O presente acórdão aborda um tema bastante discutido pela doutrina e de enorme
relevância prática, a interpretação do conceito de contrainteressados à luz do
artigo 57º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Este
conceito é passível de diversas interpretações que originam os mais diversos
resultados práticos, sendo desta forma importante contextualizar o caso em
análise.
A sociedade A intentou,
no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela, uma ação de impugnação
de ato administrativo de adjudicação de obra pública contra o município do
Mogadouro, que tinha adjudicado a obra à sociedade B.
A sociedade A tinha ficado em
6º lugar do mesmo concurso e pretendia que fosse declarada a invalidade do ato
de adjudicação. Para tal, ao intentar a ação, indicou como contrainteressada a
sociedade B, sociedade adjudicatária. O TAF de Mirandela entendeu,
contudo, que deveriam ter sido notificados como contrainteressados todos
os participantes do concurso, tendo sido estes posteriormente citados
eletronicamente. A ação foi julgada procedente, sendo anulado o ato de
adjudicação e o contrato celebrado na sequência deste.
Subsequentemente, a
sociedade C, 4ª classificada no concurso, interpôs um recurso de
revisão de sentença alegando não ter sido citada devidamente para intervir como
contrainteressada, tendo este sido julgado improcedente pelo TAF. C recorreu
então para o Tribunal Central Administrativo (TCA) Norte, e este concedeu
provimento ao recurso e declarou o processado nulo a partir da petição inicial.
Tal foi fundamentado com o facto da citação não poder ser feita por plataforma
eletrónica, não constituindo esta um meio válido de citação para o caso em
análise, uma vez que o TCA Norte entendia que os contrainteressados no caso
eram apenas os concorrentes colocados em lugar superior ao da
sociedade A, autora da ação de impugnação, ou seja, 5
contrainteressados. Por este motivo, não deveriam ter sido citados os
contrainteressados através de anúncio em plataforma eletrónica, pois o CPTA à
data dos factos impunha que a citação fosse efetuada em plataforma eletrónica
quando o número de contrainteressados fosse superior a 20, que no entendimento
do TCA Norte não era o caso.
Face a esta conjetura, a
sociedade A recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo
(STA) não se conformando com a decisão da 2ª instância. Este tribunal teve uma
terceira interpretação de quem eram os contrainteressados neste caso,
entendendo ser apenas a sociedade B, adjudicatário, de
modo a que apenas esta deveria ter sido citada aquando da ação de impugnação.
Isto porque, no entendimento do STA, apenas esta tinha verdadeiramente um
interesse oposto ao do autor da ação, a sociedade A, e coincidente
com o do réu, o adjudicante. Assim sendo, seria o único concorrente que poderia
ser prejudicado com a procedência da presente ação, pois perderia a empreitada
que a si tinha sido atribuída, tendo de sujeitar a novo concurso público. Já os
restantes concorrentes teriam, para o STA, interesse na procedência da ação,
não sendo assim contrainteressados. Consequentemente foi dado provimento ao
recurso e revogada a decisão do TCA Norte.
Face a esta introdução,
fica claro que o conceito de contrainteressados à luz do artigo 57º do CPTA não
é de todo unânime, inclusive na jurisprudência, dado que em três instâncias
todas as pronúncias foram em sentido díspar, resultando em efeitos práticos
bastante distintos. O artigo em questão dispõe que, será contrainteressado “...
quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que
tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado”, visando-se com este
artigo concretizar a última parte do artigo 10º nº1 do CPTA, quando este
atribui legitimidade passiva a “titulares de interesses contrapostos aos do
autor”, delimitando o âmbito de aplicação do 10º/1[i].
O STA seguiu a posição de
Vieira de Andrade, segundo a qual são contrainteressados os que “tenham
interesse directo e pessoal em que não se dê provimento à acção”[ii].
Ou seja, interpreta-se o artigo no sentido do conceito de contrainteressado
estar associado ao prejuízo que poderá advir da procedência da
ação de impugnação e do seu não chamamento ao juízo, concluindo que o
contrainteressado terá sempre um interesse totalmente oposto ao do autor da
ação, pois não deseja o seu provimento.
Esta visão do artigo 57º
é criticada por Mário Aroso de Almeida, que entende não se tratar de uma
questão necessariamente prejudicial, mas sim de uma afetação da esfera jurídica
de determinados sujeitos, seja esta benéfica ou não. Diz este autor que o
artigo 57º do CPTA tem de ser interpretado de forma ampla, no sentido de
abarcar “todos aqueles que, por terem visto, ou poderem vir a ver a respectiva
situação jurídica definida pelo acto administrativo praticado ou a praticar,
têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão
da subsistência (...) do acto que lhes diz respeito. Trata-se, pois, de
assegurar que o processo não corra à revelia das pessoas em cuja esfera
jurídica ele se propõe introduzir efeitos. Ora, daqui não decorre
necessariamente a titularidade de um interesse contraposto ao do autor na
acção.”[iii] Esta
visão é diametralmente oposta à conceção adotada pelo presente acórdão, sendo
que na prática resultaria na citação de todos os concorrentes como
contrainteressados.
