Saturday, 16 November 2019

Comentário ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24 de maio de 2018: A jurisdição administrativa e as contraordenações urbanísticas


No dia 17 de janeiro de 2017 foi emitida uma decisão pela Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito de um processo de contraordenação contra o Café LdA, que o condenou no pagamento de uma coima no valor de 600 euros.

A contraordenação em causa foi provocada pela falta de licença de utilização do espaço do Café para efeitos de realização de espetáculos e de divertimentos públicos, o que corresponde ao tipificado na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 309/2012. No decurso da ação, ficou provado que a licença de recinto tinha sido requerida no dia 29 de abril de 2014 e, ainda, no dia 25 de julho de 2016. Não obstante, esta foi objeto de parecer de indeferimento, uma vez que a arguida não providenciou a entrega dos elementos necessários na Câmara Municipal de Lisboa.
O caso chegou ao Tribunal Central Administrativo Sul e a ora Recorrente, Café LdA, nas suas alegações, impugnou a jurisdição deste Tribunal. Segundo esta, a alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que estabelece que cabe à jurisdição administrativa conhecer das “impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”, não é aplicável ao caso.
A contraordenação em causa dizia respeito à falta de licenciamento camarário, pelo que a Recorrente arguiu que não seria possível reconduzi-la a matéria de urbanismo, ainda que se considerasse a vertente relativa ao ruído, que apenas diz respeito a questões de ambiente.
O Tribunal acabou por aderir à posição da Recorrente e afirmou que a impugnação em causa não integrava a previsão normativa do artigo 4.º, pelo que se considerou incompetente. Mais, entendeu o Tribunal que o legislador não teve como objetivo atribuir competência genérica aos tribunais administrativos no que dizia respeito às violações de normas urbanísticas. Neste contexto, aquele Tribunal analisou o anteprojeto submetido pelo Governo, que na alínea m) do n.º 3 do artigo 3.º consagra a possibilidade de alargar o âmbito da jurisdição a outros domínios, mas que não obteve reflexo no atual ETAF.
Com recurso à interpretação sistemática, assinalou que o âmbito da alínea l) é justificada face ao teor da alínea k) do n.º 1 do artigo 4.º do mesmo diploma legal, que estabeleceu a competência dos tribunais administrativos para apreciar litígios que dizem respeito à “prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas”.
Assim, a delimitação da competência na alínea l) foi, inequivocamente, intencional. Neste sentido, o legislador apenas quis que as impugnações de coimas dissessem respeito a “matéria de urbanismo”.
Finalmente, para fundamentar a sua posição, no que diz respeito à sua incompetência, o Tribunal recorreu à interpretação do conceito de Direito do urbanismo. Neste domínio, seguiu a posição de Fernando Alves Correia, o qual refere que este Direito distingue-se de outros como o Direito de Ordenamento do Território ou do Direito do Ambiente, sendo o mesmo atinente “no seu núcleo essencial ao conjunto de normas e de institutos respeitantes à ocupação, uso e transformação do solo, designadamente para fins de urbanização e de construção, fins agrícolas e florestais, de valorização e proteção da natureza, de recuperação e preservação dos centros históricos.”
Mais referiu, na esteira da Professora Fernanda Paula Oliveira, que apenas considera contraordenações urbanísticas aquelas que estão previstas no Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), no Regime Jurídico de Reabilitação Urbana e nos Regulamentos Municipais, pelo que a contraordenação presente no acórdão em análise não dizia respeito a uma contraordenação urbanística de acordo com o sentido estrito do conceito.
Assim, o Tribunal Central Administrativo Sul no dia 24 de maio de 2018 conclui pela sua incompetência absoluta no caso sub judice. No entanto, tenho de discordar da sua análise, não só no que diz respeito ao caso em concreto, como à sua competência.

1. O problema da jurisdição administrativa.
O acórdão remete para a análise da competência em razão da jurisdição administrativa do Tribunal. Esta matéria encontra-se regulada no artigo 4.º do ETAF, preceito que estabelece quando é que uma determinada ação deve ser colocada nos Tribunais Administrativos e Fiscais e não nos Tribunais Judiciais.
Em termos gerais, pertencem à jurisdição administrativa e fiscal, todos os litígios que digam respeito à matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não caia na competência dos Tribunais Judiciais, tal como todos os litígios que sejam especialmente atribuídos a esta jurisdição.
No entanto, este preceito tem sido alvo de grandes reformas. Em 2002, o artigo 4.º continha um enunciado exemplificativo e, em caso de dúvida sobre que outros litígios deveriam ser apreciados pelos tribunais da jurisdição administrativa, recorria-se ao n.º 3 do artigo 212.º da CRP e ao n.º 1 do artigo 1.º do ETAF.
Esta solução foi abandonada e, na própria exposição de motivos da proposta de revisão do ETAF de 2015, referia-se que a inovação mais significativa iria corresponder à definição do âmbito da jurisdição e, mais especificamente, à relação do artigo 4.º com o n.º 1 do artigo 1.º, que saiu reforçada (MARTINS, 2014, p.7)
Hoje, o teor do citado artigo 4.º corresponde a uma enumeração taxativa, que se diz aparente, dada a cláusula aberta constante da alínea o), que determina a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Ainda no que diz respeito à reforma é possível afirmar, segundo alguns autores, que a “novidade maior” (MARTINS, 2014, p.9) se refere ao alargamento da jurisdição administrativa ao Direito contraordenacional, pois passaram a ser objeto de impugnação as decisões de contraordenações.

