Inês Sofia Oliveira Vilhais (26259)
Segundo
Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o
Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização
dos tribunais que mais dúvida oferece quanto à sua posição constitucional.
Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro, representante do rei junto
da autoridade judiciária, depois, órgão dos tribunais dependente do Governo, e,
por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o
paradigma de Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um
órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder
executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias
aproximadas das dos juízes.[1]”
Como
resulta as normas constitucionais e legais aplicáveis – 219º/1 CRP, artigo 51º
ETAF e art. 3º/1 EMP – cabem ao ministério publico diversas funções relevantes
no âmbito das relações jurídicas administrativas:
1. defender
a legalidade
2. Fiscalizar
a constitucionalidade dos atos normativos;
3. representar
o estado e outros entes públicos, bem como determinadas pessoas indicadas por
lei;[2]
4. Defender
interesses coletivos e difusos.
O
Ministério Público ao assumir a posição de autor, pode arguir novos vícios
possuindo grande amplitude de poderes, decorrente da sua função de garante nos
termos do art. 112º CRP. Enquanto titular da ação publica, é-lhe concedida a
iniciativa processual e intervém em defesa de direitos fundamentais ou
interesses públicos. Já no que diz respeito à ação administrativa urgente, a
sua intervenção processual é limitada por não possuir interesse em agir. Neste
sentido, Vasco Pereira da Silva afirma: “no
que respeita à ação pública, ela constitui atualmente o principal poder de
intervenção processual do Ministério Público, na sequência da reforma do
Contencioso administrativo, que revalorizou o respetivo papel de sujeito
processual em detrimento da sua intervenção como “auxiliar do juiz”.
Possuindo
legitimidade ativa nos termos do art. 9º/2 CPTA – que constitui a regra geral
quanto a legitimidade ativa na ação administrativa comum, apesar da existência
de regras especificas quanto a diferentes tipologias de ações – com amplitude
total podendo intentar, quer em processos principais quer em processos
cautelares nos termos da ação popular, bastando que para isso o conteúdo da
ação se destine defesa direitos constitucionalmente protegidos consistindo num
verdadeiro Robin Hood.
-
Concretamente quanto a
atos administrativos, o Ministério Público possui legitimidade nos termos do
artigo. 55º/1/b) CPTA.
-
Quando o autor tenha
desistido da instancia, tem legitimidade para requerer o seguimento de processo
nos termos do artigo 62º/1 CPTA;
-
Nas ações de condenação à
prática de ato devido, quando o (i) dever resulte diretamente da lei e (ii) esteja
em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público
especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens referidos no artigo 9º/2
CPTA, o Ministério Publico possui
legitimidade por força do artigo. 68º/1/b) CPTA;
-
Tem ainda o dever de
pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha
conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na
sua ilegalidade, assim como recorrer das decisões de primeira instância que
declarem a ilegalidade com força obrigatória geral, de acordo com o artigo
73º/1, 3e 4 CPTA.
-
A declaração de ilegalidade
pode ser requerida por omissão de normas, cuja adoção seja necessária para dar
exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação – artigo 77º/1
CPTA;
-
No que respeita a
contratos, o Ministério Público tem legitimidade quanto à sua validade, total
ou parcial – artigo 77º-A/1/b) CPTA – bem como, quanto à sua execução – artigo 77º-A/3/c)
CPTA;
-
tem legitimidade para
requerer a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e
registos administrativos no exercício da ação pública, segundo o artigo 104º/2
CPTA;
-
Nas ações administrativas
urgentes, o Ministério Público tem legitimidade para requerer providências
cautelares nos termos dos artigos 112º/1 e 113º/5 CPTA e ainda pelo artigo
130º/2 CPTA;
-
Com a revisão de 2015, a
possibilidade de intervenção do Ministério Público no âmbito dos recursos
jurisdicionais foi estendida a todos os processos que sigam a forma da ação
administrativa, sendo que anteriormente se circunscreviam à ação administrativa
especial – artigos 85º e 146º CPTA.