Esta discussão é
relevante porque o contrainteressado é chamado ao processo para defender os
seus interesses, numa perspetiva do direito fundamental de acesso à justiça,
artigo 20º CRP, e direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos administrados,
artigo 268º nº4 CRP[iv].
Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e o princípio da igualdade
das partes. Se a ação é passível de afetar certa posição jurídica, então o
Estado de Direito tem de assegurar a possibilidade dos lesados participarem no
processo, garantindo-lhes os meios processuais adequados[v].
Trata-se ainda de assegurar que todos os contrainteressados ao serem chamados à
ação, sejam abrangidos pelos efeitos de caso julgado, justificando-se assim o
litisconsórcio necessário passivo como forma de salvaguardar a máxima eficácia
subjetiva das decisões judiciais, contribuindo para a unidade do sistema
jurídico[vi].
No entanto, o STA na sua
fundamentação alega que a recorrente, C, tinha ficado classificada
em 4º lugar, e baseava o seu recurso na falta de citação como
contrainteressada, contudo, mesmo que o fosse, teria de defender um interesse
idêntico ao do réu, adjudicatário. Isto é, teria de defender que o ato
impugnado era legal, o que equivaleria a conformar-se com o seu lugar, não
entendendo o Tribunal onde se manifestava o interesse de C pois
seria pela sua intervenção processual como contrainteressada que poderia vir a
realizar a empreitada. É assim possível observar a aplicação prática da teoria
de Vieira de Andrade neste argumento do tribunal. Contudo, este argumento não
deve proceder, uma vez que o mais correto em termos, inclusivamente,
constitucionais, é dar direito de defesa a quem verá a sua posição jurídica
afetada em determinada ação. Não se trata aqui da necessidade de defender o
mesmo interesse do réu, dado que essa visão do artigo 57º do CPTA não dá
resposta às necessidades constitucionais de assegurar o contraditório e o
acesso efetivo aos tribunais. Além do mais, nem é líquido que C não
venha a beneficiar da procedência da ação, pois em caso de impugnação do
concurso público, haverá lugar a repetição do mesmo, tendo C, ou
qualquer dos restantes concorrentes, possibilidades de serem
escolhidos como adjudicatários. Mas o contrário também é verdade, podem todos
ficar numa posição pior no eventual novo concurso, ou seja, ver a sua posição
jurídica piorar (eventualmente descendo lugares na graduação do concurso
público), não se compreendendo então como é que não têm direito a ser chamados
à ação na perspetiva do STA. A partir do momento em que a posição anteriormente
constituída pode ser alterada, não cabe ao Direito dizer se isso traz ou não
benefícios, cabe sim chamar os concorrentes juízo para que essas entidades possam
ter o seu contraditório e garantir-se a tutela jurisdicional efetiva.
Estamos perante uma
atuação da Administração que apesar de ser destinada apenas ao adjudicatário,
acaba por afetar os interesses de todos os restantes concorrentes que não são
os destinatários diretos. Trata-se assim de uma relação jurídica poligonal[vii],
devido à multilateralidade das relações administrativas, característica da
atividade administrativa contemporânea, em que um só ato tende a afetar
diversas posições jurídicas de quem nem era o seu principal destinatário, a
estas posições deve ser dada tutela processual.
No presente caso, o que
deve ser entendido é que a posição jurídica dos concorrentes merece tutela
jurídica e garantias contenciosas, porque de facto, há um interesse destes
naquela ação de impugnação em questão, a sua posição jurídica pode ser afetada
ou beneficiada pela decisão resultante, pelo que deste modo é imperativo que
estes tenham direito a pronunciarem-se. É precisamente esta proteção processual
que é conferida pelo artigo 57º do CPTA aos contrainteressados de ações de
impugnação de atos administrativos, como é o caso do acórdão.
Face à dificuldade de
definição dos contrainteressados em ações de impugnação de processos
concursais, Paulo Otero propõe um critério geral para a sua determinação, sendo
contrainteressados[viii]:
§ Os concorrentes para quem o ato recorrido
assume a natureza de ato constitutivo de direitos ou de interesses legalmente
protegidos. O provimento da ação pode significar a perda ou modificação da sua
posição jurídica de vantagem.
§ Os concorrentes que em caso de alteração do
escalamento hierárquico, por via da sentença, possam ver a sua posição jurídica
alterada. Há produção de efeitos diretamente na esfera de cada concorrente, que
pode resultar numa pior situação do que a anterior.
§ Os concorrentes que segundo a lide configurada
pelo autor na sua petição inicial, sejam suscetíveis de sofrer prejuízos em
caso de provimento do recurso.
O último critério
apresentado parece ser o que se enquadra no caso em análise, pois a
autora, C, visa impugnar o ato de adjudicação, situação que em caso
de provimento da ação é suscetível de afetar todos os concorrentes, como já foi
explicitado. Desta maneira, todos eles teriam de ser citados, seguindo este
critério geral. Tal posição é reforçada pelo facto de em caso de procedência da
ação e consequente anulação do ato administrativo de adjudicação, todos os
concorrentes seriam atingidos na sua esfera jurídica, pois o ato deixaria de
produzir efeitos, devendo estes ser chamados a juízo para que tal lhes seja
oponível e tenham direito ao contraditório.
