Wednesday, 18 December 2019

A tutela jurisdicional efetiva e as impugnações administrativas necessárias - Rafaela Figueiredo Lima


                                                        Rafaela Figueiredo Lima, n.º 56894
I.                    Enquadramento
II.                  As impugnações administrativas
III.               Impugnações administrativas necessárias
IV.                Evolução das impugnações administrativas necessárias em Portugal
V.                  Serão as impugnações administrativas necessárias inconstitucionais?
VI.                Recentes desenvolvimentos em matéria de impugnações administrativas necessárias
VII.             Conclusão
VIII.           Notas de fim de página

I. Enquadramento
O princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto nos artigos 268.º, n.º 4 CRP e artigo 2.º CPTA, transporta o princípio do direito civil que estabelece que a cada direito corresponde uma ação, para o Contencioso Administrativo, significa isto que os particulares podem defender os seus direitos dirigindo-se aos tribunais administrativos e fiscais.
No mesmo sentido de acautelar e defender os direitos dos particulares, estão previstos constitucionalmente o direito de acesso aos tribunais – art. 20.º CRP, o direito de obter uma decisão judicial num prazo razoável e mediante um processo equitativo – art. 20.º, n.º4 e o direito à efetividade das sentenças – art. 205.º n.º 2 e 3 CRP. O CPTA prevê ainda o princípio da acionabilidade da atividade administrativa lesiva dos particulares art. 2.º, n.º 2, que obriga a Administração Pública a respeitar “os direitos e interesses legalmente protegidos” dos cidadãos, surgindo assim um “limite negativo” à atividade administrativa, segundo os professores Gomes Canotilho e Vital Moreira.
 Deste modo, os particulares possuem várias garantias face à administração que decorrem do art 266.º, n.º1, in fine CRP e do art. 4.º CPA e se incluem em duas categorias distintas: garantias não jurisdicionais e jurisdicionais. As primeiras são exercidas junto dos órgãos da Administração Pública: reclamação, recurso hierárquico (art. 166.º CPA), recurso hierárquico impróprio (art. 176.º CPA), entre outras. As segundas são exercidas perante os órgãos judiciais, em específico, perante os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal e podem ser impugnações de atos administrativos, recursos, ações de condenação à prática do ato devido, ações para adoção de medidas cautelares adequadas e ações para a impugnação de normas administrativas.
Neste artigo vamos analisar em pormenor o regime das impugnações administrativas e as divergências que este suscita, nomeadamente a questão dos recursos hierárquicos necessários e o seu papel atual. Cumpre analisar esta questão para aferir se a impugnação judicial de atos administrativos está, não está ou deveria estar dependente de um ónus de prévia utilização de garantias não jurisdicionais.
II. As impugnações administrativas
Os art. 184.º e seguintes do CPA estabelecem o regime geral relativo às impugnações administrativas. Há duas possíveis reações perante uma impugnação administrativa.
A primeira, baseada no mérito, sucede quando a administração se pode pronunciar acerca do mérito e adequação do ato em apreciação; esta exerce assim um poder de administração ativa na matéria regulada pelo ato em causa. Esta situação não decorre nos recursos tutelares, uma vez que, nos termos do 199.º, n.º 3 CPA, só poderá haver “fundamento na inconveniência ou inoportunidade do ato ou da omissão nos casos em que a lei estabeleça uma tutela de mérito.
A segunda atuação possível perante uma impugnação administrativa é baseada na legalidade e nos poderes de revisão: nesta situação a autoridade administrativa está restringida pela lei à apreciação da legalidade do ato impugnado.
De acordo com o art. 185.º, n.º 1 CPA as impugnações podem ser necessárias ou facultativas. É uma impugnação necessária toda aquela que tenha que ser obrigatoriamente apresentada antes do recurso contencioso de um ato administrativo, traduzindo-se num autêntico pressuposto processual, isto é, num “elemento cuja verificação depende, em determinado processo, do poder-dever de o juiz se pronunciar sobre o fundo da causa, isto é, de apreciar o mérito do pedido formulado e de sobre ele proferir uma decisão”.[1]
III. Impugnações administrativas necessárias
No ponto (I) deste artigo, foram elencados os princípios constitucionais que estão na base das garantias dos particulares e que enformam a tutela jurisdicional efetiva (art.º 268.º, n.º4 CRP) e têm como consequência o direito de acesso incondicionado aos meios jurisdicionais de controlo da atividade administrativa.
Mais ainda, o princípio da separação de poderes, executivo e judicial, postulado na CRP, impõe dissemelhanças entre os vários aspetos da atividade administrativa, designadamente no que diz respeito a questões de apreciação de legalidade, em que pode haver reapreciação jurisdicional, ou questões de mérito, que apenas pode ser controlado auto e heteronomamente no seio da própria administração, nos termos dos artigos 111.º, n.º 2, art. 202.º, n.º 2 e art. 266.º, n.º 1 CRP.[2]