De
acordo com Vasco Pereira da Silva podemos afirmar que se “o Contencioso Administrativo desempenha uma função predominantemente
subjetiva de proteção dos direitos dos particulares – a qual constitui função
principal e a razão de ser da justiça administrativa, assumindo mesmo a
natureza de direito fundamental (vide o artigo 268º, nº4, da constituição) –
enquanto que, no segundo caso [ação pública e ação popular], o Contencioso
Administrativo adquire uma função predominantemente objetiva, de tutela da
legalidade e do interesse público – a qual, no Estado de Direito, é também uma
função essencial da Justiça Administrativa”[3].
Estas
funções permitem uma posição do Ministério Publico no âmbito do contencioso
administrativo de tal forma ampla que por vezes mescla-se com um verdadeiro
tribunal[4],
ressalta ainda a assunção de funções de «amicus
curiae»[5][6] com poderes processualmente relevantes que se
verificam com faculdades como a vista dos autos, a possibilidade de arguição de
vícios não invocados pelo impugnante [95º/2 CPTA], poderes de iniciativa no
âmbito da instrução [artigos 9º/2 e 85º CPTA] e prosseguir através de recurso
em processo em que não foi parte [artigos 136º, 141º, 146º, 152º e 155º CPTA][7].
O
problema surge quanto à função preponderante que o Ministério Público vinha
assumindo de representação do Estado pois, sendo o estado sujeito de direito e
deveres o Ministério na sua representação assumirá a qualidade de autor e réu
mas e quando é o Estado a cometer ilegalidades?
Como avançar nos processos administrativos em que o particular seja
lesado pelo estado havendo confronto entre a defesa da legalidade e dos
direitos constitucionalmente protegidos e a responsabilidade civil
extracontratual do Estado?
O
Ministério Público possui legitimidade passiva nos termos do art. 11º/1 CPTA
para representação do Estado. O próprio artigo 51º/1 ETAF estatui: “Compete ao Ministério Público representar o
Estado…” devendo incluir-se aqui as Regiões Autónomas e as autarquias
locais pois, apesar de ser uma questão muito debatida na doutrina não me parece
que haja razão para apoiar a sua exclusão, primeiramente porque o ETAF e o CPTA
não referem e, no silêncio das normas aplicáveis deve completar-se com outras
em lei extravagante, ora, tendo o Ministério Público o seu próprio estatuto que
se aplica obrigatoriamente sempre que este exerça qualquer função que lhe
incumba, aplicando-se ao caso o Estatuto do Ministério Público que comtempla
quer as Regiões Autónomas, quer as autarquias locais nos seus artigos 3º/1 e
5º/1/b) não restam dúvidas do âmbito de representação que possui. Nem se
entende a problematização desta questão.
O
debate incide também quanto ao tipo de representação assumida: orgânica, legal
ou simples patrocínio judiciário. Para ALEXANDRA LEITÃO tal suscita dúvidas
pois “ (...) o Ministério Público é, de
facto, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado (...)
Dito isto, fácil será perceber que, na minha opinião, a tese da representação
legal se apresenta como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas
de um simples patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação
voluntária.”.[8]
Deve ser este o entendimento seguido.
Em
reflexão sobre os poderes do Ministério Público, Tiago Serrão assume uma
posição que me parece fazer todo o sentido, chama a atenção para a
promiscuidade que o legislador criou criticando a opção por estas funções
constitucionalmente previstas e que levam a uma emergente acuidade ao respeito
pelo princípio da imparcialidade, de grande relevância a nível processual,
considerando que com a transição para a democracia “o Ministério Público assumiu uma configuração autónoma e independente,
tendo sido subtraído à subordinação ao poder executivo e elevado à categoria de
magistratura. Atualmente, encontra-se normativamente habilitado a exercer um
vasto leque de posições processuais, assumindo tanto as vestes de autor e de
réu como de amicus curiae. O seu estatuto funcional, previsto vagamente no
artigo 219º da Constituição, confere-lhe uma amplitude de poderes suscetível de
gerar conflitos de deveres. Tal é particularmente visível no contencioso
administrativo, na medida em que se manifesta, no mínimo, contraditório que lhe
caiba promover a defesa da legalidade e que simultaneamente lhe compita, nos
processos em que estejam em causa relações contratuais e de responsabilidade,
ser advogado do Estado quando o próprio Estado potencialmente ofendeu a
legalidade”.
