Thursday, 14 November 2019

Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 08.01.2016, processo n.º 00283/05.0BEMDL


Aluno: Joel Silva (n.º 56942)

Contexto
Os recorrentes interpuseram recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, de 17 de junho de 2014, pela qual foi julgada procede a exceção de inimpugnabilidade do ato impugnado na ação administrativa especial[1] intentada contra o Município de Vila Real e em que foram indicadas duas pessoas como contrainteressados, para declaração de nulidade ou anulação do despacho do Diretor do Departamento de Obras Municipais da Câmara Municipal de Vila Real, comunicado por ofício de 16.05.2005, pelo qual foram os autores notificados a deliberação da Câmara Municipal de Vila Real, de 04.05.2005, a indeferir o pedido de licenciamento da construção de um portão e a ordenar a sua demolição, por o mesmo vedar um espaço público.
Invocaram para tanto que a decisão recorrida errou ao julgar inimpugnável o ato recorrido, violando assim, em seu entender, o disposto nos arts. 51.º do CPTA, 268.º da CRP e 1344.º, 342.º e 369.º e seguintes do Código Civil.

Comentário
Neste caso, os recorrentes não se conformaram com a decisão recorrida que absolveu a demandada e contrainteressados da instância por considerar inimpugnável o ato em questão (exceção de inimpugnabilidade), por ser um mero despacho de execução e não um ato administrativo propriamente dito. Mais, entendem os recorrentes que se trata de um ato administrativo impugnável, de acordo com o art. 51.º/1 do CPTA[2], porque dotado de eficácia lesiva dos seus direitos e interesses, com eficácia externa, executória e definitiva.

Em primeiro lugar cabe referir que a pretensão formulada pelo autor tem de reportar-se a um ato administrativo, ainda que seja para negar que a manifestação produzida reúna os elementos constitutivos necessários para poder ser qualificada como tal. O processo de impugnação tem, portanto, de reportar-se ao conceito de ato administrativo e “na generalidade dos casos, que não são de declaração de inexistência, mas de anulação ou de declaração de nulidade, tem de pressupor a existência de um ato jurídico que reúna os atributos que permitem qualificá-lo como ato administrativo”[3].
À luz do art. 120.º do CPA[4], o conceito de ato administrativo consiste numa decisão de um órgão da Administração Pública que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[5].

A este propósito refere Mário Aroso de Almeida que “afigura-se, no entanto, incontroverso que pelo menos uma parte significativa dos atos que já tradicionalmente não eram considerados impugnáveis (dizia-se então que não eram atos recorríveis contenciosamente, por carecerem de definitividade material) continuam a não o ser", defendendo, neste sentido, "que eles não são impugnáveis porque se encontram, desde logo, excluídos do próprio conceito de ato administrativo que resulta do art. 120.º do CPA, na medida em que nele se faz apelo expresso ao conceito de decisão e, portanto, se exige que o ato administrativo defina situações jurídicas[6].”
No mesmo sentido afirma Vasco Pereira da Silva que “para que um ato jurídico concreto possa ser qualificado como um ato administrativo é necessário que ele seja uma decisão, que possua conteúdo decisório, exprimindo uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adotar.”

Ainda seguindo o entendimento de Mário Aroso de Almeida, “"são (…) tradicionalmente qualificados como inimpugnáveis os atos jurídicos praticados em execução ou aplicação de atos administrativos, recusando-se que, a pretexto destes atos, se possam reabrir litígios ou instaurar tardiamente litígios em torno das definições introduzidas pelas atos administrativos que eles se limitam a executar ou aplicar[7]”.

Ora, o acórdão começa por referir, com base no n.º 1 do art. 51.º do CPTA, que “é  (…) entendimento pacífico o de que a impugnabilidade do ato administrativo, depende apenas da sua externalidade, ou seja, da suscetibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projetem para fora do procedimento onde o ato se insere”, acrescentando ainda “independentemente de ser lesivo ou não.[8]
Porém, em relação aos atos de mera execução, o acórdão defende que se mantém o entendimento que sempre foi pacífico[9]. Isto é, apenas se admite a impugnabilidade dos atos de execução na medida em que padeçam de vícios próprios ou não respeitem os limites impostos pelo ato que visam executar[10]. A impugnabilidade dos atos de execução ou de aplicação é recusada na medida em que eles reiteram e, nessa medida, confirmam o que tinha sido decidido através do ato que executam ou aplicam, sem tomarem uma nova decisão sobre a matéria.

