Comentário ao Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul de 19 de Dezembro de 2017 - A legitimidade ativa nas Ações
populares
Rafaela Figueiredo Lima, Aluna n.º 56894, 4TA10
I. Introdução
A decisão do Tribunal Central
Administrativo Sul de 19 de Dezembro de 2017 é o objecto deste comentário. O
tribunal decidiu no mesmo sentido do acórdão recorrido, considerando que o
recorrente não teria legitimidade ativa para estar em juízo, conforme decidiu a
sentença recorrida.
Estando o desenvolvimento do comentário
subordinado a uma particular investigação da temática do pressuposto processual
da legitimidade ativa, na qual o acórdão se apresenta rico, a análise incidirá
fundamentalmente sobre as questões subjacentes a esse âmbito. A apresentação
dos factos relevantes (II) permitirá criar um quadro fiel da situação
global que envolve o processo decisório em questão e a legitimidade ativa do
recorrente, nomeadamente para o exercício do Direito de Ação Popular. Após esse
enquadramento, estaremos em posição de atender à decisão contida no acórdão e
aos problemas que são objecto de análise aprofundada, desconstruindo
dogmaticamente a decisão proferida (III). Por fim, encontrar-nos-emos em
capacidade de tecer breves considerações sobre o acórdão (IV).
II. O Enquadramento factual
Aprioristicamente, de
modo a proceder a uma correta identificação dos problemas
jurídico-administrativos em discussão e dos vários planos de análise a que
procederam os tribunais perante o caso, opta-se por descrever os factos
relevantes.
Começando pela
identificação das partes, o autor é o Grupo de
Cidadãos Eleitores - Movimento Sintra Paixão com Independência, doravante,
Grupo de Cidadãos Eleitores, um grupo cívico, sem personalidade jurídica,
constituído com vista à fomentação da participação da sociedade civil. Este
movimento prevê nos seus estatutos que tem por objetivo a “contribuição para
uma sociedade civil mais participativa, mais proactiva, mais aberta à
discussão, à valorização do potencial humano, tendo em vista o bem comum”
(artigo 1.º Estatutos do Grupo de Cidadãos Eleitores).
O réu
desta ação, intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, é a Junta
de Freguesia Queluz e Belas. O Grupo interpôs uma ação de impugnação de ato
administrativo contra a Junta de Freguesia de Queluz e Belas, fundada na defesa
da legalidade, que alegam ter sido violada aquando de uma deliberação de um ato
da Assembleia de Freguesia, na qual foram exercidos ilegalmente direitos de
voto e participaram ilegalmente vogais que já tinham renunciado ao seu mandato,
segundo o recorrente. Este ato administrativo estaria relacionado com o
espólio, o orçamento e a gestão de dinheiros públicos, podendo assim, estar
aqui em causa o bom uso de bens de domínio público. O Tribunal Administrativo e
Fiscal de Sintra apreciou a ação e concluiu pela ilegitimidade ativa, tendo os
autores recorrido dessa decisão no acórdão que agora analisamos.
III. A desconstrução da
decisão proferida
As
considerações anteriores permitem que, nesta sede, procedamos à análise da
decisão proferida. A questão principal a ser respondida consiste em saber se o
Grupo de Cidadãos Eleitores tinha legitimidade ativa ou, por outro lado, era
parte ilegítima no processo. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra
indeferiu liminarmente a Petição Inicial apresentada.
A ação
intentada pelo Grupo de Cidadãos eleitores foi uma ação de impugnação (artigo
55.º CPTA). Este tipo de ação tem por objeto, em termos amplos, o controlo da
invalidade. Por esta razão, a “lei continua a prever a utilização deste meio
para obter a declaração de nulidade ou inexistência de actos administrativos”[1].
A causa de pedir neste processo é, portanto, a ilegalidade do ato impugnado.
Releva
agora analisar a legitimidade das partes no processo. Este pressuposto
processual divide-se em legitimidade ativa, “que implica a titularidade do
direito”[2] e em legitimidade passiva, relativa à entidade contra quem se
formula o pedido ou que seja prejudicada pela sua procedência”[3]. A regra
geral no processo administrativo, consagrada no n.º 1 do artigo 9.º do CPTA, é
que tem legitimidade ativa e direta quem for parte na relação material
controvertida, isto é, quem for parte na relação jurídico-administrativa, com
intuito de dar um sentido útil às decisões dos tribunais.
Sem
embargo, a lei administrativa admite a ação popular. Este tipo de ação tem
sofrida uma longa evolução histórica, atendendo ao facto de que remonta ao
Direito Romano, em que era considerada “uma forma de ação judicial conferida a
todo e qualquer cidadão, para a exclusiva prossecução do interesse público”[4].
