Wednesday, 13 November 2019

Comentário ao Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 13 de dezembro de 2018, Processo n.º 036/18 - Adriana Lima

  O presente acórdão[1] suscita um problema relativo à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de questões relativas a contratos de trabalho em que o empregador, neste caso, uma Junta de Freguesia, é um ente público. No caso em análise, o autor sofreu um acidente enquanto trabalhava para a Junta de Freguesia de Avelar, pelo que se questiona qual o tribunal competente para dirimir o litígio, tendo em conta a qualificação do contrato como administrativo ou laboral. O âmbito da jurisdição administrativa, bem como a competência dos tribunais administrativos, de acordo com o art.º 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),  é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, pelo que compete ao juiz conhecer oficiosamente a competência de um Tribunal, na medida em que “a única questão para que um Tribunal incompetente é competente é para apreciar a sua incompetência”. [2] Como tal, o Tribunal do Trabalho de Leiria declarou-se incompetente em razão da matéria para resolver o litígio em causa, pois considerou o contrato celebrado entre o autor e a Junta de Freguesia de natureza administrativa. Por sua vez, também o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria se declarou incompetente “ratione materiae”, alegando, no entanto, que o contrato celebrado entre o autor e a Junta de Freguesia ré seria laboral.

 Ambos os tribunais negaram, por decisões transitadas, a competência própria, que atribuíram ao outro, para apreciar as repercussões indemnizatórias resultantes do sinistro sofrido pelo trabalhador, o que demonstra a existência de um conflito de jurisdição (negativo). Relativamente à resolução deste tipo de conflitos, o art.º 110.º/1 do Código de Processo Civil (CPC) dispõe que perante conflitos de jurisdição entre Tribunais Judiciais e Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF), os mesmos serão dirimidos pelo Tribunal dos Conflitos. Na opinião deste último, quanto às declarações de incompetência material do Tribunal de Trabalho e do TAF, “as soluções opostas perfilhadas pelos dois tribunais radicaram no modo diverso como eles qualificaram o «contrato de trabalho a termo certo» (…). Impressionado com a circunstância da entidade patronal ser, nesse contrato, uma Junta de Freguesia, o Tribunal do Trabalho viu aí um pacto regido pelo direito público. Mas o texto do contrato assinalava, «expressis verbis», que ele se regeria pelo Código do Trabalho; e nada vedava que uma pessoa coletiva de direito público celebrasse contratos do género, sujeitos ao direito laboral privado - pois essa possibilidade até estava prevista, «a contrario», no art. 4º, n.º 3, al. d) do ETAF (na redação vigente em 2013) e continua hoje em vigor (art. 4º, n.º 4, al. b), da versão atual do ETAF)”. Pelo exposto, o Tribunal dos Conflitos decidiu, resolvendo assim o conflito negativo de jurisdição, anular a declaração de incompetência material emitida pelo tribunal comum, sendo este o tribunal competente para o conhecimento da ação em causa.


 Ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal pertence a apreciação de todos os litígios que digam respeito a matérias jurídicas administrativas e fiscais, cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos Tribunais Judiciais, bem como aqueles que, apesar de não versarem sobre matérias administrativa ou fiscal, sejam expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição. Tal resulta da disposição constitucional do art 212.º/3 da CRP (previsto, expressamente, no plano infraconstitucional, nos termos do art.º 4.º/1/o) do ETAF); do art 144.º/1 da LOSJ; e do art 4.º do ETAF.
 O art.º 1.º do ETAF faz referência a “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, remetendo para o âmbito de jurisdição previsto no art.º 4.º do ETAF. Este último artigo, fornece, pela positiva, uma enumeração, não taxativa, dos litígios nela incluídos (n.º1 e n.º2 do art.º 4.º do ETAF) e, pela negativa, exclui expressamente dela outros litígios (n.º3 e n.º4 do art.º 4.º do ETAF). A alínea o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF, a qual adota, como critério residual de competência, o critério substancial estabelecido na Constituição[3], estabelece que a apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais pertencem ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, apelando, deste modo, a um critério material em que o litígio versa sobre uma relação jurídica administrativa. Importa, portanto, averiguar quando se deve entender que uma relação jurídica é administrativa.


