Sunday, 17 November 2019

Comentário ao acórdão 213/05.9BEFUN (13294/16) de 14 de junho de 2018

Acórdão Tribunal Central Administrativo Sul 
Processo 213/05.9BEFUN (13294/16) de 14 de junho de 2018 

 Estamos perante um recurso jurisdicional do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que no âmbito da ação popular sob a forma de ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo, instaurada pelo Autor contra o Município e os Contra interessados, julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa do Autor, por não ser autor popular e absolveu a Entidade Demandada e os Contra interessados da instância.  A sentença deste Tribunal declarou que o Autor não tinha concretizado ou especificado os interesses da comunidade que pretendia acautelar através da ação apresentada.  
De forma a justificar a sua legitimidade ativa como Autor Popular, o Autor alegou ser um cidadão nacional no gozo dos seus direitos civis e políticos, mencionou a sua residência habitual e afirmou que, com a ação em causa, visava fazer cessar e perseguir judicialmente as infrações a interesses difusos praticados pela Entidade Demandada através dos atos impugnados. Extrai-se da alegação do Autor a invocação da defesa da tutela da legalidade urbanística, decorrentes da edificação de construção em violação da legislação aplicável. Para sustentar o recurso, o Autor alega a violação dos artigos 52º número 3 da CRP, o artigo 1º, número 2 e o artigo 13º da Lei da Ação Popular (Lei 83/95, de 31 de agosto) e o artigo 9º número 2 do CPTA. 
O Tribunal Central Administrativo Sul decidiu pela improcedência do recurso, mantendo os fundamentos da sentença recorrida: o Autor apenas alega o interesse da defesa da legalidade urbanística, assente na violação das normas legais e regulamentares, por edificação de construção que alegadamente ofende as normas aplicáveis ao loteamento urbano e demais vinculações aplicáveis, não sendo permitido fundar a existência de um direito difuso a tutelar através da ação popular. Como nada foi dito acerca de que modo a alegada violação do interesse urbanístico se projeta nos demais cidadãos ou o modo como a coletividade é afetada pela ilegalidade urbanística, não se mostra sustentada a qualidade de Autor popular.  
Após uma síntese do acórdão e respetivos fundamentos na qual se baseou a sentença, iremos explorar a figura da ação popular, presente no artigo 9º número 2 do CPTA.  
Ora, a ação popular encontra-se prevista no artigo 9º número 2 do CPTA, surgindo no âmbito dos critérios gerais de atribuição de legitimidade ativa. Trata-se de um direito constitucionalmente protegido, pelo artigo 52º número 3 da CRP: «É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei (…)». A figura da ação popular é, também, regulada pela Lei 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de participação procedimental e de ação popular.  
A figura da ação popular surgiu face à expansão da legitimidade ativa no contencioso administrativo, vindo conferir legitimidade ativa para a propositura de ações a quem não seja titular das posições jurídicas substantivas previstas no artigo 9º número 2 e, também, no artigo 55º do CPTA.  
Relativamente a esta matéria, o Professor Mário de Aroso de Almeida, refere que o CPTA configura a ação popular em duas modalidades distintas, embora ambas correspondam a ações propostas por cidadãos, individualmente ou em grupo, no gozo dos seus direitos civis e políticos, em defesa de valores que interessam ao conjunto da comunidade, sem terem necessariamente de respeitar individualmente aos autores.  
A primeira modalidade apresenta-se no artigo 9º número 2, correspondendo ao universo de ações  que podem ser intentadas em defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, entre outros, sendo assim concretizado o direito de ação popular que a constituição consagra como um direito, liberdade e garantia de participação politica, presente no artigo 52º número 3. A segunda modalidade, por sua vez, corresponde à ação popular de impugnação de atos administrativos praticados por órgãos autárquicos, que qualquer cidadão recenseado na respetiva localidade pode intentar, nos termos do artigo 55º número 2.  
De acordo com este Professor, esta legitimidade para a propositura de ações junto dos tribunais administrativos tem na sua base o facto de os processos administrativos se dirigirem a fiscalizar e a respeitar a legalidade administrativa, sendo, tal, considerado um interesse público.  
Analisando o preceito constitucional acima mencionado, Jorge Miranda e Rui Medeiros, dizem–nos que o direito de ação popular é um verdadeiro direito de ação judicial com as inerentes características. Nos processos de ação popular, o autor representa, por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos e interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão, presente no artigo 14º da Lei da Ação Popular. 
Como o Professor Vasco Pereira da Silva realça, utiliza-se o artigo 9º número 2 para defesa da legalidade e do interesse público e, portanto, não pode haver interesse pessoal na demanda. Não havendo posição substantiva de vantagem, pode-se recorrer à ação popular, pois está em causa uma tutela da legalidade objetiva. Caso estivéssemos perante uma tutela da legalidade subjetiva, aplicar-se-ia o artigo 9º número 1 do CPTA.  
O acórdão em análise considera que o objeto da ação popular é a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.  
Recorrendo à matéria urbanística para que os conceitos sejam elucidados, uti singuli retrata uma participação dos particulares para defesa de interesses ou direitos subjetivos (o particular pretende prosseguir um interesse subjetivo próprio); uti cives, por sua vez, refere-se à participação cívica, o particular, de forma desinteressada, contribui para a prossecução do interesse público, procurando assegurar uma melhor prossecução do interesse público.  

