ora, antes de mais, importa referir que o urbanismo engloba o planeamento urbanístico e a gestão urbanística, distinguindo-se ainda, a propósito deste último, o urbanismo de nova urbanização e edificação e o urbanismo de reabilitação urbana. Todas estas figuras têm regimes próprios com respetivas contraordenações. No entanto, dá-se que nem todas integram o contencioso administrativo.

Neste contexto, a questão que essencialmente se coloca é a de saber qual é, afinal, o âmbito das matérias transferidas para esta jurisdição, questão que se pode dividir em outras duas:

(i)    Quais são as contraordenações urbanísticas?

(ii) Para além da decisão de aplicação da coima (artigo 59.º do RGCO) os tribunais administrativos passam também a ser competentes para a impugnação judicial das decisões, despachos e demais medidas das autoridades administrativas tomadas no decurso do processo de contraordenação que lesem imediatamente direitos ou interesses das pessoas (artigo 55.º do RGCO)?

Entre os argumentos invocados pelo tribunal para se declarar incompetente e, portanto, para o facto pelo qual a coima foi aplicada não integrar o art.4.º do ETAF, estão: (1) uma opção do legislador em deixar de fora do âmbito do urbanismo as contraordenações em matérias de ambiente e de ordenamento do território, já que não pretendia atribuir aos tribunais administrativos uma competência genérica nesta matéria, bem como (2) o “direito do urbanismo” tratar-se de um conceito muito amplo que, embora não conheça fronteiras perfeitamente definidas, designadamente considerando o chamado “direito do ordenamento do território” ou o “direito do ambiente”, refere-se no seu núcleo essencial ao conjunto de normas e de institutos respeitantes à ocupação, uso e transformação do solo, designadamente para fins de urbanização e de construção, fins agrícolas e florestais, de valorização e proteção da natureza, de recuperação e preservação dos centros históricos[4].

Acrescente-se que, como refere a professora Fernanda Paula Oliveira, só as contraordenações do RJUE (Regime jurídico de Urbanização e Edificação) constituem contraordenações urbanísticas. Com efeito, e defendendo o que é sustentado pela professora, é-nos dada a resposta à primeira questão. Aliás, o próprio artigo 75.º - A da Lei-Quadro das contraordenações ambientais leva-nos a sustentar que as decisões de contraordenações por violação do RJUE devem ser integradas no âmbito do direito do urbanismo e, portanto, só estas devem ser alvo de impugnação para os tribunais administrativos.

Assim, seguindo a posição da professora, as matérias reguladas pelo RJUE (artigos 98.º e 99.º) são da competência dos tribunais administrativos em caso de impugnação de decisões da Administração Publica, bem como as matérias do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana (RJRU), constantes dos artigos 77.º-C a 77.º-F, que em grande parte coincidem com as primeiras.

Quanto à segunda questão, ainda que estivéssemos no domínio ambiental, importa aqui afastar a sua relevância em relação ao caso, na medida em que está em causa uma licença de utilização de recinto, e não uma possível lesão de direitos ou interesses das pessoas associada à questão do ruido do espetáculo.

Segundo a LQCA, na redação do artigo 1.º/4, “Constitui contraordenação do ordenamento do território a violação dos planos municipais e intermunicipais e das medidas preventivas”. Por sua vez, o artigo 1.º/2 do mesmo diploma dispõe que “Constitui contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima”.

Ora, como decorre do acórdão, a contraordenação em causa está tipificada em diploma que regulamenta a instalação e funcionamento de recintos de espetáculos, no âmbito das competências das câmaras municipais, em desenvolvimento do regime previsto na alínea s) do n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 30-C/2000.

Parece-me evidente que, estando em causa uma licença de utilização de recinto, que não foi emitida pela Câmara municipal por falta de documentos pela requerente da licença (Café, Lda.), estamos no âmbito de uma contraordenação ambiental.

Neste plano, justifica-se a decisão do tribunal, ao declarar-se incompetente e, portanto, remetendo para os tribunais judiciais competentes. O caso aqui tratado está inserido na matéria ambiental. Ainda que o direito do urbanismo englobe inúmeras outras matérias, designadamente o direito do ambiente, esta matéria não está inserida na conceção de urbanismo presente no artigo 4.º do ETAF para efeitos da sua aplicação. Como já foi referido, e devidamente sustentado pela professora Fernanda Paula Oliveira, que inclusivamente é citada no acórdão, as contraordenações em matérias urbanísticas que podem ser alvo de impugnação são as que constam do RJUE e RJRU. 

David Rito Mendes 
4º ANO Subturma 10
Nº 28526
Contencioso Administrativo e Tributário 


Bibliografia:

- ALMEIDA, Mário Aroso de “Manual de processo administrativo”, 3ª edição, Coimbra, 2017.

-SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, Almedina, 2009.

- CORREIA, Fernando Alves, Estudos de Direito do Urbanismo, Almedina, 1997.

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Urbanismo2014_2017.pdf.



[1] AROSO DE ALMEIDA, Mário – Manual de processo administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 157.
[2] Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto
[3] AROSO DE ALMEIDA, Mário – Manual de processo administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 176.
[4] CORREIA, Fernando Alves – Estudos de Direito do Urbanismo, 1997, pág.97.

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