Monday, 4 November 2019

Comentário ao Acórdão Nº01018/15 do STA, Pedro Henriques Martins


O presente acórdão aborda um tema bastante discutido pela doutrina e de enorme relevância prática, a interpretação do conceito de contrainteressados à luz do artigo 57º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Este conceito é passível de diversas interpretações que originam os mais diversos resultados práticos, sendo desta forma importante contextualizar o caso em análise.

A sociedade A intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela, uma ação de impugnação de ato administrativo de adjudicação de obra pública contra o município do Mogadouro, que tinha adjudicado a obra à sociedade B.
A sociedade A tinha ficado em 6º lugar do mesmo concurso e pretendia que fosse declarada a invalidade do ato de adjudicação. Para tal, ao intentar a ação, indicou como contrainteressada a sociedade B, sociedade adjudicatária. O TAF de Mirandela entendeu, contudo, que deveriam ter sido notificados como contrainteressados todos os participantes do concurso, tendo sido estes posteriormente citados eletronicamente. A ação foi julgada procedente, sendo anulado o ato de adjudicação e o contrato celebrado na sequência deste.
Subsequentemente, a sociedade C, 4ª classificada no concurso, interpôs um recurso de revisão de sentença alegando não ter sido citada devidamente para intervir como contrainteressada, tendo este sido julgado improcedente pelo TAF. C recorreu então para o Tribunal Central Administrativo (TCA) Norte, e este concedeu provimento ao recurso e declarou o processado nulo a partir da petição inicial. Tal foi fundamentado com o facto da citação não poder ser feita por plataforma eletrónica, não constituindo esta um meio válido de citação para o caso em análise, uma vez que o TCA Norte entendia que os contrainteressados no caso eram apenas os concorrentes colocados em lugar superior ao da sociedade A, autora da ação de impugnação, ou seja, 5 contrainteressados. Por este motivo, não deveriam ter sido citados os contrainteressados através de anúncio em plataforma eletrónica, pois o CPTA à data dos factos impunha que a citação fosse efetuada em plataforma eletrónica quando o número de contrainteressados fosse superior a 20, que no entendimento do TCA Norte não era o caso. 
Face a esta conjetura, a sociedade A recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) não se conformando com a decisão da 2ª instância. Este tribunal teve uma terceira interpretação de quem eram os contrainteressados neste caso, entendendo ser apenas a sociedade B, adjudicatário, de modo a que apenas esta deveria ter sido citada aquando da ação de impugnação. Isto porque, no entendimento do STA, apenas esta tinha verdadeiramente um interesse oposto ao do autor da ação, a sociedade A, e coincidente com o do réu, o adjudicante. Assim sendo, seria o único concorrente que poderia ser prejudicado com a procedência da presente ação, pois perderia a empreitada que a si tinha sido atribuída, tendo de sujeitar a novo concurso público. Já os restantes concorrentes teriam, para o STA, interesse na procedência da ação, não sendo assim contrainteressados. Consequentemente foi dado provimento ao recurso e revogada a decisão do TCA Norte.

Face a esta introdução, fica claro que o conceito de contrainteressados à luz do artigo 57º do CPTA não é de todo unânime, inclusive na jurisprudência, dado que em três instâncias todas as pronúncias foram em sentido díspar, resultando em efeitos práticos bastante distintos. O artigo em questão dispõe que, será contrainteressado “... quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado”, visando-se com este artigo concretizar a última parte do artigo 10º nº1 do CPTA, quando este atribui legitimidade passiva a “titulares de interesses contrapostos aos do autor”, delimitando o âmbito de aplicação do 10º/1[i].
O STA seguiu a posição de Vieira de Andrade, segundo a qual são contrainteressados os que “tenham interesse directo e pessoal em que não se dê provimento à acção”[ii]. Ou seja, interpreta-se o artigo no sentido do conceito de contrainteressado estar associado ao prejuízo que poderá advir da procedência da ação de impugnação e do seu não chamamento ao juízo, concluindo que o contrainteressado terá sempre um interesse totalmente oposto ao do autor da ação, pois não deseja o seu provimento.
Esta visão do artigo 57º é criticada por Mário Aroso de Almeida, que entende não se tratar de uma questão necessariamente prejudicial, mas sim de uma afetação da esfera jurídica de determinados sujeitos, seja esta benéfica ou não. Diz este autor que o artigo 57º do CPTA tem de ser interpretado de forma ampla, no sentido de abarcar “todos aqueles que, por terem visto, ou poderem vir a ver a respectiva situação jurídica definida pelo acto administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão da subsistência (...) do acto que lhes diz respeito. Trata-se, pois, de assegurar que o processo não corra à revelia das pessoas em cuja esfera jurídica ele se propõe introduzir efeitos. Ora, daqui não decorre necessariamente a titularidade de um interesse contraposto ao do autor na acção.”[iii] Esta visão é diametralmente oposta à conceção adotada pelo presente acórdão, sendo que na prática resultaria na citação de todos os concorrentes como contrainteressados.