Aqui chegados, consideramos que a figura da ação popular poderia, sim, ter sido utilizada neste processo. Aliás, concordamos com o voto de vencido que consta do acórdão, por parte da Juíza Helena Canelas. Tanto pela consideração de que a legalidade urbanística é um direito constitucionalmente protegido e de que a todos os cidadãos diz respeito, como, também, pelo facto de, neste caso em concreto, por o Autor não ser morador do Município em questão (e não o poderia ser para intentar a ação na qualidade de autor popular) não decorreria nenhuma vantagem subjetiva da propositura desta ação. Para mais, não será necessário concretizar os interesses difusos lesados na comunidade, pois, ao ser uma tutela da legalidade objetiva, concedida pelo legislador, uma via de interpretação possível da letra da lei seria a de que apenas se bastava, para se recorrer à figura da ação popular, apresentar a violação, o não cumprimento, da legalidade urbanística. Se as normas urbanísticas existem, têm de ser cumpridas. Cabe ao contencioso administrativo fiscalizar a legalidade administrativa, logo, o Autor poderia recorrer a esta figura, pois é um interesse público, que a todos diz respeito; o ordenamento urbano e a legalidade urbanística serem cumpridos e executados da maneira mais harmoniosa possível é claramente uma vantagem global. 

Apesar do acórdão em causa considerar que não basta a invocação da defesa do direito constitucionalmente protegido para que se encontrem preenchidos os pressupostos legais de exercício da ação popular, alegando ainda que dessa forma, toda e qualquer ação de defesa da legalidade urbanística equivaleria ao exercício do direito de ação popular e que tal não corresponde ao regime legal delineado, é nossa opinião que tal não necessita de ser assim. Sendo um interesse que está constitucionalmente previsto como direito, liberdade e garantia, a sua proteção, a sua fiscalização e o seu respeito relaciona-se com todos os cidadãos, e o seu desrespeito a todos prejudica. Está em causa, por parte do Autor, uma clara prossecução do interesse público, que carece de tutela por parte do contencioso administrativo. 

Bibliografia utilizada:
- Mário de Aroso de Almeida, Manual de Procedimento Administrativo 
- Vasco Pereira da Silva, Contencioso Administrativo no divã da psicanálise 
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, parte I
- João Miranda, A função pública urbanística e o seu exercício por particulares 

Maria Flamino Cabeça, aluna nº27898 

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