Contra-interessados: quem é que pode participar?
Por estarmos no âmbito da cadeira de Contencioso Administrativo, cumpre sempre pedir ajuda ao Dr. Freud para, através da psicanálise, melhor compreender todos os conceitos envolvidos e toda a esquizofrenia que envolve a relação da Administração com o particular.
Como sabemos, o Contencioso Administrativo tem sofrido alterações aos longo dos anos que alteraram drasticamente o paradigma existente em 1789. Primeiro passámos pela fase do pecado original, marcada pelo objetivismo e promiscuidade entre a administração e a justiça, período conhecido por corresponder ao sistema do administrador-juíz. O que particularmente nos importa neste período é que a Administração pública era agressiva, sendo o ato executivo por ela emanado um ato autoritário suscetível de execução coativa, i.e., os particulares não tinham direitos perante a administração. Com o momento do baptismo, deu-se a separação formal entre administração e justiça mas foi com a confirmação que se reafirmou a natureza jurisdicional e se afirmou uma nova faceta do processo administrativo: o facto de passar a destinar-se à tutela efetiva e plena de direitos, passando o contencioso administrativo a ser formado por partes.
Desta forma, chegamos à análise do art. 20º da CRP que deve ser lido em consonância com o disposto no art 268º, em particular no número 4 e com o art 2º CPA, e que consagra o princípio da tutela jurisdicional efetiva que garante o acesso de todos à justiça para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, o que trará consequências como veremos adiante. Em que medida é que o anteriormente exposto se relaciona com o tema do presente mini paper? Ora, o contra-interessado é, desde logo, uma figura “a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenha(m) legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possa(m) ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”. Assim dispõe o art 57º do CPTA e dele se retira que o contra-interessado é chamado ao processo por ser titular de um interesse legítimo que pode ver prejudicado pela decisão em causa. O problema principal em causa é o de saber como poderemos chamar a juízo alguém que não pertence à relação material controvertida em causa.
Este é um tema que levanta algumas questões mas antes de as abordar penso ser relevante tecer algumas considerações sobre o pressuposto processual relativo às partes que está em causa: a legitimidade processual na vertente passiva, que se distingue do interesse na medida em que este último “traduz uma ideia de utilidade de acesso ao processo e de adequação do meio processual escolhido” , no entendimento de JOSÉ DUARTE COIMBRA. Desde o prisma da legitimidade passiva, tem-se que estamos perante um listisconsórcio necessário passivo dado que a lei exige a intervenção de vários interessados numa ação que é proposta contra a entidade que praticou, omitiu ou recusou o ato administrativo, havendo sujeitos privados - os contra-interessados- envolvidos no litígio, coincidindo os seus interesses com os da Administração ou não. Serão, pelo menos, afetados pela decisão, tal como já foi expresso. Desta forma, a legitimidade passiva dos contra-interessados surge alinhada com a legitimidade ativa, sendo entendimento jurisprudencial e doutrinal dominante que não têm que estar em causa situações jurídicas subjetivas mas apenas “meras situações de facto, simples situações de vantagem de caráter económico ou outro”, como assinala RUI CHANCERELLE MANCHETE.
Desta forma, é certo, para a maioria da doutrina, que estamos perante o instituto do litisconsórcio necessário passivo por se tratar de chamar um terceiro ao processo sendo que é sobre o recorrente que cai o ónus de identificação e citação de todos os sujeitos passíveis de serem qualificados como contra-interessados. No caso de tal não ocorrer, teremos consequências ao nível processual: rejeição do recurso por ilegitimidade passiva, o que obsta ao conhecimento da causa. É aqui que encontramos uma primeira diferença entre o nosso contencioso administrativo e o vigente na Alemanha em que a figura do contra-interessado é antes vista como uma parte secundária, o que determina que a sua presença não é essencial e como tal a sua falta não determina o indeferimento. Também no ordenamento jurídico francês são vistos como meros assistentes processuais que participam no processo por forma a mitigar os efeitos absolutos do caso julgado e garantir o princípio do contraditório.
Tendo por base o anteriormente expresso, parece ser claro o esforço do legislador em tutelar os terceiros no campo da legitimidade passiva, conferindo-lhes poderes de intervenção que não parecem ter paralelo quando comparados com outros sistemas jurídicos. Ainda assim, apesar de na minha opinião ser bastante positiva esta medida (que confirma a evolução do contencioso e deixa para trás o entendimento objetivo e bilateral que predominava nas relações com a Administração) PAES MARQUES tece algumas críticas, como sejam a de considerar a previsão excessivamente ampla, mesmo sendo compatível com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, dizendo que o legislador “ foi excessivamente parcimonioso despindo-se de qualquer faceta pedagógica e deixando campo livre à autocontenção judicial”. Segundo o meu entendimento, é precisamente por estarem em causa titulares de posições jurídicas subjetivas que se deve garantir o acesso a uma jurisdição justa, tendo sempre por base o princípio da tutela jurisdicional.