Esta discussão é relevante porque o contrainteressado é chamado ao processo para defender os seus interesses, numa perspetiva do direito fundamental de acesso à justiça, artigo 20º CRP, e direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos administrados, artigo 268º nº4 CRP[iv]. Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes. Se a ação é passível de afetar certa posição jurídica, então o Estado de Direito tem de assegurar a possibilidade dos lesados participarem no processo, garantindo-lhes os meios processuais adequados[v]. Trata-se ainda de assegurar que todos os contrainteressados ao serem chamados à ação, sejam abrangidos pelos efeitos de caso julgado, justificando-se assim o litisconsórcio necessário passivo como forma de salvaguardar a máxima eficácia subjetiva das decisões judiciais, contribuindo para a unidade do sistema jurídico[vi].

No entanto, o STA na sua fundamentação alega que a recorrente, C, tinha ficado classificada em 4º lugar, e baseava o seu recurso na falta de citação como contrainteressada, contudo, mesmo que o fosse, teria de defender um interesse idêntico ao do réu, adjudicatário. Isto é, teria de defender que o ato impugnado era legal, o que equivaleria a conformar-se com o seu lugar, não entendendo o Tribunal onde se manifestava o interesse de C pois seria pela sua intervenção processual como contrainteressada que poderia vir a realizar a empreitada. É assim possível observar a aplicação prática da teoria de Vieira de Andrade neste argumento do tribunal. Contudo, este argumento não deve proceder, uma vez que o mais correto em termos, inclusivamente, constitucionais, é dar direito de defesa a quem verá a sua posição jurídica afetada em determinada ação. Não se trata aqui da necessidade de defender o mesmo interesse do réu, dado que essa visão do artigo 57º do CPTA não dá resposta às necessidades constitucionais de assegurar o contraditório e o acesso efetivo aos tribunais. Além do mais, nem é líquido que não venha a beneficiar da procedência da ação, pois em caso de impugnação do concurso público, haverá lugar a repetição do mesmo, tendo C, ou qualquer dos restantes concorrentes, possibilidades de serem escolhidos como adjudicatários. Mas o contrário também é verdade, podem todos ficar numa posição pior no eventual novo concurso, ou seja, ver a sua posição jurídica piorar (eventualmente descendo lugares na graduação do concurso público), não se compreendendo então como é que não têm direito a ser chamados à ação na perspetiva do STA. A partir do momento em que a posição anteriormente constituída pode ser alterada, não cabe ao Direito dizer se isso traz ou não benefícios, cabe sim chamar os concorrentes juízo para que essas entidades possam ter o seu contraditório e garantir-se a tutela jurisdicional efetiva.
Estamos perante uma atuação da Administração que apesar de ser destinada apenas ao adjudicatário, acaba por afetar os interesses de todos os restantes concorrentes que não são os destinatários diretos. Trata-se assim de uma relação jurídica poligonal[vii], devido à multilateralidade das relações administrativas, característica da atividade administrativa contemporânea, em que um só ato tende a afetar diversas posições jurídicas de quem nem era o seu principal destinatário, a estas posições deve ser dada tutela processual.

No presente caso, o que deve ser entendido é que a posição jurídica dos concorrentes merece tutela jurídica e garantias contenciosas, porque de facto, há um interesse destes naquela ação de impugnação em questão, a sua posição jurídica pode ser afetada ou beneficiada pela decisão resultante, pelo que deste modo é imperativo que estes tenham direito a pronunciarem-se. É precisamente esta proteção processual que é conferida pelo artigo 57º do CPTA aos contrainteressados de ações de impugnação de atos administrativos, como é o caso do acórdão.

Face à dificuldade de definição dos contrainteressados em ações de impugnação de processos concursais, Paulo Otero propõe um critério geral para a sua determinação, sendo contrainteressados[viii]:
§  Os concorrentes para quem o ato recorrido assume a natureza de ato constitutivo de direitos ou de interesses legalmente protegidos. O provimento da ação pode significar a perda ou modificação da sua posição jurídica de vantagem.
§  Os concorrentes que em caso de alteração do escalamento hierárquico, por via da sentença, possam ver a sua posição jurídica alterada. Há produção de efeitos diretamente na esfera de cada concorrente, que pode resultar numa pior situação do que a anterior.
§  Os concorrentes que segundo a lide configurada pelo autor na sua petição inicial, sejam suscetíveis de sofrer prejuízos em caso de provimento do recurso.

O último critério apresentado parece ser o que se enquadra no caso em análise, pois a autora, C, visa impugnar o ato de adjudicação, situação que em caso de provimento da ação é suscetível de afetar todos os concorrentes, como já foi explicitado. Desta maneira, todos eles teriam de ser citados, seguindo este critério geral. Tal posição é reforçada pelo facto de em caso de procedência da ação e consequente anulação do ato administrativo de adjudicação, todos os concorrentes seriam atingidos na sua esfera jurídica, pois o ato deixaria de produzir efeitos, devendo estes ser chamados a juízo para que tal lhes seja oponível e tenham direito ao contraditório.

