Sunday, 17 November 2019

Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19 de Dezembro de 2017 - A legitimidade ativa nas Ações populares



Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19 de Dezembro de 2017 - A legitimidade ativa nas Ações populares
                                                                                    Rafaela Figueiredo Lima, Aluna n.º 56894, 4TA10

I. Introdução
       A decisão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19 de Dezembro de 2017 é o objecto deste comentário. O tribunal decidiu no mesmo sentido do acórdão recorrido, considerando que o recorrente não teria legitimidade ativa para estar em juízo, conforme decidiu a sentença recorrida.
       Estando o desenvolvimento do comentário subordinado a uma particular investigação da temática do pressuposto processual da legitimidade ativa, na qual o acórdão se apresenta rico, a análise incidirá fundamentalmente sobre as questões subjacentes a esse âmbito. A apresentação dos factos relevantes (II) permitirá criar um quadro fiel da situação global que envolve o processo decisório em questão e a legitimidade ativa do recorrente, nomeadamente para o exercício do Direito de Ação Popular. Após esse enquadramento, estaremos em posição de atender à decisão contida no acórdão e aos problemas que são objecto de análise aprofundada, desconstruindo dogmaticamente a decisão proferida (III). Por fim, encontrar-nos-emos em capacidade de tecer breves considerações sobre o acórdão (IV).

II. O Enquadramento factual
Aprioristicamente, de modo a proceder a uma correta identificação dos problemas jurídico-administrativos em discussão e dos vários planos de análise a que procederam os tribunais perante o caso, opta-se por descrever os factos relevantes.
Começando pela identificação das partes, o autor é o Grupo de Cidadãos Eleitores - Movimento Sintra Paixão com Independência, doravante, Grupo de Cidadãos Eleitores, um grupo cívico, sem personalidade jurídica, constituído com vista à fomentação da participação da sociedade civil. Este movimento prevê nos seus estatutos que tem por objetivo a “contribuição para uma sociedade civil mais participativa, mais proactiva, mais aberta à discussão, à valorização do potencial humano, tendo em vista o bem comum” (artigo 1.º Estatutos do Grupo de Cidadãos Eleitores).
O réu desta ação, intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, é a Junta de Freguesia Queluz e Belas. O Grupo interpôs uma ação de impugnação de ato administrativo contra a Junta de Freguesia de Queluz e Belas, fundada na defesa da legalidade, que alegam ter sido violada aquando de uma deliberação de um ato da Assembleia de Freguesia, na qual foram exercidos ilegalmente direitos de voto e participaram ilegalmente vogais que já tinham renunciado ao seu mandato, segundo o recorrente. Este ato administrativo estaria relacionado com o espólio, o orçamento e a gestão de dinheiros públicos, podendo assim, estar aqui em causa o bom uso de bens de domínio público. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra apreciou a ação e concluiu pela ilegitimidade ativa, tendo os autores recorrido dessa decisão no acórdão que agora analisamos. 