A ação popular é definida como uma ação judicial, que concede a faculdade de
exigir aos órgãos jurisdicionais a prestação de uma atividade contenciosa,
destinada à resolução de um litígio[5]. Esta ação, que expande o âmbito da
legitimidade ativa, encontra fundamento n.º 3 do artigo 52º da Constituição de
República Portuguesa[6], que consagra o direito de ação popular, no n.º 2 do artigo 9.º e na al. f),
do n.º 2 do artigo 55.º do CPTA e na Lei do Direito da Participação
Procedimental e da Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto). Sendo um
direito fundamental constitucionalmente consagrado, a ação popular permite a
quem não é titular de um interesse direto e pessoal, ser parte numa ação que
vise a defesa de interesses de toda a coletividade. É estabelecido um regime
excepcional que expande o conceito de legitimidade direta e pessoal e admite um
conceito de legitimidade indireta ou difusa que garante uma maior tutela
jurisdicional dos direitos dos administrados, nomeadamente interesses públicos,
coletivos e difusos.
Como
foi referido, a ação do acórdão em análise é uma ação de impugnação de ato
administrativo e uma ação popular[7]. Existem duas modalidades de ação popular:
a ação popular genérica (artigo 55.º, n.º1, al. f) e artigo 9.º, n.º 2) e a
ação popular de âmbito autárquico, corretiva (artigo 55.º, n.º 2). Na primeira
modalidade, é conferida legitimidade aos particulares e a pessoas coletivas que
ajam objetivamente em função do interesse público e na defesa da legalidade,
tenham estes ou não interesse direto no processo em causa. A segunda modalidade
é mais restrita em relação à primeira e discute-se se esta foi absorvida pela
primeira modalidade, de cariz mais amplo. Vejamos, a previsão do artigo 9.º,
n.º 2 inclui elementos como “qualquer eleitor” e “bens e valores
constitucionalmente protegidos”, que acabam por incluir a previsão do artigo
55.º n.º 2, que se refere à possibilidade de qualquer eleitor impugnar
deliberações de órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se
encontre o recenseado, ou seja, estes eleitores são um grupo restrito dentro do
universo de “eleitores” do artigo 9.º n.º 2 e o âmbito da ação popular genérica
abrange qualquer decisão administrativa, portanto incluem-se as decisões de
órgãos autárquicos. Deste modo, o artigo 55.º, n.º 2 vem completar o artigo 9.º
n.º 2.
Observando
a hipótese em apreciação, importa apurar se se inclui o caso no âmbito da ação
popular genérica (mais ampla), se cabe na ação popular de âmbito autárquico ou
se de facto o recorrente não detém nenhum título de legitimidade.
Analisando
primeiro a legitimidade do recorrente, nos termos do artigo 55.º, n.º 2: para
ser parte legítima e consequentemente poder impugnar a deliberação da
Assembleia de Freguesia, o Grupo de Cidadãos eleitores deve (i) ser um eleitor
(ii) em exercício dos seus direitos civis e políticos e (iii) a deliberação
deve ser adotada por órgãos da autarquia local sediada na circunscrição onde o
eleitor se encontre recenseado. Ora, o Grupo de Cidadãos não é um eleitor mas
sim um movimento constituído por vários eleitores, que assim se constituíram
como Gupo e intentaram a ação popular, logo não se enquadram nesta modalidade
de ação popular. Os Tribunais Administrativos de Sintra e Central do Sul
decidiram ambos no sentido do afastamento da aplicação do artigo 55.º n.º2 ao
caso apresentado às suas jurisdições.
A
legitimidade ativa que consta no artigo 55.º, n.º1, al. f), que remete para o
artigo 9.º n.º 2 deve ser analisada à luz da Lei 83/95, para a qual remete este
último artigo mencionado.
O
artigo 9.º n.º2, que se pode subdividir em vários pontos, estabelece que, tendo
ou não interesse pessoal na ação, pode propor ou intervir num processo, (de
impugnação quando aplicamos este artigo através da remissão do artigo 55.º,
n.º1, al. f)): (i) qualquer pessoa e ainda associações, fundações defensoras
dos interesses em causa, autarquias locais e o Ministério público, (ii) nos
termos previstos na lei, remetendo para a Lei n.º 83/95 (iii) em processos
principais ou cautelares que visem a defesa de interesses constitucionalmente
protegidos: como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do
território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das
Regiões Autónomas e autarquias locais, bem como para promover a execução das
correspondentes decisões jurisdicionais.
Quanto
ao ponto (i), não estamos novamente perante uma pessoa singular, nem uma
associação ou fundação, ainda que o Grupo de Cidadãos eleitores vise a defesa
dos interesses na causa, não é uma pessoa coletiva, é um movimento de cidadãos
sem personalidade jurídica.