Analisando tudo o que foi mencionado, a conclusão não pode ser outra senão a de que o STA não fez a correta e devida interpretação do artigo 57º do CPTA, e tal acontece por várias ordens de razão.
A interpretação ampla do artigo, na esteira de Mário Aroso de Almeida e de Paulo Otero, é a única que se compadece com as imposições constitucionais e até com o sentimento de justiça que deve estar subjacente ao sistema. Não pode uma ação que vai gerar efeitos diretamente numa certa esfera jurídica, não ter presente os titulares dessa mesma esfera. E isto é cognoscível por inúmeras razões que vão desde o princípio do contraditório à igualdade das partes ou até à efetividade do caso julgado, que não poderá abranger numa situação destas quem não foi chamado à ação.
A ideia de que para ser contrainteressado tem de existir um interesse completamente contrário ao do autor é ultrapassada e não garante o verdadeiro propósito que o instituto dos contrainteressados visa defender. Não está aqui em causa o interesse na procedência, ou não, da ação. O que está em causa é a necessidade de ouvir todos estes concorrentes, que em caso de anulação do concurso, verão a sua posição jurídica alterada, não se compreendendo como é que isso pode suceder sem que sejam chamados ao processo. Este instituto visa salvaguardar o contraditório e o acesso à justiça, que só é garantido, neste caso, considerando todos os concorrentes como contrainteressados, conferindo-lhes legitimidade passiva. Não se pretende que os contrainteressados sejam colaboradores da Administração “na defesa da validade do acto recorrido ou do interesse público (...) o critério teleológico da actuação processual do contrainteressado é sempre a defesa dos respectivos interesses”[ix].
Ainda a propósito da crítica da decisão do STA e da sua argumentação subjacente, importa referir uma passagem do acórdão em que este tribunal afirma que “todos os concorrentes que não ficaram classificados em 1º lugar poderiam ter recorrido do ato de adjudicação. Não o fazendo, estão a aceitar a sua ‘derrota’”. Esta afirmação comprova a fragilidade dos argumentos proferidos neste acórdão. Na minha perspetiva, é de estranhar esta afirmação vinda de um tribunal superior, pois o STA confunde aqui o interesse em recorrer do ato administrativo com o interesse em ser parte de uma ação em que podem resultar alterações para a posição jurídica de cada concorrente. Não é pelo facto destes concorrentes não terem impugnado o ato, que não têm interesse em ser contrainteressados na presente ação, são sim duas realidades distintas que o tribunal erradamente confunde. Estes concorrentes, ao não serem chamados à ação, nem sequer tiveram direito a manifestar o seu contraditório, não se podendo atribuir valor jurídico a uma inação destes quando cabe ao Direito garantir-lhes o espaço para fazer valer as suas posições jurídicas, o que neste caso seria alcançado através da sua citação como contrainteressados. 
Se a decisão do tribunal deixa dúvidas quanto à sua correção, esta afirmação, quase negando o direito à justiça daqueles concorrentes, acaba por ser francamente desenquadrada, ainda para mais vinda do STA.

Deveriam então ter sido considerados como contrainteressados todos os concorrentes, uma vez que todos estes veriam a sua posição jurídica alterada em caso de procedência de ação. Não o sendo, a falta de citação dos contrainteressados tem como consequência a ilegitimidade passiva que constitui uma exceção dilatória nos termos do artigo 89º nº4 e) do CPTA, obstando ao conhecimento do mérito da causa.




[i] Pinto, Ricardo de Gouvêa, O Credor Hipotecário como Contra-interessado na Acção de Impugnação de actos administrativos no Direito Portuguêsin Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. IV, Coimbra, (2011), p.547.
[ii] Vieira de Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 14ª Edição, Almedina, (2015), p.241.
[iii] Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, (2019) p.259.
[iv] Otero, Paulo, Os Contra-Interessados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Acto Final de Procedimento Concursalin Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra, (2001), p.1080-1081.
[v] Idem, p.1082-1083.
[vi] Ibidem, p.1087.
[vii] Aroso de Almeida, Mário, (2019), ob. cit. p.256.
[viii] Otero, Paulo, (2001), ob. cit. p.1098.
[ix] Idem, p.1079.


Bibliografia

  • Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, (2019).
  • Otero, Paulo, Os Contra-Interessados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Acto Final de Procedimento Concursalin Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra, (2001).
  • Pereira da Silva, Vasco, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina, (2016).
  • Pinto, Ricardo de Gouvêa, O Credor Hipotecário como Contra-interessado na Acção de Impugnação de actos administrativos no Direito Portuguêsin Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. IV, Coimbra, (2011).
  • Vieira de Andrade, José, A Justiça Administrativa (Lições), 14ª Edição, Almedina, (2015).


Pedro Henriques Martins, nº56586




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