 O conceito de “relação jurídica administrativa” determina a competência material do Tribunal, pelo que é essencial a determinação do mesmo. Como refere Vieira de Andrade, esta questão devia ser resolvida pelo legislador, na medida em que, na verdade, o art.º 4.º/1/o) do ETAF, ao definir a competência residual da jurisdição, limita-se a repetir a referência constitucional aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. Assim, é consensual que o conceito deve ser interpretado no sentido estrito e tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, particularmente, das relações de direito privado em que a Administração intervém. Daqui resulta que a determinação do domínio material da justiça administrativa continua a realizar-se através da distinção material entre direito privado e direito público. [4]

Outros autores, nomeadamente, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, se questionaram sobre o que é que define uma relação jurídica como administrativa: “quais são os fatores e critérios a que deve recorrer-se de modo a poder aplicar-se, em função disso, a cláusula material de jurisdição dos tribunais administrativos que se encontra consagrada no art.º 212º/3 da CRP? (…) São relações jurídico-administrativas: i) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas coletivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjetivas públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado; ii) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), atua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v. Acórdão do TC nº 746/96 de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A Justiça …, cit, p.55 e 56); iii) aquelas em que esse sujeito atua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137)”.”[5]

Por sua vez, na opinião de Mário Aroso de Almeida, uma relação jurídica é regulada por normas de Direito Administrativo, pelo que deve ser qualificada de “administrativa” quando “lhe sejam aplicáveis normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada”.[6]


 Na sequência do que já foi exposto, o Direito Administrativo é o ramo de Direito público que mais se aproxima do Direito privado e, consequentemente, aquele por cujas fronteiras passa a delimitação em relação ao Direito privado. É a circunstância de, caso se figure o Direito público e o Direito privado como territórios confinantes, pertencer ao Direito Administrativo, do lado do Direito público, a parcela territorial fronteiriça que elucida as dificuldades que, de modo tradicional, coloca a aplicação do critério material de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa.[7]

O processo evolutivo e progressivo de aproximação dos regimes laborais de direito privado e de emprego público apresenta-se, provavelmente, como uma das causas de existência de conflitos de jurisdição no domínio do direito privado e do direito público. Tal aproximação é uma consequência da tendência de “privatização” dos vínculos de serviço público, isto é, da relação jurídica de emprego público, por oposição à prévia “publicização” do direito laboral resultante da influência do Direito Administrativo na configuração de certos institutos laborais.[8] [9]

 A distinção um tanto ou quanto artificial traçada pelo legislador dificulta, deste modo, o encargo do juiz de conhecer oficiosamente a competência de um Tribunal para o conhecimento da ação em questão, pelo que julgo não ser totalmente censurável a decisão do Tribunal do Trabalho que, ao se deparar com a circunstância do empregador no contrato em causa ser um ente público, decidiu que este seria um pacto regido pelo direito público. Não obstante, no caso em apreço, “o texto do contrato assinalava, «expressis verbis», que ele se regeria pelo Código do Trabalhoe, como a própria lei dispõe, nada impede que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público (art.º 4.º/4/b) do ETAF), pelo que, naturalmente e adotando a posição do Tribunal dos Conflitos, o tribunal competente em razão da matéria seria o tribunal judicial, mais concretamente, o Tribunal do Trabalho de Leiria, pois conquanto o contrato vinculasse o sinistrado a uma Junta de Freguesia, o mesmo regia-se pelo Código do Trabalho e era de direito privado.  