Alexandra
Leitão debruçou-se sobre estes conflitos e concluiu que quando o conflito respeite a entidades que o Ministério Público
deva representar será facilmente resolvido por aplicação do artigo 69º do
Estatuto do Ministério Público. Já numa situação de conflitos entre pessoas,
estamos perante uma situação de representação quanto ao estado versus uma
situação de patrocinio judiciário quanto à pessoa singular deve ser resolvida
nos termos do artigo 17º Código de Processo Civil. A problematização existe
quando esteja em causa um conflito de interesses do próprio Ministério Público,
isto é, a defesa da legalidade e a representação do estado, em sentido amplo. A
autora considera a possibilidade de aplicar analogicamente o artigo 69º do
Estatuto do Ministério Público impedindo que o próprio assuma função de autor e
reu, assumindo a ação publica a função primordial do Ministério Público a
representação do Estado não deve prosseguir. Não faltam vozes a insistir no fim
da representação do Estado pelo MP[9].
Como afirma Ricardo Pedro[10]
“o legislador há muito que vem dando
passos – bastante titubeantes – sobre o fim da manutenção da função de
representação do Estado pelo MP (...) numa recente revisão de 2019 do CPTA o
legislador não deixou de introduzir alterações que visavam esclarecer sobre a representação do Estado pelo MP ser uma
possibilidade e não uma obrigatoriedade”.[11]
A
posição assumida neste artigo vai no sentido da retirada do Ministério público na
representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo, seguindo os
entendimentos de Tiago Serrão[12]
e Alexandra Leitão.
Bibliografia:
ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, 2016.
ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014.
CANOTILHO Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010.
CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério
Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra
Editora, Coimbra, 2001.
FONSECA, Guilherme, O Ministério Público em Portugal (os dias de ontem e os dias de hoje)
in Educar, Defender, Julgar para uma Reforma das funções do Estado. Almedina,
Coimbra, 2014.
FURTADO, Mesquita, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo,
in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra,
2014.
LEITÃO, Alexandra, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais
administrativos, in Revista Julgar, nº 20, Coimbra Editora, 2013, [disponível
em: http://julgar.pt/wpcontent/uploads/2013/05/191208Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado].
MATOS, Manuel Augusto de, O
Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa,
in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014.
SERRÃO, Tiago, A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in O Anteprojecto de
Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014.
SILVA, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da
psicanálise. Almedina, 2013.
[1]
Estes autores dividem as incumbências do Ministério Público em quatro
áreas distintas: a representação do estado nas causas em que ele seja parte,
funcionando como Advogado; exercer a ação penal; defender a legalidade
democrática, intervindo no contencioso administrativo e fiscal e na
fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas
pessoas mais carenciadas de proteção, designadamente, os menores, os ausentes,
os trabalhadores, etc.
Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação ao artigo
219º CRP, em Constituição da República
Portuguesa Anotada, Vol. II.
[2] Já em 2010, VIEIRA DE ANDRADE, nas
suas lições assumia a posição de que o Ministério Público não ser visto como
representante dos interesses patrimoniais do estado quando a representação e o
patrocínio possam ser assegurados por funcionários de serviços jurídicos
ministeriais ou por advogados. Do mesmo modo, não lhe cabia a promoção do
interesse público quando era prosseguido por órgãos administrativos.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso , administrativo no divã da psicanálise, p. 272.