2. A análise da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Em específico, acerca da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, que é a colocada em causa no caso em análise, o legislador estabeleceu a possibilidade de impugnação judicial de decisões da Administração Pública, quando as mesmas apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Deste modo, o legislador acabou por afastar-se do projeto inicial, o qual estabelecia a competência da jurisdição administrativa na impugnação de decisões de aplicação de coimas por violação de normas administrativas em matéria do ambiente, ordenamento do território, património cultural e bens do Estado.
A justificação da construção inicial da alínea l) passava, principalmente, pelo facto da aplicação da coima tratar-se de uma genuína relação de justiça administrativa. Aliás, o próprio Direito contraordenacional, em si mesmo, corresponde a uma transferência de competência para a Administração e, mais concretamente, para as autoridades administrativas, existindo, deste modo, todo um procedimento administrativo sancionatório.
Assim, não se percebe a solução que acabou por singrar com a entrada em vigor do ETAF e que tem sido alvo de algumas críticas.
Segundo a Professora Carla Amado Gomes (2012, p.459), o alargamento da jurisdição administrativa a impugnação de sanções administrativas seria, pelo menos, particularmente pertinente no que respeita às sanções acessórias, na medida em que as mesmas “visam pôr cobro ao incumprimento de prescrições jusadministrativas ambientais, pautadas por ponderações que envolvem critérios de adequação.
Mais, tal como o Professor Jorge Pação (2016, p.336) refere, a opção podia ter sido outra e, se existiam medos de ordem prática, como a possível incapacidade dos Tribunais Administrativos darem resposta ao inevitavelmente aumento do número de ações, deviam ter sido encontradas outras soluções que não implicassem a omissão que acabou por se verificar.

3. As diferentes interpretações resultantes da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Apesar da opção do legislador, a alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF deve ser sempre interpretada, nomeadamente, o conceito técnico-jurídico que é utilizado na sua previsão. Suscita-se a questão de saber o que se deve entender por matéria de urbanismo. O Tribunal no citado acórdão adotou uma perspetiva, a qual entendo ser demasiado restritiva e que não é a única utilizada pela doutrina.
Em primeiro lugar, temos a posição do Professor Freitas do Amaral que cinge o Direito do Urbanismo ao “sistema de normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades e da sua expansão” (AMARAL, 1993, p.26), tratando-se a posição deste ilustre jurista de uma tese com carácter restrito.
Já segundo uma tese intermédia, o Direito do Urbanismo corresponde ao correto ordenamento da ocupação e transformação dos solos para fins urbanísticos.
Por outro lado, o Professor Alves Correia entende que o Direito do Urbanismo abrange “o conjunto das normas e institutos que disciplinam não apenas a expansão e renovação dos aglomerados populacionais mas também o complexo das intervenções no solo e das formas de utilização do mesmo que dizem respeito às edificações, valorização e proteção das belezas paisagísticas e dos parques naturais, à recuperação de centros históricos, etc.” (CORREIA, 1999).
Atualmente, a tendência é a adoção de uma noção ampla de Direito Urbanismo, resultado do alargamento das fronteiras deste Direito na Europa, mas tal tendência é algo que não encontra reflexo no acórdão em análise.
A referida tendência de uma noção ampla de Direito Urbanismo resulta do próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro em que se refere “nesta fase, não incluir no âmbito desta jurisdição administrativa um conjunto de matérias que envolvem a apreciação de questões várias, tais como as inerentes aos processos que têm por objeto a impugnação das decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social noutros domínios”. Ou seja, embora as referidas impugnações não estivessem previstas, a ideia que se retira é que era a intenção do legislador que estas fossem gradualmente integradas.
Mais, o objeto do processo, em si mesmo, a licença prévia de utilização, prevista no artigo 62.º e seguintes do RJUE, trata-se de um ato administrativo autorizado com o objetivo de permitir o controlo pela Administração da atividade em causa. Assim, o juiz administrativo surge como o sujeito mais adequado e especializado para apreciar a sua legalidade pelo que, em face da suposta insuficiência da alínea l), era possível recorrer à aplicação da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Deste modo, a interpretação feita pelo citado Tribunal não está correta, visto que este acabou por adotar uma interpretação restritiva do conceito de Direito do Urbanismo, interpretação esta que já não encontra reflexo na atualidade.
Em meu entendimento, a interpretação a ser feita, do conceito em causa, tem de ser, forçosamente, uma interpretação teleológica, com base no elemento histórico do próprio preceito, sob pena de incoerência ou incerteza jurídica.

Bibliografia:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24 de maio de 2018, proc.1336/17.7BELSB, disponível online.
ALMEIDA, Mário de Aroso – Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed.. Coimbra: Edições Almedina, 2016.
AMARAL, Diogo Freitas do – Direito do Urbanismo (Sumários), edição policopiada. Lisboa, 1993.
CORREIA, Fernando Alves – O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade. Coimbra: Almedina, 1999. 
GOMES, Carla Amado – As contra-ordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006, de 29 de agosto: Considerações gerais e observações tópicas In: Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Vol. I. Coimbra: Almedina, 2012.
MARTINS, Licínio Lopes – Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais In: Justiça Administrativa, n.º 106, 2014.
NEVES, Ana Fernanda – Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF In: EPública – Revista Eletrónica de Direito Público, volume 1, n.º 2, 2014.
PAÇÃO, Jorge – Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF In: Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 3.ª ed., 2016.
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2013.


Carolina de Carvalho e Oliveira Batista, aluna n.º 56867

No comments:

Post a Comment

OS PROCESSOS URGENTES

Mariana Bernardo Catalino (24895) O CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL Considerando as diversas alterações ao CPTA, através do DL n...