 Atendendo à solução legal prevista para a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho e referida pelo Tribunal dos Conflitos, é de extrema importância a referência a dois preceitos legais, os quais devem ser sempre conjugados, nomeadamente o art.º 4.º/4/b do ETAF e o art.º 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (doravante, LGTFP).
O art.º 4.º/4/b) do ETAF apresenta uma dupla dimensão. Primeiramente, sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais a apreciação dos litígios emergentes de contratos individuais de trabalho na Administração Pública (a termo ou por tempo indeterminado – no caso em análise, o contrato é a termo certo) que não constituam vínculo de emprego público. Não se pretende restringir a cláusula geral da competência da jurisdição administrativa, mas apenas excluir da competência da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho que não constituam uma relação jurídica de emprego público (“vínculo de emprego público”), ainda que se esteja perante contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público”.[10] Na última parte do preceito, surge uma exceção, sujeitando-se à jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, a apreciação de litígios emergentes do Vínculo de Emprego Público que sejam celebrados ao abrigo da LGTFP (arts.º 6.º e 12.º da LGTFP).
Esta dualidade jurisdicional entre contratos configura-se indesejável e cria uma “esquizofrenia jurisdicional” no âmbito da contratação pública (mais concretamente, no contencioso laboral administrativo). A solução para esta ocorrência passa por uma transferência de todo o Direito Laboral Administrativo para a jurisdição administrativa e fiscal, o que inclui todas as relações de trabalho inerentes ao exercício da função administrativa, dando-se prevalência ao critério da função admnistrativa sobre o do regime jurídico. [11]
O art.º 12.º da LGTFP, norma de competência jurisdicional, vem reforçar a lógica apresentada no final do art.º 4.º/4/b) do ETAF, dispondo, expressamente, que “são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público”.

 Por fim, diferente da solução prevista para a delimitação do âmbito de jurisdição administrativa em matéria de contratos qualificados como laborais, em que o empregador é um ente público, outra solução é dada para a generalidade dos contratos da Administração Pública, nos termos do art.º 4.º/1/e) do ETAF, preceito legal que parece apresentar critérios mais ampliativos de delimitação do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, do que o critério material do “vínculo de direito privado” e “vínculo de emprego público” que se encontra disposto no art.º 4.º/4/b) do ETAF. Assim, o art.º 4.º/1/e) do ETAF confere aos tribunais administrativos e fiscais competência para apreciar litígios que digam respeito a questões de “validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública[12], por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes[13].  


Bibliografia:
- Vieira de Andrade, José Carlos - A Justiça Administrativa, Lições, 15.ª Edição. Coimbra, Almedina, 2016;
- Aroso de Almeida, Mário - Manual de Processo Administrativo. 2.ª Edição. Coimbra, Almedina, 2016;
- Pereira da Silva, Vasco. O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª Edição. Coimbra, 2009;
- Martins, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto. Justiça Administrativa N.º 106, 2014.
- Almeida, Luís Filipe Mota (2016) - Notas breves sobre o Âmbito da Jurisdição Administrativa e o Vínculo de Emprego Público. Vol. 3 N.º 3. Revista Eletrónica de Direito Público, 2016. Disponível em:
- Direito das Relações Laborais na Administração Pública. Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2018. Disponível em:
- Direito do Trabalho na Administração Pública I. Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2017. Disponível em:

Adriana Lima, N.º 28139
Subturma 10






[2] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 200.
[3] O dos litígios que tenham por objeto relações jurídicas administrativas.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.01.2015, Proc. n.º 375014/09.5YIPRT
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 173 e 174.
[8] Maria do Rosário Palma Ramalho, “Intersecção entre o Regime da Função Pública e o Regime Laboral”.
[9]O contrato de trabalho assume um papel cada vez mais relevante no seio da Administração Pública. Neste contexto, a tarefa do julgador não é fácil. Sobretudo se não olvidarmos que os quadros de referência do jurista do trabalho são, em regra, quadros privatísticos, os quais carecem de ser repensados e reelaborados quando nos confrontamos com uma relação laboral de natureza assumidamente administrativa”. Disponível em:

[12] Entende-se por “legislação sobre contratação pública”, o Código dos Contratos Públicos (CCP) e toda ou qualquer outra legislação especial que a tenha por objeto, bem como a legislação do direito europeu, nomeadamente as diretivas sobre a contratação pública.
[13] Art.º 2.º/1 e n.º2 do CPP.

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