O presente acórdão[1] suscita um problema
relativo à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de
questões relativas a contratos de trabalho em que o empregador, neste caso, uma
Junta de Freguesia, é um ente público. No caso em análise, o autor sofreu um acidente
enquanto trabalhava para a Junta de Freguesia de Avelar, pelo que se questiona
qual o tribunal competente para dirimir o litígio, tendo em conta a
qualificação do contrato como administrativo ou laboral. O âmbito da jurisdição
administrativa, bem como a competência dos tribunais administrativos, de acordo
com o art.º 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(CPTA), “é de ordem pública e o seu
conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, pelo que compete ao juiz
conhecer oficiosamente a competência de um Tribunal, na medida em que “a
única questão para que um Tribunal incompetente é competente é para apreciar a
sua incompetência”. [2] Como tal, o Tribunal do
Trabalho de Leiria declarou-se incompetente em razão da matéria para resolver o
litígio em causa, pois considerou o contrato celebrado entre o autor e a Junta
de Freguesia de natureza administrativa. Por sua vez, também o Tribunal
Administrativo e Fiscal de Leiria se declarou incompetente “ratione
materiae”, alegando, no entanto, que o contrato celebrado entre o autor e a
Junta de Freguesia ré seria laboral.
Ambos os tribunais negaram, por decisões
transitadas, a competência própria, que atribuíram ao outro, para apreciar as
repercussões indemnizatórias resultantes do sinistro sofrido pelo trabalhador,
o que demonstra a existência de um conflito de jurisdição (negativo). Relativamente
à resolução deste tipo de conflitos, o art.º 110.º/1 do Código de Processo Civil
(CPC) dispõe que perante conflitos de jurisdição entre Tribunais
Judiciais e Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF), os mesmos serão dirimidos
pelo Tribunal dos Conflitos. Na opinião deste último, quanto às declarações de
incompetência material do Tribunal de Trabalho e do TAF, “as soluções
opostas perfilhadas pelos dois tribunais radicaram no modo diverso como eles
qualificaram o «contrato de trabalho a termo certo» (…). Impressionado
com a circunstância da entidade patronal ser, nesse contrato, uma Junta de
Freguesia, o Tribunal do Trabalho viu aí um pacto regido pelo direito público.
Mas o texto do contrato assinalava, «expressis verbis», que ele se regeria
pelo Código do Trabalho; e nada vedava que uma pessoa coletiva de direito
público celebrasse contratos do género, sujeitos ao direito laboral privado
- pois essa possibilidade até estava prevista, «a contrario», no art. 4º, n.º 3,
al. d) do ETAF (na redação vigente em 2013) e continua hoje em vigor (art.
4º, n.º 4, al. b), da versão atual do ETAF)”. Pelo exposto, o Tribunal
dos Conflitos decidiu, resolvendo assim o conflito negativo de jurisdição, anular
a declaração de incompetência material emitida pelo tribunal comum, sendo este
o tribunal competente para o conhecimento da ação em causa.
Ao âmbito da
jurisdição administrativa e fiscal pertence a apreciação
de todos os litígios que digam respeito a matérias
jurídicas administrativas e fiscais, cuja apreciação não seja expressamente
atribuída, por norma especial, à competência dos Tribunais Judiciais, bem como
aqueles que, apesar de não versarem sobre matérias administrativa ou fiscal, sejam expressamente
atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição. Tal resulta da
disposição constitucional do art.º 212.º/3 da CRP (previsto, expressamente, no plano
infraconstitucional, nos termos do art.º 4.º/1/o) do ETAF); do art.º 144.º/1 da LOSJ; e do art.º 4.º
do ETAF.
O art.º 1.º do ETAF faz referência a “litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, remetendo
para o âmbito de jurisdição previsto no art.º 4.º do ETAF. Este último artigo, fornece, pela positiva, uma enumeração, não taxativa, dos
litígios nela incluídos (n.º1 e n.º2 do art.º 4.º do ETAF) e, pela negativa,
exclui expressamente dela outros litígios (n.º3 e n.º4 do art.º 4.º do ETAF). A
alínea o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF, a qual adota, como critério residual de
competência, o critério substancial estabelecido na Constituição[3], estabelece que a
apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e
fiscais pertencem ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, apelando,
deste modo, a um critério material em que o litígio versa sobre uma relação
jurídica administrativa. Importa,
portanto, averiguar quando se deve entender que uma relação jurídica é
administrativa.