Analisando tudo o que foi
mencionado, a conclusão não pode ser outra senão a de que o STA não fez a
correta e devida interpretação do artigo 57º do CPTA, e tal acontece por várias
ordens de razão.
A interpretação ampla do
artigo, na esteira de Mário Aroso de Almeida e de Paulo Otero, é a única que se
compadece com as imposições constitucionais e até com o sentimento de justiça
que deve estar subjacente ao sistema. Não pode uma ação que vai gerar efeitos
diretamente numa certa esfera jurídica, não ter presente os titulares dessa
mesma esfera. E isto é cognoscível por inúmeras razões que vão desde o
princípio do contraditório à igualdade das partes ou até à efetividade do caso
julgado, que não poderá abranger numa situação destas quem não foi chamado à
ação.
A ideia de que para ser
contrainteressado tem de existir um interesse completamente contrário ao do
autor é ultrapassada e não garante o verdadeiro propósito que o instituto dos
contrainteressados visa defender. Não está aqui em causa o interesse na
procedência, ou não, da ação. O que está em causa é a necessidade de ouvir
todos estes concorrentes, que em caso de anulação do concurso, verão a sua
posição jurídica alterada, não se compreendendo como é que isso pode suceder
sem que sejam chamados ao processo. Este instituto visa salvaguardar o
contraditório e o acesso à justiça, que só é garantido, neste caso,
considerando todos os concorrentes como contrainteressados, conferindo-lhes
legitimidade passiva. Não se pretende que os contrainteressados sejam
colaboradores da Administração “na defesa da validade do acto recorrido ou do
interesse público (...) o critério teleológico da actuação processual do
contrainteressado é sempre a defesa dos respectivos interesses”[ix].
Ainda a propósito da
crítica da decisão do STA e da sua argumentação subjacente, importa referir uma
passagem do acórdão em que este tribunal afirma que “todos os concorrentes que
não ficaram classificados em 1º lugar poderiam ter recorrido do ato de
adjudicação. Não o fazendo, estão a aceitar a sua ‘derrota’”. Esta afirmação
comprova a fragilidade dos argumentos proferidos neste acórdão. Na minha
perspetiva, é de estranhar esta afirmação vinda de um tribunal superior, pois o
STA confunde aqui o interesse em recorrer do ato administrativo com o interesse
em ser parte de uma ação em que podem resultar alterações para a posição
jurídica de cada concorrente. Não é pelo facto destes concorrentes não terem
impugnado o ato, que não têm interesse em ser contrainteressados na presente
ação, são sim duas realidades distintas que o tribunal erradamente confunde.
Estes concorrentes, ao não serem chamados à ação, nem sequer tiveram direito a
manifestar o seu contraditório, não se podendo atribuir valor jurídico a uma
inação destes quando cabe ao Direito garantir-lhes o espaço para fazer valer as
suas posições jurídicas, o que neste caso seria alcançado através da sua
citação como contrainteressados.
Se a decisão do tribunal
deixa dúvidas quanto à sua correção, esta afirmação, quase negando o direito à
justiça daqueles concorrentes, acaba por ser francamente desenquadrada, ainda
para mais vinda do STA.
Deveriam então ter sido
considerados como contrainteressados todos os concorrentes, uma vez que todos
estes veriam a sua posição jurídica alterada em caso de procedência de ação.
Não o sendo, a falta de citação dos contrainteressados tem como consequência a
ilegitimidade passiva que constitui uma exceção dilatória nos termos do artigo
89º nº4 e) do CPTA, obstando ao conhecimento do mérito da causa.
[i] Pinto,
Ricardo de Gouvêa, O Credor Hipotecário como
Contra-interessado na Acção de Impugnação de actos administrativos no Direito Português, in Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. IV,
Coimbra, (2011), p.547.
[ii] Vieira
de Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 14ª Edição,
Almedina, (2015), p.241.
[iii] Aroso
de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª
Edição, Almedina, (2019) p.259.
[iv] Otero,
Paulo, Os Contra-Interessados em Contencioso Administrativo:
Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Acto
Final de Procedimento Concursal, in Estudos em
Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra, (2001), p.1080-1081.
Bibliografia
- Aroso de
Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª
Edição, Almedina, (2019).
- Otero,
Paulo, Os Contra-Interessados em Contencioso Administrativo:
Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de
Acto Final de Procedimento Concursal, in Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra, (2001).
- Pereira da
Silva, Vasco, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise
Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição,
Almedina, (2016).
- Pinto,
Ricardo de Gouvêa, O Credor Hipotecário como
Contra-interessado na Acção de Impugnação de actos administrativos no
Direito Português, in Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. IV, Coimbra, (2011).
- Vieira de
Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 14ª Edição,
Almedina, (2015).
Pedro Henriques Martins, nº56586
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