Há várias ordens de razões por detrás das impugnações administrativas necessárias, nomeadamente a celeridade e praticabilidade dos processos nos tribunais administrativos e fiscais. Esta figura jurídica fundamenta-se na implementação de uma estratégia aplicável às entidades administrativas de modo a acautelar que estas não sejam constantemente demandadas pelos particulares e tenham que comparecer perante os tribunais para sustentar os seus interesses em situações em que a contraparte não tentou resolver a questão junto da própria administração, visando-se assim não sobrecarregar os tribunais com ações desnecessária.
Não obstante, resta saber se esta consagração de um autêntico pressuposto de acesso aos tribunais respeita efetivamente os direitos e interesses dos administrados, utilizando mecanismos que obrigam a administração a reavaliar os atos que praticou, proporcionando essa garantia adicional aos particulares, ou se, contrariamente, este pressuposto serve apenas e exclusivamente os interesses da administração, que só seria demandada judicialmente por um particular depois de tentar gerir e solucionar pela via extrajudicial o conflito, evitando ser censurada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal caso haja de facto alguma irregularidade na sua atuação.[3]
Sem embargo o mencionado, os particulares têm uma salvaguarda, assegurada por via constitucional – art. 268.º, n.º4 CRP, que lhes permite recorrer judicialmente de qualquer ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Portanto, obrigar o particular a esgotar todas as vias administrativas para poder reagir judicialmente consubstancia um obstáculo ao acesso à justiça administrativa e parece colidir com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva referido.
IV. Evolução das impugnações administrativas necessárias em Portugal
Antes de 1989, ainda na época do texto inicial da CRP, o recurso contencioso estava previsto para as situações que envolviam atos administrativos definitivos e executórios, o que significava que só se recorria ao tribunal se estivéssemos perante atos com essas duas características.
Em 1989, com a revisão constitucional, as impugnações administrativas deixam de ser necessárias, até porque os dois requisitos exigidos para o recurso contencioso não são, à luz da CRP, indispensáveis para que o ato seja impugnável.
Esta mudança de paradigma deveu-se à evolução conceptual do Contencioso Administrativo e à mudança do próprio sistema administrativo em Portugal, onde o ato administrativo e a administração per si perdem autoridade, o que gera uma decadência da ideia de definitividade e executariedade. O foco do sistema administrativo passa a ser a proteção jurídica subjetiva [4] e o relevo centra-se na  lesividade do ato, daí ter-se abolido a expressão “definitivo e executório” do texto constitucional.
Em 2002/2004, com a reforma do CPTA, surge mais uma alteração nesta matéria: dá-se a queda do recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto genérico. Tornou-se assim unânime na doutrina que de acordo com este regime, o recurso hierárquico necessário deixou de ser exigido enquanto pressuposto geral, foi revogada a regra geral. Não obstante, não ficou claro que este recurso deixou de se exigir relativamente às regras especiais, gerando uma discussão que divide a doutrina.
V. Serão as impugnações administrativas necessárias inconstitucionais?
Por um lado, os professores Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade[5] fazem uma interpretação restritiva do regime e consideram que da revogação da regra geral dos recursos hierárquicos necessários, constante do CPA, não decorre a revogação das leis especiais que podem prever estes recursos. Esta parte da doutrina entende que o CPTA não tem o alcance de afastar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem as impugnações administrativas necessárias, e que, na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, os atos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos sem a necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. Nos casos em que isso seja expressamente previsto na lei, os particulares estão sujeitos a impugnação administrativa necessária[6], em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador.
Por outro lado, o professor Vasco Pereira da Silva faz uma interpretação não restritiva e considera que a revogação da regra geral pelo legislador implica a revogação das regras especiais por três ordens de razões: primeiramente, atendendo ao facto de que as regras especiais existem em relação de especialidade com a regra geral, deixando esta de existir, as regras especiais deixam de ter um parâmetro geral; em segundo lugar, as regras especiais reiteravam, de algum modo, a regra geral, tendo esta última desaparecido, não é coerente reiterar uma regra que já não existe; por último, tendo deixado o recurso hierárquico de existir e de ser pressuposto para impugnar judicialmente um ato administrativo, deixam de existir sequelas contenciosas, e consequentemente as normas especiais caducam. O professor entende ainda que continuar a permitir impugnações necessárias contradiz-se com a regra fundamental do acesso à justiça, fundamento do Estado de Direito – art. 2.º CRP. Sumariando esta posição, o professor Vasco Pereira da Silva entende que todas as disposições que estatuem o recurso hierárquico necessário devem ser revogadas.