No que
diz respeito à lei aplicável, a Lei da Ação Popular, nos seus artigos 2.º e
3.º, estabelece alguns requisitos que densificam a legitimidade do artigo 9.º
n.º2, . De acordo com o artigo 3.º da Lei de Ação Popular “constituem
requisitos da legitimidade activa das associações e fundações: a) A
personalidade jurídica; b) O incluírem expressamente nas suas atribuições
ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de
acção de que se trate”, ou seja, retira-se daqui um requisito de
especialidade, que só estaria verificado se constasse nas atribuições do
movimento e expresso nos objetivos estatutários que este prossegue a
defesa da legalidade em sentido objetivo. Tal não sucede: o dito movimento tem
como finalidades fomentar a participação
na sociedade civil e incentivar para que dentro dessa sociedade se discutam
diversas questões com interesse para o “bem comum”, e não a fiscalização e
eventual denúncia das competências (ou falta delas), bem como a atuação dos
órgãos públicos e a análise das suas condutas. Esta lei estabelece ainda outro
requisito para a extensão da legitimidade ativa: a territorialidade, que
implica que a ação popular compreenda bens ou interesses conexos com a área de
circunscrição onde intervém o Grupo de Cidadãos Eleitores, e respeitando a
incidência geográfica do movimento, que poderá ser local, regional ou nacional,
segundo a Lei n.º 35/98, de 18 de julho, artigo 7.º, n.º 3. Em suma, dos dois
requisitos só estaria preenchido o da territorialidade, o da especialidade não
se verificava, conforme decidiu o Tribunal, e bem, no nosso entendimento.
A ação popular deve
incidir sobre algum interesse difuso, constitucionalmente protegido, foi por
isso invocado pelos atores da ação o argumento de que estariam em causa na
deliberação da Assembleia de Freguesia bens de domínio público das autarquias
locais. Estes bens estão tipificados no artigo 84.º CRP, sendo esta enumeração
taxativa, por esta razão o tribunal não acolheu este argumento.
IV.
Conclusão
Do
exposto conseguem-se agora retirar algumas observações quanto ao objecto do
comentário. Em suma, o tribunal labutou uma boa decisão. Identificando a falta
de legitimidade ativa do recorrente, demonstrou uma leitura correcta do
enquadramento da situação fáctica. Concluindo pela confirmação da decisão
recorrida que impediu a impugnação do ato administrativo devido à inexistência
de fundamento jurídico que justifique a extensão da legitimidade à situação
analisada, esteve novamente bem, dado que, permitiu discorrer várias excepções
à regra da legitimidade ativa do artigo 9.º, n.º 1, não obstante nenhuma delas
estar preenchida pelos dados do caso.
Apesar
de numa primeira leitura dos factos parecer intuitivo que um movimento que vise
a participação na sociedade civil possa legitimamente interpor uma ação
popular, depois de uma análise mais profunda e verificadas as bases legais, a
perspetiva sobre a decisão, que se afigurava, de uma forma geral, um pouco
injusta, muda e concordamos com a opção feita pelo tribunal, que é conforme aos
trâmites legais. Note-se que a Lei de Ação popular é bastante estrita e clara
nos casos em que permite a extensão da legitimidade do artigo 9.º n.º1 CPTA,
não tendo legitimidade para impugnar atos administrativos qualquer parte que
aparentemente defenda uma causa justa.
Notas de fim
de página:
[1] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa -
Lições, Almedina, 2014, p. 187;
[2] Ibidem, p.269;
[3] Ibidem, p. 269;
[4] ANDRADE, José Robin, A acção Popular no Direito
Administrativo Português, Coimbra Editora, 1967, p. 7;
[5] Ibidem, p.3;
[6] Doravante, “CRP”;
[7] Leia-se “ação” não num sentido técnico contraposto ao de recurso, nem no sentido de ação judicial, que neste caso é uma ação especial de impugnação.
Bibliografia:
- ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, 3ª edição, Coimbra, 2017.
- SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, Almedina, 2009.
- OTERO, Paulo, “A ação popular: configuração e valor no atual Direito português”, revista da ordem dos advogados, nº 59 vol. III, Lisboa, 1999.
- COIMBRA, José Duarte, “A «legitimidade» do Interesse na Legitimidade Ativa de Particulares para impugnação de atos administrativos, Trabalho de Oral de Melhoria, Contencioso Administrativo e Tributário, 2012/2013, in www.icjp.pt.
- ANDRADE, José Robin, A acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra Editora, 1967.
- ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa - Lições, Almedina, 2014.
- Acórdão analisado disponível em:: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/950940472DBDDE158025820B003A675E (consultado em 9/11/2019)
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