III. A desconstrução da decisão proferida
As considerações anteriores permitem que, nesta sede, procedamos à análise da decisão proferida. A questão principal a ser respondida consiste em saber se o Grupo de Cidadãos Eleitores tinha legitimidade ativa ou, por outro lado, era parte ilegítima no processo. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra indeferiu liminarmente a Petição Inicial apresentada.
A ação intentada pelo Grupo de Cidadãos eleitores foi uma ação de impugnação (artigo 55.º CPTA). Este tipo de ação tem por objeto, em termos amplos, o controlo da invalidade. Por esta razão, a “lei continua a prever a utilização deste meio para obter a declaração de nulidade ou inexistência de actos administrativos”[1]. A causa de pedir neste processo é, portanto, a ilegalidade do ato impugnado.
Releva agora analisar a legitimidade das partes no processo. Este pressuposto processual divide-se em legitimidade ativa, “que implica a titularidade do direito”[2] e em  legitimidade passiva, relativa à entidade contra quem se formula o pedido ou que seja prejudicada pela sua procedência”[3]. A regra geral no processo administrativo, consagrada no n.º 1 do artigo 9.º do CPTA, é que tem legitimidade ativa e direta quem for parte na relação material controvertida, isto é, quem for parte na relação jurídico-administrativa, com intuito de dar um sentido útil às decisões dos tribunais. 
Sem embargo, a lei administrativa admite a ação popular. Este tipo de ação tem sofrida uma longa evolução histórica, atendendo ao facto de que remonta ao Direito Romano, em que era considerada “uma forma de ação judicial conferida a todo e qualquer cidadão, para a exclusiva prossecução do interesse público”[4]. A ação popular é definida como uma ação judicial, que concede a faculdade de exigir aos órgãos jurisdicionais a prestação de uma atividade contenciosa, destinada à resolução de um litígio[5]. Esta ação, que expande o âmbito da legitimidade ativa, encontra fundamento n.º 3 do artigo 52º da Constituição de República Portuguesa[6], que  consagra o direito de ação popular,  no n.º 2 do artigo 9.º e na al. f), do n.º 2 do artigo 55.º do CPTA e na Lei do Direito da Participação Procedimental e da Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto). Sendo um direito fundamental constitucionalmente consagrado, a ação popular permite a quem não é titular de um interesse direto e pessoal, ser parte numa ação que vise a defesa de interesses de toda a coletividade. É estabelecido um regime excepcional que expande o conceito de legitimidade direta e pessoal e admite um conceito de legitimidade indireta ou difusa que garante uma maior tutela jurisdicional dos direitos dos administrados, nomeadamente interesses públicos, coletivos e difusos.
Como foi referido, a ação do acórdão em análise é uma ação de impugnação de ato administrativo e uma ação popular[7]. Existem duas modalidades de ação popular: a ação popular genérica (artigo 55.º, n.º1, al. f) e artigo 9.º, n.º 2) e a ação popular de âmbito autárquico, corretiva (artigo 55.º, n.º 2). Na primeira modalidade, é conferida legitimidade aos particulares e a pessoas coletivas que ajam objetivamente em função do interesse público e na defesa da legalidade, tenham estes ou não interesse direto no processo em causa. A segunda modalidade é mais restrita em relação à primeira e discute-se se esta foi absorvida pela primeira modalidade, de cariz mais amplo. Vejamos, a previsão do artigo 9.º, n.º 2 inclui elementos como “qualquer eleitor” e “bens e valores constitucionalmente protegidos”, que acabam por incluir a previsão do artigo 55.º n.º 2, que se refere à possibilidade de qualquer eleitor impugnar deliberações de órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre o recenseado, ou seja, estes eleitores são um grupo restrito dentro do universo de “eleitores” do artigo 9.º n.º 2 e o âmbito da ação popular genérica abrange qualquer decisão administrativa, portanto incluem-se as decisões de órgãos autárquicos. Deste modo, o artigo 55.º, n.º 2 vem completar o artigo 9.º n.º 2.
Observando a hipótese em apreciação, importa apurar se se inclui o caso no âmbito da ação popular genérica (mais ampla), se cabe na ação popular de âmbito autárquico ou se de facto o recorrente não detém nenhum título de  legitimidade. 
Analisando primeiro a legitimidade do recorrente, nos termos do artigo 55.º, n.º 2: para ser parte legítima e consequentemente poder impugnar a deliberação da Assembleia de Freguesia, o Grupo de Cidadãos eleitores deve (i) ser um eleitor (ii) em exercício dos seus direitos civis e políticos e (iii) a deliberação deve ser adotada por órgãos da autarquia local sediada na circunscrição onde o eleitor se encontre recenseado. Ora, o Grupo de Cidadãos não é um eleitor mas sim um movimento constituído por vários eleitores, que assim se constituíram como Gupo e intentaram a ação popular, logo não se enquadram nesta modalidade de ação popular. Os Tribunais Administrativos de Sintra e Central do Sul decidiram ambos no sentido do afastamento da aplicação do artigo 55.º n.º2 ao caso apresentado às suas jurisdições.
A legitimidade ativa que consta no artigo 55.º, n.º1, al. f), que remete para o artigo 9.º n.º 2 deve ser analisada à luz da Lei 83/95, para a qual remete este último artigo mencionado. 
O artigo 9.º n.º2, que se pode subdividir em vários pontos, estabelece que, tendo ou não interesse pessoal na ação, pode propor ou intervir num processo, (de impugnação quando aplicamos este artigo através da remissão do artigo 55.º, n.º1, al. f)): (i) qualquer pessoa e ainda associações, fundações defensoras dos interesses em causa, autarquias locais e o Ministério público, (ii) nos termos previstos na lei, remetendo para a Lei n.º 83/95 (iii) em processos principais ou cautelares que visem a defesa de interesses constitucionalmente protegidos: como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e autarquias locais, bem como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.  
Quanto ao ponto (i), não estamos novamente perante uma pessoa singular, nem uma associação ou fundação, ainda que o Grupo de Cidadãos eleitores vise a defesa dos interesses na causa, não é uma pessoa coletiva, é um movimento de cidadãos sem personalidade jurídica.  
No que diz respeito à lei aplicável, a Lei da Ação Popular, nos seus artigos 2.º e 3.º, estabelece alguns requisitos que densificam a legitimidade do artigo 9.º n.º2, . De acordo com o artigo 3.º da Lei de Ação Popular “constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações: a) A personalidade jurídica;  b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate”, ou seja, retira-se daqui um requisito de especialidade, que só estaria verificado se constasse nas atribuições do movimento e expresso nos objetivos estatutários  que este prossegue a defesa da legalidade em sentido objetivo. Tal não sucede: o dito movimento tem como finalidades  fomentar a participação na sociedade civil e incentivar para que dentro dessa sociedade se discutam diversas questões com interesse para o “bem comum”, e não a fiscalização e eventual denúncia das competências (ou falta delas), bem como a atuação dos órgãos públicos e a análise das suas condutas. Esta lei estabelece ainda outro requisito para a extensão da legitimidade ativa: a territorialidade, que implica que a ação popular compreenda bens ou interesses conexos com a área de circunscrição onde intervém o Grupo de Cidadãos Eleitores, e respeitando a incidência geográfica do movimento, que poderá ser local, regional ou nacional, segundo a Lei n.º 35/98, de 18 de julho, artigo 7.º, n.º 3. Em suma, dos dois requisitos só estaria preenchido o da territorialidade, o da especialidade não se verificava, conforme decidiu o Tribunal, e bem, no nosso entendimento.
A ação popular deve incidir sobre algum interesse difuso, constitucionalmente protegido, foi por isso invocado pelos atores da ação o argumento de que estariam em causa na deliberação da Assembleia de Freguesia bens de domínio público das autarquias locais. Estes bens estão tipificados no artigo 84.º CRP, sendo esta enumeração taxativa, por esta razão o tribunal não acolheu este argumento.