O
conceito de “relação jurídica administrativa” determina a
competência material do Tribunal, pelo que é essencial a determinação do mesmo.
Como refere Vieira de Andrade, esta questão devia ser resolvida pelo
legislador, na medida em que, na verdade, o art.º 4.º/1/o) do ETAF, ao definir
a competência residual da jurisdição, limita-se a repetir a referência
constitucional aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. Assim,
é consensual que o conceito deve ser interpretado no sentido estrito e tradicional
de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, particularmente,
das relações de direito privado em que a Administração intervém. Daqui resulta
que a determinação do domínio material da justiça administrativa continua a
realizar-se através da distinção material entre direito privado e direito
público. [4]
Outros autores, nomeadamente, Mário
Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, se questionaram sobre o que
é que define uma relação jurídica como administrativa: “quais são os fatores
e critérios a que deve recorrer-se de modo a poder aplicar-se, em função disso,
a cláusula material de jurisdição dos tribunais administrativos que se encontra
consagrada no art.º 212º/3 da CRP? (…) São relações jurídico-administrativas:
i) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas coletivas
públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjetivas
públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios
claros da sua pertinência ao direito privado; ii) aquelas em que um dos
sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), atua no exercício de um
poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente
definido (v. Acórdão do TC nº 746/96 de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A
Justiça …, cit, p.55 e 56); iii) aquelas em que esse sujeito atua no
cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por
motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo,
2002, p. 137)”.”[5]
Por sua vez, na opinião de Mário Aroso
de Almeida, uma relação jurídica é regulada por normas de Direito
Administrativo, pelo que deve ser qualificada de “administrativa” quando
“lhe sejam aplicáveis normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou
imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos
intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito
de relações de natureza jurídico-privada”.[6]
Na sequência do que já foi exposto, o Direito
Administrativo é o ramo de Direito público que mais se aproxima do Direito
privado e, consequentemente, aquele por cujas fronteiras passa a delimitação em
relação ao Direito privado. É a circunstância de, caso se figure o Direito
público e o Direito privado como territórios confinantes, pertencer ao Direito
Administrativo, do lado do Direito público, a parcela territorial fronteiriça
que elucida as dificuldades que, de modo tradicional, coloca a aplicação do critério
material de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa.[7]
O processo evolutivo e progressivo de aproximação
dos regimes laborais de direito privado e de emprego público apresenta-se,
provavelmente, como uma das causas de existência de conflitos de jurisdição no
domínio do direito privado e do direito público. Tal aproximação é uma
consequência da
tendência de “privatização” dos vínculos de serviço público, isto é, da relação
jurídica de emprego público, por oposição à prévia “publicização” do direito laboral resultante
da influência do Direito Administrativo na configuração de certos institutos
laborais.[8] [9]
A
distinção um tanto ou quanto artificial traçada pelo legislador dificulta,
deste modo, o encargo do juiz de conhecer oficiosamente a competência de um
Tribunal para o conhecimento da ação em questão, pelo que julgo não ser
totalmente censurável a decisão do Tribunal do Trabalho que, ao se deparar com
a circunstância do empregador no contrato em causa ser um ente público, decidiu
que este seria um pacto regido pelo direito público. Não obstante, no
caso em apreço, “o texto
do contrato assinalava, «expressis verbis», que ele se regeria pelo Código do
Trabalho” e,
como a própria lei dispõe, nada impede que uma das partes seja uma pessoa
coletiva de direito público (art.º 4.º/4/b) do ETAF), pelo que,
naturalmente e adotando a posição do Tribunal dos Conflitos, o tribunal
competente em razão da matéria seria o tribunal judicial, mais concretamente, o
Tribunal do Trabalho de Leiria, pois conquanto o contrato vinculasse o
sinistrado a uma Junta de Freguesia, o mesmo regia-se pelo Código do Trabalho e
era de direito privado.
Atendendo
à solução legal prevista para a apreciação de litígios decorrentes de contratos
de trabalho e referida pelo Tribunal dos Conflitos, é de extrema importância a referência a dois
preceitos legais, os quais devem ser sempre conjugados, nomeadamente o art.º
4.º/4/b do
ETAF e o art.º 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (doravante,
LGTFP).
