Sunday, 17 November 2019

Comentário ao Acórdão de processo nº049/19.0BALSB de 11-09-2019 do STA sobre Tutela Cautelar


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Contencioso Administrativo e Tributário
Ano Letivo 2019/2020


Comentário ao Acórdão de processo nº049/19.0BALSB
         de 11-09-2019 do STA sobre Tutela Cautelar


No acórdão que cumpre analisar é abordada uma questão relativa à tutela cautelar e seus requisitos. Antes de expor a matéria em causa e proceder ao respetivo comentário, deve primeiro introduzir-se a decisão em apreço. Prende-se o caso, portanto, com a instauração duma providência cautelar no STA contra o Conselho Superior do Ministério Público por parte duma magistrada do Ministério Público, a propósito duma pena disciplinar de 120 dias de suspensão de exercício de funções. Avança a magistrada que a decisão punitiva padece de manifestas violações de lei, nomeadamente, do seu direito de defesa, do princípio da presunção de inocência, da prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar, do direito de audiência e de erro nos pressupostos, ocorrendo-lhe prejuízos de difícil reparação com a execução da decisão e existindo maior prejuízo pessoal do que prejuízo para o interesse público, de acordo com os artigos 114º e 120º do CPTA (tais prejuízos consistiam no facto de a requerente cautelar não dispor de outra fonte de rendimento para além do vencimento que auferia como magistrada do Ministério Público, sendo exclusivamente com esse vencimento que assegurava o seu sustento e o da sua filha menor, que com a mesma vive após o divórcio dos pais). O CSMP aceitou parte dos factos alegados pela requerente cautelar e impugnou outros por desconhecimento, impugnando, sobretudo, as «consequências jurídicas» que a requerente avançava. Posto isto, avaliou o tribunal os requisitos necessários para que a providência cautelar fosse deferida.
 A nível do tema principal pode avançar-se que, no processo cautelar, o autor num processo declarativo, já intentado ou a intentar, pede ao tribunal a adoção de uma ou mais providências destinadas a impedir que, durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou pelo menos em parte, a utilidade da decisão que se pretende obter naquele processo, como exposto no art.112º/1 CPTA. Trata-se de um processo sem autonomia, funcionando como preliminar ou incidente do processo declarativo[1].
            Esta tutela urgente tem como características base: a instrumentalidade (só podendo ser desencadeada por quem tenha legitimidade para intentar um processo principal, de acordo com o art.113º/1), a provisoriedade (podendo o Tribunal revogar, substituir ou alterar a decisão de adotar ou recusar a providência cautelar na pendência do processo principal, como avançado pelo art.124º; Ainda assim, não pode ocorrer uma antecipação, a título provisório ou definitivo, por parte da tutela cautelar, da produção do efeito que a decisão a proferir no processo principal pode determinar a título definitivo) e a sumariedade (tentam acautelar-se, em tempo útil, as ocorrências que possam comprometer a utilidade do processo principal através de apreciações pouco aprofundadas do tribunal. Ainda que baseadas num juízo sumário sobre os factos concretos, evita-se antecipar apreciações definitivas que só devem ter lugar no processo principal).
            De tal forma, após uma breve abordagem ao que trata a Cautela Tutelar, deve esclarecer-se as diferentes espécies de Providências Cautelares que existem. No art.112º do CPTA existe uma cláusula aberta que dá cumprimento ao art.268º/4 da CRP, sendo possível obter providências cautelares de conteúdo diverso, em função das necessidades de cada caso. Existe, portanto, uma formulação aberta e não tipificada. Para o prof. Vasco Pereira da Silva o legislador adotou uma lógica simples, ou seja, adotando uma cláusula geral e depois defendendo alguns exemplos em concreto que a doutrina já tinha defendido. A única exceção consiste no pedido condenatório na tutela cautelar (alínea i). Sobre tal inovação, era esta alvo de críticas do prof. Diogo Freitas do Amaral. Por outro lado, o prof. Vasco Pereira da Silva releva a importância da última parte do artigo, nomeadamente, a necessidade de haver fundado receio. Assim, não precisa o requerente de esperar que haja aplicação do ato para reagir contenciosamente, bastando existir o referido fundado receio.
Há, portanto, em elenco exemplificativo de Providências Cautelares típicas no art.112º do CPTA e, atualmente, apesar de as Tutelas Antecipatória e Conservatória serem funcionalmente classificadas de forma diferente, têm um regime unitário: A tutela antecipatória aborda as situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas (nestes casos, a satisfação do interesse do titular depende da prestação de outrem, pelo que o primeiro pretende obter a prestação necessária à satisfação do seu interesse) ou situações em que o interessado pretende obter uma prestação que antecipa a utilidade que ele pretende obter com a procedência do processo declarativo; A Tutela Conservatória, por sua vez, visa as situações jurídicas finais, estáticas ou opositivas (trata de casos onde a satisfação do interesse do titular não depende de prestações de outrem, pelo que apenas se pretende que os demais se abstenham da adição de condutas que ponham em causa a situação em que está investido) ou situações em que o interessado pretende manter ou conservar um direito em perigo, evitando que seja prejudicado por medidas que venham a ser adotadas.