Reportando-se ao caso concreto, a decisão recorrida sustentou que o que os autores foram impugnar era um mero despacho de notificação/execução e não o ato administrativo propriamente dito. O despacho impugnado de 16.05.2005 apenas deu cumprimento à deliberação da Câmara Municipal de Vila Real de 04.05.2005, tendo sido essa decisão que indeferiu o pedido de legalização apresentado pelos autores e que determinou a notificação destes para procederem à demolição de toda a obra executada.
O despacho de 16.05.2005 limita-se a dar cumprimento a esta decisão notificando os autores para procederem à demolição das obras efetuadas, nada inovando em termos jurídicos no caso concreto e que se limita a dar execução à deliberação da Câmara Municipal de Vila Real de 04.05.2005. Ou seja, esta declaração exprime apenas o exercício de um “poder de definição jurídica típico do seu autor, contribuindo, assim, em maior ou menos medida para completar a definição jurídica que tinha sido introduzida pelos atos que os precederam e em que eles se baseiam”[11].
Assim, os vícios imputados ao despacho impugnado não são vícios próprios deste ato[12], mas de um ato anterior, que é a deliberação.

Concluindo, o tribunal acabou por julgar procedente a presente exceção e, em consequência, absolveu a entidade demanda e os contrainteressados da instância.
Posteriormente, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte criticaram a posição dos recorrentes, tendo em conta que nada dizem quanto à fundamentação da sentença e, em concreto, sobre o caráter meramente executório e de dar a conhecer a deliberação da Câmara Municipal de Vila Real de 04.05.2005.
Portanto, confirmando que o ato impugnado é mera notificação e execução da deliberação camarária que, essa sim, indeferiu o licenciamento da construção do muro e ordenou a sua demolição. Logo, os efeitos lesivos que se projetam na esfera jurídica dos recorrentes resultam dessa deliberação e não do ato impugnado que – como já se disse – nada acrescenta àquela deliberação, limitando-se a levá-la ao conhecimento dos visados e a dar-lhe execução.

Por fim, os juízes acordaram em negar provimento ao recurso jurisdicional e assim manter a decisão recorrida.


Bibliografia
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 08.01.2016, processo n.º 00283/05.0BEMDL (www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/49f37f59f05cdbb480257f39005165e5)
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 2015, 2.ª Edição.
CALDEIRA, MARCO, em “A impugnação de atos no novo CPTA: âmbito, delimitação e pressupostos”, “Comentários à revisão do ETAF e do CPTA”, AAFDL Editora, 2017, 3.ª Edição, p. 577 a 607.
SILVA, VASCO PEREIRA DA, em “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo”, Almedina, 2009, 2.ª Edição, p. 331 a 368.



[1] Tal designação remonta ao anterior modelo dualista dos meios processuais (ação administrativa especial vs. ação administrativa comum) que foi eliminado e alterado na sequência da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto. O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, veio proceder a uma revisão do regime do contencioso administrativo em Portugal, constante do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro. Esta revisão determinou que deixasse de existir um meio processual próprio para a formulação de pretensões impugnatórias e condenatórios relacionadas com a prática de atos administrativos (como era a antiga ação administrativa especial). Não obstante, a nova ação administrativa única continua a conter especificidades quando estamos perante a impugnação de atos administrativos.
[2] Como já se disse, a matéria de impugnação de atos administrativos foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, pelo que a redação do preceito anterior era diferente, dispunha este que “ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os atos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Por outro lado, a definição atual de ato impugnável estabelece que “ainda que não ponham termo a um procedimento, são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, incluindo as proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que atuem no exercício de poderes jurídico-administrativos”.
[3] Cf. Mário Aroso de Almeida, em “Manual de Processo Administrativo”, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2015.
[4] No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/2014, de 11 de julho, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo aprovou o novo Código do Procedimento Administrativo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro. Por este motivo o preceito referido consta agora do art. 148.º e dispõe o seguinte: “consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.”
[5] Hoje, diferentemente, o art. 148.º do CPA adota um conceito amplo de ato administrativo que abrange todas estas manifestações. Daí resulta que, sempre que um sujeito, independentemente da sua natureza pública ou privada, pratique atos jurídicos concretos ao abrigo de normas de Direito Administrativo que permitam que esses atos projetem unilateralmente os seus efeitos no ordenamento jurídico geral, esses atos são atos administrativos, o que implica que a sua legalidade está submetida à apreciação dos tribunais administrativos segundo o regime processual da impugnação dos atos administrativos (art. 51.º/1 do CPTA).
[6] Neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I., 10.ª Edição (reimpressão), Coimbra, 1986.
[7] Cf. Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves, João Pacheco de Amorim, “Código do Procedimento Administrativo Comentado”, 2.ª Edição, Coimbra, 1998.
[8] Neste sentido ver o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.12.2009, no processo 0140/09, e a vasta doutrina aí citada.
[9] Este entendimento retira-se, a título de exemplo, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05.12.2002, no processo 07/02; reiterado no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19.06.2015, no processo: 02760/10.1.
[10] Neste sentido ver Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 3ª edição, 2007.
[11] Cf. Mário Aroso de Almeida, em “Manual de Processo Administrativo”, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2015.
[12] Dispõe, hoje, o art. 53.º/3 do CPTA: “os atos jurídicos de execução de atos administrativos só são impugnáveis por vícios próprios, na medida em que tenham um conteúdo decisório de caráter inovador.”

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