[4] SERVULO CORREIA configura o
Ministério Público, quando atua nestes termos, como um órgão especial da
jurisdição administrativa, que não participa no poder jurisdicional, mas que se
situa num plano intermédio entre a função jurisdicional e a função
administrativa, pp. 308 e 309.
[5] VIEIRA DE ANDRADE considera que o
Ministério Publico não pode ser assim considerado na forma de auxiliar de
justiça socorrendo-se da argumentação de Servulo Correia de que a finalidade
deste órgão é a defesa da legalidade devendo por isso atuar com imparcialidade
(p. 157, 2009).
[6] ALEXANDRA LEITÃO relembra a
alteração legislativa neste âmbito que reduziu processualmente o papel do
Ministério Público por imposição da jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem e do Tribunal Constitucional, assinalando: «Efetivamente, aquele tribunal europeu
decidiu, no Caso Lobo Machado c. Portugal 17, que a presença de um Procurador,
com direito a ser ouvido na discussão, nas sessões de julgamento no Supremo
Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo, prevista no
artigo 15.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos de 1985 18,
violava o n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(direito a um processo equitativo). Na mesma linha, o Tribunal Constitucional
entendeu também que o artigo 15.º daquela Lei era inconstitucional por violação
do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição por considerar que “o respeito por um
processo equitativo supõe a criação de condições objetivas que permitam
assegurá-lo. Ora, não se vê como tal
possa acontecer quando um elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por
missão decidir a controvérsia, pode participar na discussão e assistir à
deliberação, em sessão sujeita ao regime de segredo, numa fase em que qualquer
intervenção se apresenta como particularmente decisiva porque antecede
imediatamente a tomada de decisão» (p. 196, 2013).
[7] Esta intervenção, versando apenas
sobre a relação substantiva (que não é obrigatória apenas tendo lugar quendo o
Ministério Público considere que ela se justifique), consiste na emissão de um
parecer sobre o mérito da causa ou requerimento a solicitar a realização de
diligências instrutórias.
[8]
. ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério
Público nos tribunais administrativos, pp. 206 e 207.
[9] Sobre o tema, José Carlos Vieira
de Andrade, A Justiça Administrativa,
Lições, 15.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 206, p. 141; Mário Aroso de
Almeida, Manual de Processo
Administrativo, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pp. 208- 209; Mário Aroso
de Almeida/ Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª
ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 125 e ss.; Alexandra Leitão, “A representação do Estado pelo Ministério
Público nos tribunais administrativos”, Revista Julgar, n.º 20, 2013, pp.
191-208; Tiago Serrão, “A representação
processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
em debate”, in Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
[10] PEDRO RICARDO, O novo Estatuto do Ministério Público: O fim
da função de representação do Estado pelo MP (?): Killing me softly with this
song… with these (legal) words…, in Revista do Ministério Público, nº 159,
Julho/Setembro de 2019, pp. 43-59.
[11] Negando o carater exclusivo de
representação do Estado pelo Ministério Público assentam os pareceres da
comissão constitucional (n.º 8/82, de 9 de Março de 1982, n.º 315, pág 107),
bem como, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º
114/2003 (relativo à representação do Estado nos Tribunais arbitrais), n.º
10/2005 (relativo à representação do Estado nos Julgados de Paz) e n.º 74/1991
(relativo à representação do Estado em Tribunais estrangeiros).
[12] TIAGO SERRÃO defende que o
problema é de simples resolução: “a
Constituição não determina, no contexto do contencioso administrativo, que a
função de representação do Estado em juízo seja atribuída (muito menos em
exclusivo) ao Ministério Público. Bem pelo contrário. A conformação
jurídico-constitucional desta magistratura, como garante da estrita legalidade,
é incompatível com a defesa do Estado no processo administrativo. A revisão em
curso destina-se, precisamente, a corrigir a incoerência legislativa vigente,
libertando o Ministério Público dessa incumbência, em nome da boa administração
da justiça. Aliás, só deste modo ficará resolvido o potencial conflito entre a
autonomia do Ministério Público e a representação do Estado-parte” (pp.230
e ss).
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