VI. Recentes desenvolvimentos em matéria de impugnações administrativas necessárias
A revisão do CPA em 2015 introduziu um novo pressuposto processual que não era outrora exigido: o artigo 185.º, n.º 2 CPA passa a reconhecer expressamente as impugnações necessárias quando prevista em lei especial, respeitando certos parâmetros constitucionais que limitam as restrições aos direitos fundamentais, como a proporcionalidade.
Tal alteração foi altamente polémica e até contraditória, já que em 2002/2004 se tinham eliminado os recursos hierárquicos necessários, sem se explicitar o que acontecia à legislação especial sobre estes recursos e em 2015 se passam a admitir novamente estes recursos, retrocedendo-se para um regime que já não existe. Acrescenta-se que a falta deste pressuposto implica a inexistência de interesse processual e a impossibilidade da pretensão que o particular quer efetivar ser aceite.
VI. Conclusão
Analisando o panorama legal dos recursos hierárquicos necessários: o CPTA não prevê o recurso hierárquico necessário como pressuposto processual, o CPA não previa até 2015 mas nesta data passou a impor este pressuposto processual autónomo e a CRP não parece compatibilizar-se com o regime do CPA devido à colisão com os princípios constitucionais adjacentes à tutela jurisdicional efetiva. Mais ainda, a consideração de que alguns atos precisam de impugnação necessária e outros não, traduz não só um desvio à tutela jurisdicional efetiva mas também uma colisão com o princípio da igualdade de tratamento de todos os particulares perante a justiça administrativa, engendrando um contencioso privativo e de privilégios de foro para certas categorias de atos administrativos.[7]
Por último, no nosso entendimento, aceitar de novo estes recursos hierárquicos necessários que colocam em causa os referidos direitos dos particulares, através da criação de uma diligência que embora seja favorável à administração, é prejudicial aos particulares e consubstancia um entrave no acesso à justiça administrativa. Todos devem ter acesso à justiça de forma eficiente e definitiva, sem passar pelo crivo da administração pública, em nome do princípio constitucional da separação de poderes.
Concluindo, toda esta discussão poderia ter sido evitada, não tivesse o legislador seguido opções incongruentes entre si. A chave para solucionar toda esta querela jurídico-administrativa está na mão do legislador que deveria compatibilizar os regimes existentes, dissipando as dúvidas que fazem correr tanta tinta na doutrina portuguesa. Ademais, o legislador deveria garantir uma verdadeira e autêntica tutela jurisdicional efetiva dos particulares, conforme preceitua o art. 268, n.º4 CRP, que converge, no nosso entendimento, com o regime das impugnações administrativas necessárias enquanto pressuposto processual de acesso aos tribunais administrativos.
VII. Notas de fim de página




[1] ANDRADE , José Carlos Vieira de, Direito Administrativo e Fiscal – Lições ao 3.º Ano do Curso de 1992-1993, pág. 83.
[2] COIMBRA, José Duarte, Constituição, impugnações administrativas e acesso à justiça, em Constituição e Administração Pública, 2018, AAFDL Editora, págs. 95 e 96.
[3] GONÇALVES, Pedro Relações entre as impugnações administrativas necessárias e o recurso contencioso de anulação de atos administrativos, 1996, Almedina, pág. 35.
[4] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009 pág. 201.
[5] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019, pág. 280.
[6] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, pág. 297
[7] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, 2016, Almedina, pág. 360.

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