É indispensável possuir-se Legitimidade para instaurar uma providência cautelar, de acordo com o art.112º/1, pertencendo esta aos particulares e a todos os que recorram à justiça administrativa, tendo-se em conta os interesses que o requerente visa assegurar (art.120º), tanto em momento anterior como em momento após a propositura da ação principal, como exposto no art.114º/1. Se a ação principal estiver sujeita a prazo, após o mesmo, já não pode ser intentado um processo cautelar (existindo rejeição liminar segundo o art.116º/2/f). Existe, ainda, a possibilidade de instaurar uma tutela cautelar de segundo grau, ou seja, um decretamento provisório da providência nos termos do art.131º CPTA (regime flexibilizado pela revisão de 2015[2]), bastando a existência de uma situação de especial urgência para o tribunal poder proceder ao decretamento oficioso, mesmo sem o pedido do particular, quando essa é a única solução apta a assegurar a tutela jurisdicional efetiva do requerente, num domínio particularmente sensível, em que pode existir o risco da lesão iminente e irreversível de direitos fundamentais.
A forma do processo cautelar encontra-se exposto nos art.114º a 119º CPTA.
            Por último, enquadra-se, por fim, a matéria de maior relevância para o processo cautelar: os requisitos necessários para a emissão das Providências Cautelares. Estes critérios foram homogeneizados com a revisão de 2015, consistindo em:
- Periculum in Mora – exposto no art.120º/1, 1ªparte do CPTA: além das situações de existência de risco de produção de prejuízos de difícil reparação, também se concede providências cautelares quando exista o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado, rejeitando-se os critérios fundados na suscetibilidade da avaliação pecuniária dos danos. A providência torna-se necessária para evitar o risco da infrutuosidade da sentença a proferir no processo principal, do seu efeito útil: se não for decretada, os factos que inspiram o fundado receito tornam-se factos consumados, devendo ser concedida mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade, se tornará impossível pela mora do processo. Tenta reduzir-se, com este instrumento, o risco do retardamento da tutela, que deverá ser assegurada pela sentença do processo principal[3]
- Aparência de Bom Direito (Fumus boni iuris) – presente no art.120º/1/2ª parte do CPTA: o Juiz deve avaliar o grau de probabilidade de êxito do requerente no processo declarativo, ou seja, efetuar uma avaliação dentro dos limites próprios da tutela cautelar, não comprometendo nem antecipando o juízo da tutela principal.
A possibilidade de conceder uma providência cautelar, até à entrada em vigor do CPTA, nunca tinha estado dependente da formulação de qualquer juízo sobre o bem fundado da pretensão impugnatória do requerente. Segundo o TCA Sul, “… o "fumus boni iuris" traduz-se na aparência do bom direito face à probabilidade de procedência da pretensão a deduzir na ação principal, o que é aferido através de um juízo meramente perfunctório.”
            - Critério da Ponderação de Interesses – consagrado no art.120º/2: mesmo existindo periculum in mora e fumus boni iuris, tem de se avaliar se se indicia que a posição do requerente é digna de proteção. O art.120º/2 tem uma cláusula de salvaguarda, sendo o critério adicional o da ponderação e justa comparação dos interesses em jogo. Concretiza-se, neste ponto, o princípio da proporcionalidade, ainda que comprimindo o princípio do dispositivo. Segundo o TCA SUL, no processo nº13489, as providências cautelares têm como características intrínsecas a utilidade, a instrumentalidade e a provisoriedade, de acordo com o artigo 112° e 113° do CPTA.
            Relativamente aos critérios de concessão das providências cautelares, o novo CPTA de 2015 pôs termo à dicotomia de critérios para as providências conservatórias e antecipatórias, para as quais se exigia o "fumus boni iuris" qualificado. Atualmente, os critérios de concessão são independentes da natureza da providência requerida. O legislador elegeu como critérios de decisão cumulativos das providências cautelares: primeiramente, o "periculum in mora" e, em segundo lugar, o "fumus boni iuris” (120º/1), ambos critérios positivos. Apenas após a verificação positiva destes dois critérios, se seguirá um juízo de prognose de ponderação de interesses (n°2) e um juízo de proporcionalidade, adequação e necessidade da medida requerida (n°3), a qual se deve limitar ao necessário para afastar a tensão dos interesses defendidos pelo requerente, podendo o juiz conceder medida diversa (critério negativo). A não observação de um dos dois primeiros critérios consiste, de imediato, em fundamento para o indeferimento da providência, tal como apenas se analisará o último requisito se os dois primeiros se encontrarem preenchidos. Assim, em suma, segundo o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.120º, infere-se que constituem condições de procedência das providências cautelares:

1) “Periculum in mora” - receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação;
2) “Fumus boni iuris” – ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente;
3) Ponderação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade.
A propósito do segundo requisito, cumpre destacar que a revisão do CPTA de 2015 modificou a sua relevância. Para o prof. Vieira de Andrade, antes de 2015, nas situações intermédias (grande maioria dos casos) em que há uma incerteza prima facie relativamente à existência da ilegalidade ou do direito do particular, a lei optava por uma graduação em função do tipo de providência requerida: a) se fosse provável que a pretensão principal viesse a ser julgada procedente nos termos da lei, podia ser decretada a providência; b) se a providência pedida fosse apenas uma providência conservatória, já não era preciso que se provasse ou que o juiz ficasse com a convicção da probabilidade de que a pretensão fosse procedente, bastando que não fosse manifesta a falta de fundamento da pretensão principal ou a existência de circunstâncias que obstassem ao seu conhecimento do mérito. Logo, bastava à lei um juízo negativo de não-improbabilidade (non fumus malus) da procedência da ação principal para fundar a concessão de uma providência conservatória, contudo, obrigava a que se pudesse formular um juízo positivo de probabilidade para justificar a concessão de uma providência antecipatória. A eliminação desta diferenciação, em 2015, significa objetivamente uma maior exigência de prova para a obtenção de medidas cautelares conservatórias e, portanto, um maior relevo negativo da juridicidade material.
Com efeito, a simplicidade, provisoriedade e sumariedade, face à urgência que caracteriza este meio cautelar, não se coadunam com a ideia de que os vícios devam ser apreciados exaustivamente, até porque tal apreciação envolveria, no presente caso, uma análise cuidada do processo disciplinar, além de toda a prova recolhida e da tramitação desse processo, de forma a poder aferir-se dos invocados vícios do processo disciplinar e do ato. Então, caracterizando-se o processo cautelar pela provisoriedade e urgência, o requisito relativo à aparência do bom direito implica apenas um juízo sumário e perfunctório de probabilidade de procedência da ação principal. 
Assim, a lógica das providências cautelares no âmbito administrativo é semelhante à do Direito Processual Civil, mas no Direito Contencioso Administrativo e Tributário exige-se uma probabilidade de a ação principal ser considerada como procedente.
            Para concluir a presente dissertação, no caso em análise, decretou o Tribunal que o primeiro requisito “periculum in mora” se encontrava preenchido, visto existir um fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação, ou seja, existia um fundado receio de que, de facto, a magistrada deixaria de auferir o seu rendimento mensal, consumando-se o facto, e que, por isso, se gerariam prejuízos de difícil reparação no seio familiar da requerente.
            O tribunal analisou então o segundo critério, fumus boni iuris, avançando, desta feita, e verificando cada argumento e contra-argumento das partes envolvidas, que não era possível extrair, a partir duma análise perfunctória, a probabilidade de procedência da decisão, por os argumentos se encontrarem muito equilibrados. A abordagem das ilegalidades não poderia substituir ou afetar a liberdade de julgamento em sede de processo principal, apenas se exigindo um juízo de probabilidade sobre o seu julgamento de procedência (artigo 120º, nº1, «in fine», do CPTA). No presente caso, da ponderação das sínteses de questões e razões jurídicas, não resultava legitimado juízo positivo de probabilidade, uma vez que, “sem desprimor das razões invocadas pela requerente cautelar, certo é que as contrapostas pelo CSMP se mostram capazes de as neutralizar”. Concluiu, portanto, o tribunal que não se verificava, no presente caso, o requisito indispensável do fumus boni iuris impondo-se, logo, o indeferimento da pretensão cautelar.

