Sunday, 17 November 2019

Comentário ao Acórdão do TCAS de 14-06-2018, Proc: 213/05.9BEFUN


O presente acórdão foi proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em resposta a um recurso jurisdicional do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal de 01/10/2015, interposto pelo Autor que, no âmbito de uma acção popular sob a forma de acção administrativa especial de impugnação de ato administrativo, alegava vícios de invalidade que violavam normativos regulamentares e legais de natureza urbanística e ambiental.

Enquadramento geral:
O problema em causa no presente acórdão é relativo à interpretação dos art.52ºnº3 CRP, art1º e 13º da Lei de Ação Popular e art9º/2º CPTA.
O recorrente alegou, na petição inicial, um rol de vícios de invalidade contra os atos impugnados que dizem respeito ao procedimento de licenciamento de uma moradia unifamiliar. Este, pretende com a acção popular, fazer cessar e perseguir judicialmente as infracções a interesses difusos, praticadas pela entidade demandada.
O recorrente considera que edificar obras e conceder licenças sem que o projecto estivesse instruído com os elementos necessários violam o regime jurídico do licenciamento de obras particulares (RLMOP), pondo em causa a defesa dos bens municipais. 
O que estaria aqui em causa seria, assim, uma prossecução do interesse publico que não caberia no âmbito de uma acção popular por não afetar o Autor, pessoal e directamente ( por este não residir no Município e não retirar nenhuma vantagem concreta com a propositura de uma acção popular).

Contudo, o recorrente não alega, para todos os efeitos, quais os interesses difusos violados e em que medida ocorre violação dos interesses protegidos pela lei que lhe permita a intervenção de uma acção popular pelo que não se reconhece legitimidade ativa ao autor para agir em juízo como autor popular nos termos do rt1º ETAF e art9ºnº2 CPTA, e art1ºnº1 e 2, 2ºnº1, 12ºnº1 da Lei 82/95 de 31/08.


Importa proceder a um breve enquadramento legal do problema em causa.
A legitimidade processual não se reporta à pessoa do autor ou do demandado mas sim, à concreta relação que se estabelece entre as partes e uma concreta ação que tem que ter um objeto especifico, determinado.
No CPTA encontramos que a titularidade do autor se afere por referencia às alegações produzidas por este, assumindo um pressuposto processual.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, a legitimidade afere-se em relação ao Direito, isto é, afere-se pela titularidade de posições jurídicas substanivas, havendo um reconhecimento de que a legitimidade serva para fazer a ponte entre a justiça administrativa e o direito material.
No âmbito da legitimidade ativa, art.9º, o regime do CPTA não se esgota no já citado artigo relativamente à Legitimidade Ativa, temos que atender igualmente ao disposto nos arts.55º, 57º, 68º, 73º, 77º-A.
Quanto à acção popular, para se ser titular deste direito, à luz do art.2º da Lei nº83/95, de 31/08, tem que se ser “cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos (…) independentemente de terem ou não interesse direto na demanda “, direitos que a CRP reconhece como um direito fundamental de participação politica, art.52 nº3., que podem ser, entre outros, a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais.

No art.9º nº2 há um fenómeno de extensão da legitimidade, que tem como objetivo a extensão da legitimidade processual a quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal, tendo em vista o exercício do direito de acção popular para a defesa dos valores e bens constitucionalmente protegidos, como decorre do disposto nos arts.52ºnº3 CRP e art1ºnº2 da Lei 83/95 e art9ºnº2 CPTA.
Para o Professor Mário Aroso de Almeida, este elenco tem que ser encarado taxativamente sob pena de todos os interessados começarem a invocar artigos da CRP com vista a ter acesso a esta jurisdição. Resulta do disposto do art.52º/3 CRP que a lei tem que dizer os casos e termos em que prevê, entendendo o Professor Vasco Pereira da Silva que não é necessário concretizarem-se, porque estamos a falar de direitos que podem ser invocados, com vista a serem tutelados.
O exercício destes poderes, previsto no art9ºnº2 , processa-se “nos termos previstos na lei”- remissão com duplo alcance para a lei nº83/95, 31/08 que densifica o critério de legitimidade que apenas se encontra genericamente formulado no CPTA.
  •   Quanto ao plano da legitimidade, a remissão confere legitimidade ativa para defesa de interesses difusos a todos os “cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos” (bem como às associações, fundações e autarquias locais), desde que preencham os requisitos do art3º da Leinº83/95, ou seja, é necessário haver um elemento de conexão de uma situação de apropriação individual do interesse difuso lesado.
  • Quanto ao plano do regime processual próprio, a lei nº83/95 estabelece que existem um conjunto de soluções especiais relativamente à admissão da petição inicial (art13), da representação processual (art14º), citação dos titulares dos interesses em causa (art15º), da instrução (art.17º), da eficácia dos recursos jurisdicionais (art.18º) e dos efeitos do caso julgado (art19º), e assim, qualquer pessoa ou entidade legitimada pelo art-9ºnº2 pode dirigir-se aos tribunais administrativos para deduzir pretensões de qualquer das formas de processo, tendo sempre em conta que os poderes de propositura e intervenção processual têm que ser exercidos, observando para além das regras gerais, as especiais que resultam dos arts.2º e 3º e 13º da Lei 83/95. Estamos perante um regime processual proprio porém, a ação popular não é, em si mesma, uma forma de processo porque tem uma tramitação própria e reveste-se de uma das formas de processo para o CAT.