O art.º 4.º/4/b) do
ETAF apresenta uma dupla dimensão. Primeiramente, sujeita à jurisdição
dos tribunais judiciais a apreciação dos litígios emergentes de contratos
individuais de trabalho na Administração Pública (a termo ou por tempo
indeterminado – no caso em análise, o contrato é a termo certo) que não
constituam vínculo de emprego público. Não se pretende restringir a
cláusula geral da competência da jurisdição administrativa, mas apenas excluir
da competência da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios
emergentes dos contratos individuais de trabalho que não constituam uma relação
jurídica de emprego público (“vínculo de emprego público”), ainda que se
esteja perante contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público”.[10]
Na última parte do preceito, surge uma exceção, sujeitando-se à jurisdição dos
tribunais administrativos e fiscais, a apreciação de litígios emergentes do
Vínculo de Emprego Público que sejam celebrados ao abrigo da LGTFP (arts.º 6.º
e 12.º da LGTFP).
Esta dualidade jurisdicional entre
contratos configura-se indesejável e cria uma “esquizofrenia
jurisdicional” no âmbito da
contratação pública (mais concretamente, no contencioso laboral
administrativo). A solução para esta ocorrência passa por uma transferência de
todo o Direito Laboral Administrativo para a jurisdição administrativa e
fiscal, o que inclui todas as relações de trabalho inerentes ao exercício da
função administrativa, dando-se prevalência ao critério da função admnistrativa sobre o do regime jurídico. [11]
O art.º 12.º da LGTFP, norma de
competência jurisdicional, vem reforçar a lógica apresentada no final do art.º
4.º/4/b) do ETAF, dispondo, expressamente, que “são da competência dos
tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de
emprego público”.
Por
fim, diferente da solução prevista para a delimitação do âmbito de jurisdição
administrativa em matéria de contratos qualificados como laborais, em que o
empregador é um ente público, outra solução é dada para a generalidade dos
contratos da Administração Pública, nos termos do art.º 4.º/1/e) do ETAF, preceito
legal que parece apresentar critérios mais ampliativos de delimitação do âmbito
da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, do que o critério
material do “vínculo de direito privado” e “vínculo de emprego público” que se
encontra disposto no art.º 4.º/4/b) do ETAF. Assim, o art.º 4.º/1/e) do ETAF confere aos tribunais administrativos e
fiscais competência para apreciar litígios que digam respeito a questões de “validade
de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos
administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da
legislação sobre contratação pública[12],
por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes[13]”.
Bibliografia:
- Vieira
de Andrade, José Carlos - A Justiça Administrativa, Lições, 15.ª Edição.
Coimbra, Almedina, 2016;
-
Aroso de Almeida, Mário - Manual de Processo Administrativo. 2.ª Edição.
Coimbra, Almedina, 2016;
-
Pereira da Silva, Vasco. O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2.ª Edição. Coimbra, 2009;
-
Martins, Licínio Lopes, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais revisto. Justiça Administrativa N.º
106, 2014.
- Almeida,
Luís Filipe Mota (2016) - Notas breves sobre o Âmbito da Jurisdição
Administrativa e o Vínculo de Emprego Público. Vol. 3 N.º 3. Revista Eletrónica
de Direito Público, 2016. Disponível em:
- Direito
das Relações Laborais na Administração Pública. Lisboa, Centro de Estudos
Judiciários, 2018. Disponível em:
- Direito
do Trabalho na Administração Pública I. Lisboa, Centro de Estudos
Judiciários, 2017. Disponível em:
Adriana
Lima, N.º 28139
Subturma
10
[2] Mário Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, p.
200.
[3] O dos litígios que tenham por objeto
relações jurídicas administrativas.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
de 20.01.2015, Proc. n.º 375014/09.5YIPRT
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, p.
173 e 174.
[8] Maria do Rosário Palma Ramalho, “Intersecção
entre o Regime da Função Pública e o Regime Laboral”.
[9] “O contrato de trabalho assume um
papel cada vez mais relevante no seio da Administração Pública. Neste contexto,
a tarefa do julgador não é fácil. Sobretudo se não olvidarmos que os quadros de
referência do jurista do trabalho são, em regra, quadros privatísticos, os
quais carecem de ser repensados e reelaborados quando nos confrontamos com uma
relação laboral de natureza assumidamente administrativa”. Disponível em:
[12] Entende-se por “legislação sobre
contratação pública”, o Código dos Contratos Públicos (CCP) e toda ou
qualquer outra legislação especial que a tenha por objeto, bem como a
legislação do direito europeu, nomeadamente as diretivas sobre a contratação
pública.
[13] Art.º 2.º/1 e n.º2 do CPP.
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