IV. Conclusão
Do exposto conseguem-se agora retirar algumas observações quanto ao objecto do comentário. Em suma, o tribunal labutou uma boa decisão. Identificando a falta de legitimidade ativa do recorrente, demonstrou uma leitura correcta do enquadramento da situação fáctica. Concluindo pela confirmação da decisão recorrida que impediu a impugnação do ato administrativo devido à inexistência de fundamento jurídico que justifique a extensão da legitimidade à situação analisada, esteve novamente bem, dado que, permitiu discorrer várias excepções à regra da legitimidade ativa do artigo 9.º, n.º 1, não obstante nenhuma delas estar preenchida pelos dados do caso. 
Apesar de numa primeira leitura dos factos parecer intuitivo que um movimento que vise a participação na sociedade civil possa legitimamente interpor uma ação popular, depois de uma análise mais profunda e verificadas as bases legais, a perspetiva sobre a decisão, que se afigurava, de uma forma geral, um pouco injusta, muda e concordamos com a opção feita pelo tribunal, que é conforme aos trâmites legais. Note-se que a Lei de Ação popular é bastante estrita e clara nos casos em que permite a extensão da legitimidade do artigo 9.º n.º1 CPTA, não tendo legitimidade para impugnar atos administrativos qualquer parte que aparentemente defenda uma causa justa. 

Notas de fim de página:
[1] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa - Lições, Almedina,  2014, p. 187;
[2]  Ibidem, p.269;
[3] Ibidem, p. 269;
 [4] ANDRADE, José Robin, A acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra Editora, 1967, p. 7;
[5] Ibidem, p.3;
[6]  Doravante, “CRP”;
[7] Leia-se “ação” não num sentido técnico contraposto ao de recurso, nem no sentido de ação judicial, que neste caso é uma ação especial de impugnação.

Bibliografia:
  • ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, 3ª edição, Coimbra, 2017.
  • SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, Almedina, 2009.
  •  OTERO, Paulo, “A ação popular: configuração e valor no atual Direito português”, revista da ordem dos advogados, nº 59 vol. III, Lisboa, 1999.
  •  COIMBRA, José Duarte, “A «legitimidade» do Interesse na Legitimidade Ativa de Particulares para impugnação de atos administrativos, Trabalho de Oral de Melhoria, Contencioso Administrativo e Tributário, 2012/2013, in www.icjp.pt.
  • ANDRADE, José Robin, A acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra Editora, 1967.
  •  ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa - Lições, Almedina,  2014.
  • Acórdão analisado disponível em:: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/950940472DBDDE158025820B003A675E (consultado em 9/11/2019)


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