Apesar da Lei da Ação Popular e do CPTA disporem que, independentemente de ter ou não interesse direto na demanda, é titular do direito de acção popular quem tenha por objecto a  defesa dos interesses aí previstos, porém, não basta uma mera invocação desse direito (no caso, mais concretamente, o direito do urbanismo) para se encontrarem preenchidos os pressupostos legais do direito de acção popular se não, toda e qualquer acção de defesa da legalidade urbanística equivaleria ao exercício deste direito.
Para se ter legitimidade para se impugnar atos administrativos tem que se ser titular de um interesse direto e pessoal que tenha sido lesado por esse ato, art.55º/1/a).

O termo "independentemente de ter interesse pessoal" gera alguma confusão, porque, se o interessado tem interesse pessoal, também tem interesse de usar a ação jurídica subjetiva. Os Professores Vasco Pereira da Silva e Sérvulo Correia propõem uma interpretação corretiva deste termo, uma vez que o legislador não fez uma boa transposição do Direito Brasileiro: o critério para distinguir o nº1 do nº2 do art.9º é o interesse pessoal. Assim, estes dois Professores entendem que, no âmbito do nº2 não pode haver interesse na demanda se não, não estaríamos perante uma ação popular mas sim perante uma ação subjetiva, e o termo "independentemente" tem de ser entendido no sentido negativo, ou seja, no sentido de que não pode ter interesse. Se existir uma posição substantiva de vantagem e atuação nesse sentido, estaríamos perante uma ação subjetiva. Contrariamente, se não existir uma posição substantiva de vantagem, então estamos perante uma verdadeira ação popular.

O preenchimento do art.9ºnº1 não exige a verificação de uma efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor mas basta-se somente com a alegação dessa titularidade, o que obriga o tribunal a julgar imprudente a acção de impugnação, como aconteceu no caso, se verificar se o interessado não é titular da situação jurídica alegada.
 Ou seja, o ato tem que estar a provocar consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, no momento em que é impugnado, pelo que a anulação desse ato lhe traz uma vantagem direta ou imediata. Estamos perante o carácter direto e pessoal do interesse.
Quanto ao carater pessoal (que diz respeito ao pressuposto processual da legitimidade), o autor invoca uma utilidade pessoal alegando ser parte legítima da acção uma vez que diz ser titular do interesse que persegue.
Quanto ao carater direto, tem que se verificar um interesse actual e efectivo. Quando se pede a anulação do ato que é impugnado tem que haver uma situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório (este requisito não tem que ver com a legitimidade processual mas sim com a questão de saber se o alegado titular do interesse tem efectiva necessidade de tutela judiciaria, se te interesse processual ou interesse em agir.)

O Autor, deveria ter demonstrado em que medida a sua pretensão tem efectivamente fundamento, devendo ter explicitado em que medida a alegada violação do interesse urbanístico se projecta nos demais cidadãos, (por exemplo, demonstrando como é que a qualidade de vida dos residentes é afetada, seja pela ameaça de ruína da construção, pelos ruídos, resíduos…).

Conclusão:
Conclui-se no acórdão que o autor não é directamente afectado pela prática dos atos ilegais, não se mostrando caracterizada a defesa dos interesses de toda a comunidade pelos motivos acima enunciados, entendendo o Ministério Público, chamado a pronunciar-se sobre o caso nos termos so art.146º, que entendeu pela improcedência do recurso devido ao Autor não explicar em que medida as alegadas ilegalidades tiveram impacto na defesa dos interesses difusos que respeitam toda a comunidade. E assim, no mesmo sentido se pronunciou o TCAS, negando provimento ao recurso.
O autor deveria ter alegado um interesse direto e pessoal que não se tinha que basear numa ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, bastava-se apenas demonstrar que o ato estaria a provocar, no momento em que foi impugnado, consequenciais desfavoráveis na esfera jurídica do autor e que com a anulção ou nulidade do ato, este obteria uma vantagem direta (jurídica ou económica).

Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, Anulaçãode atos administrativos e relações júridicas emeregntes. Almedia- Coimbra, fevereiro 2002.

ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo(5ª Edição), Almedina, 2018

CORREIA, Sérvulo Direito do Contencioso Administrativo I, Lex, 2005

SILVA, Vasco Pereira ,O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2016
SILVA, Vasco Pereira ,Direito Constitucional e Administrativo Sem Fronteiras, Almedina, 2019


 Mariana Ferreira, nº28059

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