Esta situação cria, de acordo com PAULO OTERO, um duplo litisconsórcio: um formado pela autoridade recorrida e os contra-interessados e outro formado por todos os contra-interessados, uma vez que basta que um deles não seja chamado ao processo para que estejamos de novo perante uma situação de ilegitimidade passiva.
É ainda importante mencionar o entendimento de RUI CHANCERELLE MANCHETE que considera estar em causa uma “relação horizontal substantiva” entre o autor e o contra-interessado , dado que de um lado se estabelece uma relação vertical entre o autor e a administração e, por outro lado, entre o contra-interessado e a administração.
Não é este o entendimento de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que considera que os contra-interessados têm um interesse oposto ao do autor e que pese embora se encontrem ligados à relação estabelecida entre a administração e o autor, não se podem considerar como incluídos nela. Assim, o prezado Professor considera que o objeto destes processos não se pode definir “por referência às situações subjetivas dos contra-interessados (…), mas à posição em que a Administração se encontra colocada, no quadro do exercício dos seus poderes de autoridade”. O Professor propõe, assim, que a posição dos contra-interessados no litisconsórcio necessário seja objeto de revisão crítica mas ainda assim defende que devem ser obrigatoriamente citados no processo. Salvo o devido respeito, não posso concordar. Se assim fosse, os contra-interessados nunca poderiam ser qualificados como partes legítimas na ação dado que o litígio seria sempre aferido em relação à Administração, que deveria ou não ser condenada, que deveria ou não anular o ato.
Existe ainda jurisprudência que considera que os contra-interessados são verdadeiros titulares da relação material controvertida, fazendo-se desta forma coincidir a relação substantiva com a relação processual e justificando-se assim a sua presença em juízo.
PAES MARQUES adota um pensamento distinto. Em causa está uma relação com a Administração, sujeito que é titular de poderes públicos pelo que estão em causa competências jurídico-públicas que se traduzirão na adoção de uma conduta processual completamente distinta daquela que qualquer contra-interessado pode adotar no processo pelo que desde logo não poderá estar em causa uma identidade de partes mas sim uma assimetria funcional. O Professor ressalva contudo que não está em causa uma posição privilegiada da Administração pública, como se regressássemos ao primórdios do Contencioso Administrativo. Estão sim em causa especiais prerrogativas e deveres que deve adotar enquanto guardiã do interesse público. Desta forma, tece uma crítica a toda a doutrina que importa a figura do Processo Civil, argumentando que os contra-interessados não são parte na relação material controvertida pelo que a sua posição não se engloba no objeto do processo e desta forma não poderão ver refletida a sentença nas suas esferas jurídicas. Para além disso, aponta que a figura do litisconsórcio necessário tem, no Processo civil, como objetivo impedir que se produzam efeitos distintos para os diferentes indivíduos que integram uma parte, i.e., visa permitir uma sentença de “natureza una”; tal não pode ocorrer da mesma forma no Contencioso Administrativo dado que uma sentença administrativa produz sempre efeitos, mesmo que posteriormente sujeitos particulares, que deveriam ter estado no litígio e não estiveram, possam contestá-la.
Colocando de parte a utilização do litisconsórcio passivo para enquadrar o estatuto jurídico dos contra-interessados, poderíamos, à primeira vista, recorrer à figura da oposição, que encontra consagração legal no art. 333º e ss do CPC e que pressupõe uma intervenção através da instauração de uma ação própria num processo que já está a decorrer, com partes distintas. Tal não é possível porque, como já vimos, os contra-interessados devem sempre estar presentes do rol de demandados, sob pena de falta do preenchimento processual da legitimidade passiva. Pelas razões anteriormente expostas, o Professor tende a considerar que não existe no processo civil nenhuma figura que possa ser transposta para o contencioso administrativo por forma a justificar a legitimidade dos contra-interessados.
Cumpre desta forma indagar como enquadra o Professor a legitimidade dos contra-interessados. PAES MARQUES, assim como VASCO PEREIRA DA SILVA, sufragam o entendimento segundo o qual a atuação da Administração leva a que uma pluralidade de sujeitos possam vir a ser por ela afetados, pelo que deixámos de estar perante uma bipolaridade, na qual existia um particular afetado por uma decisão, para passarmos a ter relações que se determinam fora de um determinado foco, pelo que as decisões afetam não só uma mas múltiplas relações. Assim, afirmar que está em causa um litisconsórcio necessário passivo equivaleria a assentar a relação administrativa numa lógica dictómica que se encontra ultrapassada, na medida em que a administração estabelece relações multipolares que se traduzem em dois planos: um plano horizontal (vários interesses privados em confronto) e um plano vertical (adoção pela Administração de um ato executivo que disciplina as relações do plano horizontal). Nesta medida, “a relação jurídica material tem de ser plenamente transposta para o plano processual, pelo que o sujeito que não se conformou com o exercício do mandato de conformação multipolar, ao reagir jurisdicionalmente, ocupa a posição de autor, enquanto o sujeito que encontrou um benefício em tal conformação, ou que se opõe aos efeitos pretendidos pelo autor, ocupará a posição de opositor particular” . Assim, só por referência aos interesses do contra-interessado e à motivação da conformação da situação provocada pela Administração é que podemos aferir, casuisticamente, a configuração subjetiva das partes.
