Tuesday, 17 December 2019

O papel do Ministério Público no contencioso administrativo


Inês Sofia Oliveira Vilhais (26259)
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização dos tribunais que mais dúvida oferece quanto à sua posição constitucional. Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro, representante do rei junto da autoridade judiciária, depois, órgão dos tribunais dependente do Governo, e, por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o paradigma de Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos juízes.[1]
Como resulta as normas constitucionais e legais aplicáveis – 219º/1 CRP, artigo 51º ETAF e art. 3º/1 EMP – cabem ao ministério publico diversas funções relevantes no âmbito das relações jurídicas administrativas:
1.     defender a legalidade
2.     Fiscalizar a constitucionalidade dos atos normativos;
3.     representar o estado e outros entes públicos, bem como determinadas pessoas indicadas por lei;[2]
4.     Defender interesses coletivos e difusos.
O Ministério Público ao assumir a posição de autor, pode arguir novos vícios possuindo grande amplitude de poderes, decorrente da sua função de garante nos termos do art. 112º CRP. Enquanto titular da ação publica, é-lhe concedida a iniciativa processual e intervém em defesa de direitos fundamentais ou interesses públicos. Já no que diz respeito à ação administrativa urgente, a sua intervenção processual é limitada por não possuir interesse em agir. Neste sentido, Vasco Pereira da Silva afirma: “no que respeita à ação pública, ela constitui atualmente o principal poder de intervenção processual do Ministério Público, na sequência da reforma do Contencioso administrativo, que revalorizou o respetivo papel de sujeito processual em detrimento da sua intervenção como “auxiliar do juiz”.
Possuindo legitimidade ativa nos termos do art. 9º/2 CPTA – que constitui a regra geral quanto a legitimidade ativa na ação administrativa comum, apesar da existência de regras especificas quanto a diferentes tipologias de ações – com amplitude total podendo intentar, quer em processos principais quer em processos cautelares nos termos da ação popular, bastando que para isso o conteúdo da ação se destine defesa direitos constitucionalmente protegidos consistindo num verdadeiro Robin Hood.
-       Concretamente quanto a atos administrativos, o Ministério Público possui legitimidade nos termos do artigo. 55º/1/b) CPTA.
-       Quando o autor tenha desistido da instancia, tem legitimidade para requerer o seguimento de processo nos termos do artigo 62º/1 CPTA;
-       Nas ações de condenação à prática de ato devido, quando o (i) dever resulte diretamente da lei e (ii) esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens referidos no artigo 9º/2 CPTA, o  Ministério Publico possui legitimidade por força do artigo. 68º/1/b) CPTA;
-       Tem ainda o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, assim como recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral, de acordo com o artigo 73º/1, 3e 4 CPTA.
-       A declaração de ilegalidade pode ser requerida por omissão de normas, cuja adoção seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação – artigo 77º/1 CPTA;
-       No que respeita a contratos, o Ministério Público tem legitimidade quanto à sua validade, total ou parcial – artigo 77º-A/1/b) CPTA – bem como, quanto à sua execução – artigo 77º-A/3/c) CPTA;
-       tem legitimidade para requerer a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e registos administrativos no exercício da ação pública, segundo o artigo 104º/2 CPTA;
-       Nas ações administrativas urgentes, o Ministério Público tem legitimidade para requerer providências cautelares nos termos dos artigos 112º/1 e 113º/5 CPTA e ainda pelo artigo 130º/2 CPTA;
-       Com a revisão de 2015, a possibilidade de intervenção do Ministério Público no âmbito dos recursos jurisdicionais foi estendida a todos os processos que sigam a forma da ação administrativa, sendo que anteriormente se circunscreviam à ação administrativa especial – artigos 85º e 146º CPTA.
De acordo com Vasco Pereira da Silva podemos afirmar que se “o Contencioso Administrativo desempenha uma função predominantemente subjetiva de proteção dos direitos dos particulares – a qual constitui função principal e a razão de ser da justiça administrativa, assumindo mesmo a natureza de direito fundamental (vide o artigo 268º, nº4, da constituição) – enquanto que, no segundo caso [ação pública e ação popular], o Contencioso Administrativo adquire uma função predominantemente objetiva, de tutela da legalidade e do interesse público – a qual, no Estado de Direito, é também uma função essencial da Justiça Administrativa[3].
Estas funções permitem uma posição do Ministério Publico no âmbito do contencioso administrativo de tal forma ampla que por vezes mescla-se com um verdadeiro tribunal[4], ressalta ainda a assunção de funções de «amicus curiae»[5][6]  com poderes processualmente relevantes que se verificam com faculdades como a vista dos autos, a possibilidade de arguição de vícios não invocados pelo impugnante [95º/2 CPTA], poderes de iniciativa no âmbito da instrução [artigos 9º/2 e 85º CPTA] e prosseguir através de recurso em processo em que não foi parte [artigos 136º, 141º, 146º, 152º e 155º CPTA][7].
