No dia 17 de
janeiro de 2017 foi emitida uma decisão pela Câmara Municipal de Lisboa, no
âmbito de um processo de contraordenação contra o Café LdA, que o
condenou no pagamento de uma coima no valor de 600 euros.
A contraordenação
em causa foi provocada pela falta de licença de utilização do espaço do Café
para efeitos de realização de espetáculos e de divertimentos públicos, o que
corresponde ao tipificado na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-lei
n.º 309/2012. No decurso da ação, ficou provado que a licença de recinto tinha
sido requerida no dia 29 de abril de 2014 e, ainda, no dia 25 de julho de 2016.
Não obstante, esta foi objeto de parecer de indeferimento, uma vez que a
arguida não providenciou a entrega dos elementos necessários na Câmara
Municipal de Lisboa.
O caso chegou ao
Tribunal Central Administrativo Sul e a ora Recorrente, Café LdA, nas
suas alegações, impugnou a jurisdição deste Tribunal. Segundo esta, a alínea l)
do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF), que estabelece que cabe à jurisdição administrativa conhecer das “impugnações
judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do
ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito
administrativo em matéria de urbanismo”, não é aplicável ao caso.
A contraordenação em
causa dizia respeito à falta de licenciamento camarário, pelo que a Recorrente
arguiu que não seria possível reconduzi-la a matéria de urbanismo, ainda que se
considerasse a vertente relativa ao ruído, que apenas diz respeito a questões
de ambiente.
O Tribunal acabou
por aderir à posição da Recorrente e afirmou que a impugnação em causa não
integrava a previsão normativa do artigo 4.º, pelo que se considerou
incompetente. Mais, entendeu o Tribunal que o legislador não teve como objetivo
atribuir competência genérica aos tribunais administrativos no que dizia respeito
às violações de normas urbanísticas. Neste contexto, aquele Tribunal analisou o
anteprojeto submetido pelo Governo, que na alínea m) do n.º 3 do artigo 3.º consagra
a possibilidade de alargar o âmbito da jurisdição a outros domínios, mas que
não obteve reflexo no atual ETAF.
Com recurso à
interpretação sistemática, assinalou que o âmbito da alínea l) é justificada
face ao teor da alínea k) do n.º 1 do artigo 4.º do mesmo diploma legal, que
estabeleceu a competência dos tribunais administrativos para apreciar litígios
que dizem respeito à “prevenção, cessação
e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em
matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do
território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado,
quando cometidas por entidades públicas”.
Assim, a
delimitação da competência na alínea l) foi, inequivocamente, intencional. Neste
sentido, o legislador apenas quis que as impugnações de coimas dissessem
respeito a “matéria de urbanismo”.
Finalmente, para
fundamentar a sua posição, no que diz respeito à sua incompetência, o Tribunal
recorreu à interpretação do conceito de Direito do urbanismo. Neste domínio,
seguiu a posição de Fernando Alves Correia, o qual refere que este Direito
distingue-se de outros como o Direito de Ordenamento do Território ou do
Direito do Ambiente, sendo o mesmo atinente “no seu núcleo essencial ao
conjunto de normas e de institutos respeitantes à ocupação, uso e transformação
do solo, designadamente para fins de urbanização e de construção, fins
agrícolas e florestais, de valorização e proteção da natureza, de recuperação e
preservação dos centros históricos.”
Mais referiu, na
esteira da Professora Fernanda Paula Oliveira, que apenas considera
contraordenações urbanísticas aquelas que estão previstas no Regime Jurídico de
Urbanização e Edificação (RJUE), no Regime Jurídico de Reabilitação Urbana e
nos Regulamentos Municipais, pelo que a contraordenação presente no acórdão em análise
não dizia respeito a uma contraordenação urbanística de acordo com o sentido
estrito do conceito.
Assim, o Tribunal
Central Administrativo Sul no dia 24 de maio de 2018 conclui pela sua
incompetência absoluta no caso sub judice. No entanto, tenho de discordar
da sua análise, não só no que diz respeito ao caso em concreto, como à sua
competência.
