Todos os contrainteressados se podem sentar no divã? Só alguns? Ou apenas um?
Comentário ao acórdão do STA referente ao processo nº 01018/15 de 12/11/2015.
Vamos sentar algumas questões prévias no divã do contencioso administrativo
I. Definição e natureza do conceito: contrainteressados
O conceito de contrainteressados assume um peso bastante relevante no contencioso administrativo, sendo que a doutrina tem procurado explicar de forma sucinta e explícita a figura de forma a garantir que não ocorram situações, nas quais se confundam por exemplo os conceitos de contrainteressado e cointeressados. A par disto, a doutrina tem igualmente discutido qual é a natureza dos contrainteressados e encontramos entendimentos muito ricos a este respeito(1).
No artigo 57º CPTA temos a consagração legal da matéria respeitante aos contrainteressados e conseguimos retirar deste preceito legal que o serão aqueles “a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legitimo interesse na manutenção do ato impugnado”.A análise do acórdão vai estar diretamente ligada a este preceito legal e também com a interpretação que a jurisprudência tem vindo a fazer quando confrontada com o conceito de contrainteressados, sendo que tem oscilado entre duas amplitudes: fazer uma interpretação literal e em stricto sensu ou optar por uma interpretação em lato sensu.
II. A importância que os contrainteressados assumem no contencioso administrativo
No direito alemão e italiano, o contrainteressado é tido como uma parte secundária, logo “a sua presença não é estruturalmente essencial ou necessária ao fim específico da existência do processo”(2).A realidade portuguesa é bastante diferenterelativamente à intervenção processual dos contrainteressados, podemos elencar algumas das principais razões que apontam a sua relevância. Primeiramente temos de atender às razões subjetivas, há evidentemente uma preocupação em chamar o contrainteressado ao processo atendendo a que é nos termos da lei, titular de interesses que podem vir a ser diretamente prejudicados se ocorrer o provimento do recurso. Tal preocupação decorre da necessidade de garantir a observância do direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no Art.º 20 CRP a par de observar o princípio do respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos interessados nos termos do Art.º 266/1 CRP e por último respeitar, o princípio da tutela jurisdicional efetiva que decorre do disposto no Art.º 2 CPTA.
O autor ao deduzir a P.I está adstrito, ao ónus de nos termos do Art.º 78/2 b) CPTA identificar as partes, mais precisamente os contrainteressados(3) e esta exigência está diretamente ligada à questão da ilegitimidade passiva, que é mais uma razão que explica a importância da figura dos contrainteressados. A falta de citação dos contrainteressados está igualmente ferida de ilegitimidade passiva, esta obsta ao conhecimento da causa nos termos do Art.º 89/4 e) CPTA e traduz a inoponibilidade da decisão judicial que venha a ser proferida em consequência da revelia dos contrainteressados, Art.º 155/2 CPTA. Podemos em suma concluir que a importância que a lei confere aos interessados tem uma natureza subjetivista e objetivista e estes são, portanto, relevantes para o contencioso administrativo e a sua eventual omissão no processo pode ter consequências bastante gravosas.
III.A diferença entre contrainteressados e cointeressados
As terminologias que adotamos quando abordamos uma determinada temática são muito relevantes pelo que é desde logo relevante distinguir e também atentar no sentido a que devemos atender quando utilizamos as expressões: contrainteressado e cointeressado. Atendendo às palavras de Ricardo Gouvêa Pinto podemos dizer que os contrainteressados são“as pessoas a quem a procedência da ação pode prejudicar ou que têm interesse na manutenção da situação contra a qual se insurge o autor (...) pessoas que, embora não tenham visto a sua esfera jurídica ser diretamente beneficiada ou prejudicada pelo ato judicialmente atacado, se encontram ligadas a este por motivos abstratos ou por razoes especiais e por qualquer modo juridicamente tuteladas”(4).
Podemos concluir com base no entendimento de José Vieira de Andrade que os contrainteressados ao serem verdadeiras partes no processo devem ser enquadrados e considerados nas diversas menções que a lei faz quando consagra a expressão “partes”, a título exemplificativo, temos o artigo 95, 120/3 e 121, todos do CPTA. Relativamente aos cointeressados, diz-nos, José Carlos Vieira de Andrade que estes são “os terceiros que tenham interesse em que se dê provimento ao pedido do autor, quando não assumam a posição de partes principais, em litisconsórcio ativo ou coligação”(5). Atendendo ao exposto, temos de considerar os cointeressados como assistentes no processo.