O problema surge quanto à função preponderante que o Ministério Público vinha assumindo de representação do Estado pois, sendo o estado sujeito de direito e deveres o Ministério na sua representação assumirá a qualidade de autor e réu mas e quando é o Estado a cometer ilegalidades?  Como avançar nos processos administrativos em que o particular seja lesado pelo estado havendo confronto entre a defesa da legalidade e dos direitos constitucionalmente protegidos e a responsabilidade civil extracontratual do Estado?
O Ministério Público possui legitimidade passiva nos termos do art. 11º/1 CPTA para representação do Estado. O próprio artigo 51º/1 ETAF estatui: “Compete ao Ministério Público representar o Estado…” devendo incluir-se aqui as Regiões Autónomas e as autarquias locais pois, apesar de ser uma questão muito debatida na doutrina não me parece que haja razão para apoiar a sua exclusão, primeiramente porque o ETAF e o CPTA não referem e, no silêncio das normas aplicáveis deve completar-se com outras em lei extravagante, ora, tendo o Ministério Público o seu próprio estatuto que se aplica obrigatoriamente sempre que este exerça qualquer função que lhe incumba, aplicando-se ao caso o Estatuto do Ministério Público que comtempla quer as Regiões Autónomas, quer as autarquias locais nos seus artigos 3º/1 e 5º/1/b) não restam dúvidas do âmbito de representação que possui. Nem se entende a problematização desta questão.
O debate incide também quanto ao tipo de representação assumida: orgânica, legal ou simples patrocínio judiciário. Para ALEXANDRA LEITÃO tal suscita dúvidas pois “ (...) o Ministério Público é, de facto, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado (...) Dito isto, fácil será perceber que, na minha opinião, a tese da representação legal se apresenta como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas de um simples patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação voluntária.”.[8] Deve ser este o entendimento seguido.
Em reflexão sobre os poderes do Ministério Público, Tiago Serrão assume uma posição que me parece fazer todo o sentido, chama a atenção para a promiscuidade que o legislador criou criticando a opção por estas funções constitucionalmente previstas e que levam a uma emergente acuidade ao respeito pelo princípio da imparcialidade, de grande relevância a nível processual, considerando que com a transição para a democracia “o Ministério Público assumiu uma configuração autónoma e independente, tendo sido subtraído à subordinação ao poder executivo e elevado à categoria de magistratura. Atualmente, encontra-se normativamente habilitado a exercer um vasto leque de posições processuais, assumindo tanto as vestes de autor e de réu como de amicus curiae. O seu estatuto funcional, previsto vagamente no artigo 219º da Constituição, confere-lhe uma amplitude de poderes suscetível de gerar conflitos de deveres. Tal é particularmente visível no contencioso administrativo, na medida em que se manifesta, no mínimo, contraditório que lhe caiba promover a defesa da legalidade e que simultaneamente lhe compita, nos processos em que estejam em causa relações contratuais e de responsabilidade, ser advogado do Estado quando o próprio Estado potencialmente ofendeu a legalidade”.
Alexandra Leitão debruçou-se sobre estes conflitos e concluiu que quando o conflito  respeite a entidades que o Ministério Público deva representar será facilmente resolvido por aplicação do artigo 69º do Estatuto do Ministério Público. Já numa situação de conflitos entre pessoas, estamos perante uma situação de representação quanto ao estado versus uma situação de patrocinio judiciário quanto à pessoa singular deve ser resolvida nos termos do artigo 17º Código de Processo Civil. A problematização existe quando esteja em causa um conflito de interesses do próprio Ministério Público, isto é, a defesa da legalidade e a representação do estado, em sentido amplo. A autora considera a possibilidade de aplicar analogicamente o artigo 69º do Estatuto do Ministério Público impedindo que o próprio assuma função de autor e reu, assumindo a ação publica a função primordial do Ministério Público a representação do Estado não deve prosseguir. Não faltam vozes a insistir no fim da representação do Estado pelo MP[9]. Como afirma Ricardo Pedro[10]o legislador há muito que vem dando passos – bastante titubeantes – sobre o fim da manutenção da função de representação do Estado pelo MP (...) numa recente revisão de 2019 do CPTA o legislador não deixou de introduzir alterações que visavam esclarecer sobre a representação do Estado pelo MP ser uma possibilidade e não uma obrigatoriedade”.[11]
A posição assumida neste artigo vai no sentido da retirada do Ministério público na representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo, seguindo os entendimentos de Tiago Serrão[12] e Alexandra Leitão.



Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016.
ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014.
CANOTILHO Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010.
CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001.
FONSECA, Guilherme, O Ministério Público em Portugal (os dias de ontem e os dias de hoje) in Educar, Defender, Julgar para uma Reforma das funções do Estado. Almedina, Coimbra, 2014.
FURTADO, Mesquita, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014.
LEITÃO, Alexandra, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, in Revista Julgar, nº 20, Coimbra Editora, 2013, [disponível em: http://julgar.pt/wpcontent/uploads/2013/05/191208Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado].
MATOS, Manuel Augusto de, O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014.
SERRÃO, Tiago, A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014.
SILVA, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise. Almedina, 2013.



[1] Estes autores dividem as  incumbências do Ministério Público em quatro áreas distintas: a representação do estado nas causas em que ele seja parte, funcionando como Advogado; exercer a ação penal; defender a legalidade democrática, intervindo no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção, designadamente, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.
Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação ao artigo 219º CRP, em Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II.
[2] Já em 2010, VIEIRA DE ANDRADE, nas suas lições assumia a posição de que o Ministério Público não ser visto como representante dos interesses patrimoniais do estado quando a representação e o patrocínio possam ser assegurados por funcionários de serviços jurídicos ministeriais ou por advogados. Do mesmo modo, não lhe cabia a promoção do interesse público quando era prosseguido por órgãos administrativos.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso , administrativo no divã da psicanálise, p. 272.
[4] SERVULO CORREIA configura o Ministério Público, quando atua nestes termos, como um órgão especial da jurisdição administrativa, que não participa no poder jurisdicional, mas que se situa num plano intermédio entre a função jurisdicional e a função administrativa, pp. 308 e 309.
[5] VIEIRA DE ANDRADE considera que o Ministério Publico não pode ser assim considerado na forma de auxiliar de justiça socorrendo-se da argumentação de Servulo Correia de que a finalidade deste órgão é a defesa da legalidade devendo por isso atuar com imparcialidade (p. 157, 2009).
[6] ALEXANDRA LEITÃO relembra a alteração legislativa neste âmbito que reduziu processualmente o papel do Ministério Público por imposição da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal Constitucional, assinalando: «Efetivamente, aquele tribunal europeu decidiu, no Caso Lobo Machado c. Portugal 17, que a presença de um Procurador, com direito a ser ouvido na discussão, nas sessões de julgamento no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo, prevista no artigo 15.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos de 1985 18, violava o n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (direito a um processo equitativo). Na mesma linha, o Tribunal Constitucional entendeu também que o artigo 15.º daquela Lei era inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição por considerar que “o respeito por um processo equitativo supõe a criação de condições objetivas que permitam assegurá-lo.  Ora, não se vê como tal possa acontecer quando um elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por missão decidir a controvérsia, pode participar na discussão e assistir à deliberação, em sessão sujeita ao regime de segredo, numa fase em que qualquer intervenção se apresenta como particularmente decisiva porque antecede imediatamente a tomada de decisão» (p. 196, 2013).
[7] Esta intervenção, versando apenas sobre a relação substantiva (que não é obrigatória apenas tendo lugar quendo o Ministério Público considere que ela se justifique), consiste na emissão de um parecer sobre o mérito da causa ou requerimento a solicitar a realização de diligências instrutórias.
[8] . ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, pp. 206 e 207.
[9] Sobre o tema, José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Lições, 15.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 206, p. 141; Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pp. 208- 209; Mário Aroso de Almeida/ Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 125 e ss.; Alexandra Leitão, “A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos”, Revista Julgar, n.º 20, 2013, pp. 191-208; Tiago Serrão, “A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate”, in Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
[10] PEDRO RICARDO, O novo Estatuto do Ministério Público: O fim da função de representação do Estado pelo MP (?): Killing me softly with this song… with these (legal) words…, in Revista do Ministério Público, nº 159, Julho/Setembro de 2019, pp. 43-59.
[11] Negando o carater exclusivo de representação do Estado pelo Ministério Público assentam os pareceres da comissão constitucional (n.º 8/82, de 9 de Março de 1982, n.º 315, pág 107), bem como, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 114/2003 (relativo à representação do Estado nos Tribunais arbitrais), n.º 10/2005 (relativo à representação do Estado nos Julgados de Paz) e n.º 74/1991 (relativo à representação do Estado em Tribunais estrangeiros).
[12] TIAGO SERRÃO defende que o problema é de simples resolução: “a Constituição não determina, no contexto do contencioso administrativo, que a função de representação do Estado em juízo seja atribuída (muito menos em exclusivo) ao Ministério Público. Bem pelo contrário. A conformação jurídico-constitucional desta magistratura, como garante da estrita legalidade, é incompatível com a defesa do Estado no processo administrativo. A revisão em curso destina-se, precisamente, a corrigir a incoerência legislativa vigente, libertando o Ministério Público dessa incumbência, em nome da boa administração da justiça. Aliás, só deste modo ficará resolvido o potencial conflito entre a autonomia do Ministério Público e a representação do Estado-parte” (pp.230 e ss).

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