1. O problema da jurisdição administrativa.
O acórdão remete para a análise da competência em razão da jurisdição
administrativa do Tribunal. Esta matéria encontra-se regulada no artigo 4.º do
ETAF, preceito que estabelece quando é que uma determinada ação deve ser
colocada nos Tribunais Administrativos e Fiscais e não nos Tribunais Judiciais.
Em termos gerais, pertencem à jurisdição administrativa e fiscal,
todos os litígios que digam respeito à matéria jurídica administrativa e fiscal
e cuja apreciação não caia na competência dos Tribunais Judiciais, tal como
todos os litígios que sejam especialmente atribuídos a esta jurisdição.
No entanto, este
preceito tem sido alvo de grandes reformas. Em 2002, o artigo 4.º continha um
enunciado exemplificativo e, em caso de dúvida sobre que outros litígios
deveriam ser apreciados pelos tribunais da jurisdição administrativa, recorria-se
ao n.º 3 do artigo 212.º da CRP e ao n.º 1 do artigo 1.º do ETAF.
Esta solução foi
abandonada e, na própria exposição de motivos da proposta de revisão do ETAF de
2015, referia-se que a inovação mais significativa iria corresponder à
definição do âmbito da jurisdição e, mais especificamente, à relação do artigo
4.º com o n.º 1 do artigo 1.º, que saiu reforçada (MARTINS, 2014, p.7)
Hoje, o teor do
citado artigo 4.º corresponde a uma enumeração taxativa, que se diz aparente, dada
a cláusula aberta constante da alínea o), que determina a extensão da
jurisdição às “relações jurídicas
administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas
alíneas anteriores”.
Ainda no que diz
respeito à reforma é possível afirmar, segundo alguns autores, que a “novidade maior” (MARTINS, 2014, p.9) se
refere ao alargamento da jurisdição administrativa ao Direito
contraordenacional, pois passaram a ser objeto de impugnação as decisões de
contraordenações.
2. A análise da
alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Em específico, acerca
da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, que é a colocada em causa no caso
em análise, o legislador estabeleceu a possibilidade de impugnação
judicial de decisões da Administração Pública, quando as mesmas apliquem coimas
no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito
administrativo em matéria de urbanismo.
Deste modo, o
legislador acabou por afastar-se do projeto inicial, o qual estabelecia a
competência da jurisdição administrativa na impugnação de decisões de aplicação
de coimas por violação de normas administrativas em matéria do ambiente,
ordenamento do território, património cultural e bens do Estado.
A justificação da
construção inicial da alínea l) passava, principalmente, pelo facto da
aplicação da coima tratar-se de uma genuína relação de justiça administrativa.
Aliás, o próprio Direito contraordenacional, em si mesmo, corresponde a uma
transferência de competência para a Administração e, mais concretamente, para
as autoridades administrativas, existindo, deste modo, todo um procedimento
administrativo sancionatório.
Assim, não se
percebe a solução que acabou por singrar com a entrada em vigor do ETAF e que
tem sido alvo de algumas críticas.
Segundo a
Professora Carla Amado Gomes (2012, p.459), o alargamento da jurisdição
administrativa a impugnação de sanções administrativas seria, pelo menos,
particularmente pertinente no que respeita às sanções acessórias, na medida em
que as mesmas “visam pôr cobro ao
incumprimento de prescrições jusadministrativas ambientais, pautadas por
ponderações que envolvem critérios de adequação.
Mais, tal como o
Professor Jorge Pação (2016, p.336) refere, a opção podia ter sido outra e, se
existiam medos de ordem prática, como a possível incapacidade dos Tribunais
Administrativos darem resposta ao inevitavelmente aumento do número de ações,
deviam ter sido encontradas outras soluções que não implicassem a omissão que
acabou por se verificar.
3.
As diferentes interpretações resultantes da alínea l) do n.º 1 do artigo
4.º do ETAF.