Salvo o devido respeito, não posso concordar com esta posição. Na linha da doutrina maioritária, concluo que está em causa uma intervenção processual de terceiros que permite que se produzam os efeitos de caso julgado face a um maior número de indivíduos- todos os chamados a intervir no processo- o que se traduz numa maior unidade, eficiência e coerência do nosso sistema jurídico.
Várias têm sido as posições doutrinais a propósito das dificuldades que a letra da lei suscita nos seus art. 57º e 68º/2 CPTA sendo que primeiramente há que recordar o facto de estarmos perante decisões administrativas que são por isso passíveis de afetar múltiplas pessoas para além dos seus destinatários diretos, obedecendo ao que PAES MARQUES designa de “esquema ternário imperfeito”. Assim, surgem um conjunto de posições jurídicas que formam uma verdadeira relação jurídica multipolar que obedece a uma lógica que não tem outra tendência senão a de progredir, alargando-se sucessivamente a outros interessados.
No que concerne ao entendimento do que sejam contra-interessados, segundo a doutrina de VIEIRA DE ANDRADE, serão todos aqueles que tenham um interesse direto e pessoal em que não se dê provimento à ação, não sendo para tal necessário que sejam titulares de uma posição jurídica substantiva própria. Um entendimento mais amplo e com o qual tendo a concordar, tem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que estende o universo dos contra-interessados a todos aqueles que podem vir a ver a sua esfera jurídica afetada pelo ato jurídico em causa, pelo que “têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão da subsistência ou da introdução na ordem jurídica do ato que lhes diz respeito”, evidenciando que não decorre deste facto que deva haver um interesse contraposto ao do autor na ação dando para tal o exemplo de um concorrente que ficou em 20º lugar num concurso que tinha como objetivo o preenchimento de 10 vagas. Neste exemplo, todos os concorrentes devem ser tidos como contra-interessados mas não é claro que todos aqueles que ocupam as 10 últimas vagas tenham um interesse contraposto ao do autor. Estamos perante um pensamento que alarga a letra da lei mas que cabe claramente no seu espírito na medida em que todos os concorrentes podem ver a sua situação alterada em função da procedência da ação.
PAULO OTERO aponta como pressupostos gerais de determinação dos contra-interessados que:
- Existam interesses de terceiros que possam vir a ser prejudicados;
- Que o interesse dos terceiros seja diretamente prejudicado pela sentença.
Como só no momento do decretamento da sentença é que é possível saber, com certeza, quem poderá ver os seus interesses sacrificados em consequência da decisão, o Professor apela a um juízo de prognose que deve ser feito não só pelo recorrente, ao elaborar a petição inicial, como por todas as partes no processo, tais como a autoridade recorrida, o Ministério Público e até mesmo o juiz.
Por último, em relação aos efeitos que a sentença produz na esfera jurídica dos contra-interessados surgem duas teses: uma primeira tese, objetivista e defendida por Marcello Caetano, defende que todos ficam sujeitos aos efeitos da sentença; já segundo uma perspetiva adotada por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA há que distinguir a autoridade de caso julgado (que se limita à imutabilidade dos efeitos da sentença) da eficácia da sentença (consequências da sentença, alterações introduzidas).
Para concluir, no meu entender, os contra-interessados são verdadeiras partes no processo, numa nova lógica do contencioso administrativo marcada por uma abertura ao maior número de casos possíveis. Assim, devem sempre ser aferidos os pressupostos processuais relativos às partes de modo aferir a possibilidade de configurarem como partes legítimas.
Bibliografia:
- Otero, Paulo, Os contrainteressados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Ato Final de Procedimento Concursal (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares) Coimbra Editora, 2001;
- Pereira da Silva, Vasco,O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, Almedina 2ed, 2016;
- Paes Marques, Francisco, A efetividade da tutela de terceiros no contencioso Administrativo, Almedina, 2017;
- Paes Marques, Francisco, O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à práctica de acto administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativo, nº 124 – Julho/Agosto 2017;
- Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, 2019, Almedina 3ed,
- Aroso de Almedia, Mário, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 3ed, 2004
- Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa, Almedina 15ed, 2016,
- PINTO, Ricardo de Gouvêa, As consequências da não intervenção devida dos contra-interessados na acção administrativa especial in: Estudos dedicados ao Professor Nuno Espinosa Gomes da Silva. - Universidade Católica, 2013, p. 375-401. - Vol. 2
- Machete, Rui Chancerelle de, A legitimidade dos contrainteressados nas ações administrativas comuns e especiais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. II, Coimbra Editora, 2006
Mafalda Marques Saraiva
Nº56931
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