IV.Legitimidade passiva
Estamos no domínio dos pressupostos processuais respeitantes às partes, mais precisamente no domínio da legitimidade processual. “O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto processual e não como uma condição de procedência da ação(6)”.A legitimidade é classicamente tida como ativa (implica a titularidade do direito potestativo de ação) ou passiva (entidade contra quem se formula o pedido), sendo que para o tema em causa interessa focar mais na legitimidade passiva que está consagrada no Artigo 10/1 CPTA e que determina que: “Cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida (...) contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.”(7)
V.Enquadramento do acórdão
O presente acórdão surgiu com uma ação que foi intentada pela sociedade A, Lda. (ocupou o 6º lugar no concurso) e que pretendia que a decisão fosse anulada e consequentemente pretendia que o contrato celebrado com a sociedade B (ocupou o 1º lugar no concurso) fosse anulado. A questão que foi abordada no acórdão consiste em saber quem é que é tido como contrainteressado em sede de anulação de um ato de adjudicação relativamente a um concurso público respeitante à realização de uma empreitada de uma obra publica. Face à análise do acórdão foi possível concluir que surgiram 3 entendimentos diferentes. O TAF de Mirandela concluiu no sentido de que todos os concorrentes seriam tidos como contrainteressados (dai ter notificado a autora para a necessidade desta ter de identificar os contrainteressados em falta e esta ter identificado os restantes 22 participantes), o TCA Norte veio dizer que apenas o seriam os classificados que obtiveram uma posição melhor em relação ao impugnante. O STA defende que apenas o adjudicatário seria tido como contrainteressado na medida em que os restantes 22 participantes devem com base no entendimento do STA partilhar a mesma posição de descontentamento pela decisão proferida. Posto isto, a sociedade C não poderia ser considerada como uma contrainteressada (não teria razão em recorrer ao TCAN por não ter sido citada) sendo apenas uma cointeressada.
O STA adota uma posição mais tradicionalista ao considerar que apenas o adjudicatário deveria ser demandado e ser tido como um contrainteressado, contudo mediante uma análise atenta ao Art.º 57 CPTA, vamos desconstruir esta perspetiva errónea. O contrainteressado que surge neste último preceito legal pode ser entendido de duas formas ou melhor, nele podem ser inseridas duas qualidades de pessoas: os que são diretamente prejudicados pela anulação e aqueles que embora não verifiquem nenhum prejuízo provindo diretamente da anulação, ainda assim, têm um interesse legitimo quanto à manutenção do ato. Logo a interpretação que o STA faz, desvaloriza este “duplo” sentido que conseguimos retirar do Art.º 57CPTA atendendo ao facto de que o tribunal interpreta de forma duvidosa e restritiva o preceito e desvaloriza os restantes potenciais contrainteressados. Para abordar a questão dos contrainteressados, o STA recorreu a um critério de delimitação respeitante ao interesse e se este vai ao encontro do autor ou do réu.
No presente acórdão tínhamos relações jurídicas subjacentes a uma lógica multipolar e a decisão proferida pelo STA expõe a influencia que as decisões administrativas têm sobre uma multiplicidade de sujeitos e a facilidade que as mesmas têm em serem prejudiciais. A dificuldade em compreender o conceito de contrainteressado tem levado a muitas decisões infelizes, tal como esta o foi. Não é sensato concebermos que apenas os concorrentes prejudicados diretamente pelo provimento do recurso possam ser tidos como contrainteressados quando, sendo o ato anulado, todos os concorrentes terão uma nova oportunidade de verem as suas propostas ocuparem um lugar classificativo distinto daquele que obtiveram numa primeira fase do concurso.