Apesar da opção do
legislador, a alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF deve ser sempre
interpretada, nomeadamente, o conceito técnico-jurídico que é utilizado na sua
previsão. Suscita-se a questão de saber o que se deve entender por matéria de
urbanismo. O Tribunal no citado acórdão adotou uma perspetiva, a qual entendo
ser demasiado restritiva e que não é a única utilizada pela doutrina.
Em primeiro lugar,
temos a posição do Professor Freitas do Amaral que cinge o Direito do Urbanismo
ao “sistema de normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações
em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração
Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades
e da sua expansão” (AMARAL, 1993, p.26), tratando-se a posição deste
ilustre jurista de uma tese com carácter restrito.
Já segundo uma
tese intermédia, o Direito do Urbanismo corresponde ao correto ordenamento da
ocupação e transformação dos solos para fins urbanísticos.
Por outro lado, o
Professor Alves Correia entende que o Direito do Urbanismo abrange “o
conjunto das normas e institutos que disciplinam não apenas a expansão e
renovação dos aglomerados populacionais mas também o complexo das intervenções
no solo e das formas de utilização do mesmo que dizem respeito às edificações,
valorização e proteção das belezas paisagísticas e dos parques naturais, à
recuperação de centros históricos, etc.” (CORREIA, 1999).
Atualmente, a
tendência é a adoção de uma noção ampla de Direito Urbanismo, resultado do
alargamento das fronteiras deste Direito na Europa, mas tal tendência é algo
que não encontra reflexo no acórdão em análise.
A referida
tendência de uma noção ampla de Direito Urbanismo resulta do próprio preâmbulo
do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro em que se refere “nesta
fase, não incluir no âmbito desta jurisdição administrativa um conjunto de
matérias que envolvem a apreciação de questões várias, tais como as
inerentes aos processos que têm por objeto a impugnação das decisões da
Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera
ordenação social noutros domínios”. Ou seja, embora as referidas impugnações não estivessem
previstas, a ideia que se retira é que era a intenção do legislador que estas
fossem gradualmente integradas.
Mais,
o objeto do processo, em si mesmo, a licença prévia de utilização, prevista no
artigo 62.º e seguintes do RJUE, trata-se de um ato administrativo autorizado
com o objetivo de permitir o controlo pela Administração da atividade em causa.
Assim, o juiz administrativo surge como o sujeito mais adequado e especializado
para apreciar a sua legalidade pelo que, em face da suposta insuficiência da
alínea l), era possível recorrer à aplicação da alínea o) do n.º 1 do artigo
4.º do ETAF.
Deste modo, a
interpretação feita pelo citado Tribunal não está correta, visto que este
acabou por adotar uma interpretação restritiva do conceito de Direito do
Urbanismo, interpretação esta que já não encontra reflexo na atualidade.
Em meu
entendimento, a interpretação a ser feita, do conceito em causa, tem de ser,
forçosamente, uma interpretação teleológica, com base no elemento histórico do
próprio preceito, sob pena de incoerência ou incerteza jurídica.
Bibliografia:
Acórdão do
Tribunal Central Administrativo Sul de 24 de maio de 2018, proc.1336/17.7BELSB, disponível online.
ALMEIDA, Mário de
Aroso – Manual de Processo Administrativo,
2.ª ed.. Coimbra: Edições Almedina, 2016.
AMARAL, Diogo
Freitas do – Direito do Urbanismo (Sumários), edição policopiada. Lisboa,
1993.
CORREIA, Fernando
Alves – O Plano Urbanístico e o
Princípio da Igualdade. Coimbra:
Almedina, 1999.
GOMES, Carla Amado
– As contra-ordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006, de 29 de agosto: Considerações
gerais e observações tópicas In: Estudos
em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Vol. I. Coimbra: Almedina, 2012.
MARTINS, Licínio
Lopes – Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais In: Justiça
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NEVES, Ana
Fernanda – Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF In: EPública – Revista Eletrónica de Direito
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PAÇÃO, Jorge – Novidades
em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três
novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF In: Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 3.ª ed., 2016.
SILVA, Vasco
Pereira da – O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo
Administrativo, 2.ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2013.
Carolina de
Carvalho e Oliveira Batista, aluna n.º 56867
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