            Apraz-me acrescentar que neste acórdão existe uma plena e legal aplicação da lei, que demonstra a real e funcional aplicação das matérias em causa e a ordem pela qual os critérios devem ser apreciados para que possa existir uma efetiva tutela dos interesses das partes envolvidas. Concordo com a apreciação do tribunal, embora, numa primeira análise tivesse consentido no preenchimento do critério “fumus boni iuris”, contrariamente à opinião apresentada pelo STA. Ainda assim, avaliando os argumentos na sua plenitude, foi-me então obrigatório enveredar por igual pensamento, visto não se extrair, de facto, um juízo de probabilidade do julgamento. Estando a argumentação tão a par, seria difícil prever como a decisão decorreria no plano principal. Logo, encontra-se legitimada a decisão do tribunal, e, sendo os critérios positivos, além de cumulativos, estritamente necessários para que se avalie o último requisito, não se encontrando este segundo preenchido, então torna-se evidente a decisão de improcedência da providência. Ainda que a tutela deste caso concreto se me apresentasse como necessária e urgente, não se encontrando preenchidos os requisitos legais, afigura-se o caso como impossibilitado de prosseguir. Assim, em suma, concordo com a decisão do tribunal de improcedência da providência cautelar requerida pela magistrada do Ministério Público.



Trabalho realizado por:
Carolina Matroca
Nº 56795
Turma B – Subturma 10


[1] Antes da reforma de 2004 só existia a possibilidade de suspensão da eficácia, o que se tornava demasiado restrito e raramente deferido, violando normas da UE que tinham condenado os diversos países por ausência da tutela cautelar.
[2] A Revisão de 2015 previu também a possibilidade de dois incidentes autónomos no processo cautelar: o incidente de decretamento provisório, do art.131º/3 e o incidente de levantamento ou alteração da providência provisoriamente decretada, do art.131º/6. A revisão mencionada manteve ainda a proibição de executar o ato administrativo (art.128º), sendo que, durante este período, a entidade não pode iniciar ou prosseguir a execução do ato e aqueles que eventualmente pratique podem ser declarados ineficazes pelo tribunal. Tem a intenção de evitar o periculum in mora do processo cautelar a par do art.131º, operando o regime extrajudicialmente, sem estar dependente da decisão do juiz. Para o prof. Vasco Pereira da Silva não faz qualquer sentido no quadro de um processo administrativo, sendo que só quem poderia suspender seria o juiz, não a Administração, equivalendo a uma pessoa poder ser presa preventivamente consoante a sua vontade. Em Portugal, na suspensão da eficácia há um pré-processo e só depois é que se discute os interesses das partes.
[3] A jurisprudência tem sido excessivamente exigente no que se refere à concretização dos prejuízos que o requerente poderá sofrer. Segundo o Tribunal de Contencioso Administrativo Sul, “o "periculum in mora" traduz-se na perigosidade, isto é, no prejuízo decorrente da morosidade na decisão da ação principal para a esfera jurídica do interessado, mediante a constituição de uma situação de lacto consumado ou a verificação de prejuízos de difícil reparação.

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