VI.Conclusão com base no diagnóstico do Dr. Freud: Precisamos de um divã maior para que todos os contrainteressados se possam sentar
Atendendo a tudo o que foi exposto ao longo da análise que levei a cabo do acórdão, demonstro a minha discordância em pleno da decisão que foi proferida pelo STA, considero que todos os concorrentes do concurso deveriam ter sido demandados ou seja todos eles teriam legitimidade para serem tidos como contrainteressados ao abrigo do disposto no Art.º 57 CPTA e o STA deveria ter feito uma interpretação lato sensu do preceito. Com a sua decisão, o STA não garante, infelizmente, uma proteção eficaz dos direitos fundamentais dos envolvidos. Para fundamentar a conclusão, a par de tudo o que foi supramencionado, remato com as palavras do professor Mário Aroso de Almeida.” o universo dos contrainteressados é mais amplo, estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respetiva situação jurídica definida pelo ato administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão da subsistência ou da introdução na ordem jurídica do ato que lhes diz respeito."(8)
VII. Notas de rodapé
(1) O professor Vasco Pereira da Silva chega a este entendimento por via dos artigos 10, 57 e 68/2 CPTA.“Estes particulares são verdadeiros sujeitos de relações jurídicas administrativas multilaterais(...) são titulares de posições de vantagem juridicamente protegidas, pelo que devem gozar dos correspondentes poderes processuais”, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Cfr Pereira da Silva Vasco, pp372
Segue este mesmo entendimento, José Carlos Vieira de Andrade “os contrainteressados são legalmente concebidos como partes”,Cfr Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa, Almedina 15ed, 2016 pp263
Paulo Otero entende que “a participação processual dos contrainteressados é uma dupla situação de litisconsórcio necessário passivo, temos por um lado, um litisconsórcio passivo entre a autoridade recorrida e os contrainteressados. Por outro lado, temos um litisconsórcio necessário passivo entre todos os contrainteressados”, Cfr: Os contrainteressados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Ato Final de Procedimento Concursal (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares), pp 1078-1079.
Rui Chancerelle considera que existe uma relação horizontal entre o autor e o contrainteressado, atendendo a que temos verticalmente por um lado, a relação entre o autor e a entidade administrativa e respetivamente do outro temos a entidade administrativa e o contrainteressado. Quando este cenário não acontecer, ou seja, nas palavras do autor, “quando a relação horizontal não existir, a relação controvertida consubstancia-se apenas entre o autor do ato e a autoridade administrativa, não havendo neste caso contrainteressados”, Cfr. A legitimidade dos contrainteressados nas ações administrativas comuns e especiais, in Estudos em Homenagem ao professor doutor Marcello Caetano, Vol II, Coimbra Editora, 2006, pp 630
(2) Otero Paulo, Os contrainteressados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Ato Final de Procedimento Concursal(Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares), Coimbra Editora, 2001, pp1078
(3)“No que respeita à forma de convocação dos contrainteressados, o legislador português adotou o modelo italiano, que faz impender sobre o autor da ação o ónus de indicação dos contrainteressados, tendo de indicar o seu nome e residência na petição inicial” Cfr Paes Marques Francisco, Conflitos entre Particulares no Contencioso Administrativo, 2019, Almedina. pp 533
(4)Gouvêa Pinto, Ricardo, As consequências da não intervenção devida dos Contrainteressados na Ação Administrativa Especial in: Estudos dedicados ao professor doutor Nuno José Espinosa Gomes da Silva, Universidade Católica, 2013 pp 376
(5)Cfr Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa, Almedina 15ed, 2016 pp263
(6)Cfr. Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ed, Almedina, 2019, pp 213.
(7)“a legitimidade passiva caberá em princípio à parte que seja titular do dever na relação material controvertida, em regra, uma pessoa coletiva publica, e também aos terceiros contrainteressados, enquanto prejudicados direitos com a procedência do pedido” Cfr.Vieira de Andrade José Carlos, Justiça Administrativa, lições, Almedina, 11ed, 2011, pp 265.
(8)Cfr. Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ed, Almedina, 2019, pp 259
VIII. Bibliografia para executar a psicanálise
- Otero, Paulo, Os contrainteressados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Ato Final de Procedimento Concursal (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares) Coimbra Editora, 2001
- Vieira de Andrade, José Carlos, Justiça Administrativa, lições 2011, 11 edição Almedina
- Pereira da Silva, Vasco,O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo,almedina 2ed, 2016
- Paes Marques Francisco, Conflitos entre Particulares no Contencioso Administrativo, 2019, Almedina
- Aroso de Almeida Mário, Manual de Processo Administrativo, 2019, Almedina 3ed,
- Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa, Almedina 15ed, 2016,
- PINTO, Ricardo de Gouvêa, As consequências da não intervenção devida dos contra-interessados na acção administrativa especial in: Estudos dedicados ao Professor Nuno Espinosa Gomes da Silva. - Universidade Católica, 2013, p. 375-401. - Vol. 2
- Machete, Rui Chancerelle de, A legitimidade dos contrainteressados nas ações administrativas comuns e especiais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. II, Coimbra Editora, 2006
Autora: Ana Corte Real, Aluna nº56945, 4ºA, Subturma 10
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