Recurso hierárquico necessário
Em primeiro lugar, é necessário perceber o que são os
recursos hierárquicos necessários e qual a sua relevância prática e dogmática. A
questão coloca-se porque a impugnação judicial de atos administrativos pode
estar dependente de um ónus de prévia utilização de vias de impugnação
administrativa (reclamação, recurso hierárquico, recurso tutelar…), nos termos
dos artigos 184ºss Código do Procedimento Administrativo (CPA). Desta forma,
sendo a impugnação administrativa em causa necessária (185º/1 CPA), o autor
apenas pode proceder para a impugnação contenciosa se tiver previamente
utilizado a via administrativa.
Para percebermos o impacto deste assunto atualmente,
há vários períodos históricos que temos de analisar.
O primeiro período relaciona-se com o texto
inicial da CRP que referia que apenas existia direito ao recurso
contencioso contra atos administrativos definitivos e executórios, ou seja,
tinham de ser atos que constituíssem “a última palavra” da Administração[1]. Portanto,
apenas era possível recorrer ao tribunal para efetivar as pretensões contra
atos administrativos com essas características.
Hoje, esses dois conceitos não se compadecem com a
nossa realidade, já que a própria ideia de definitividade e executariedade se
encontra em crise, na medida em que as características autoritárias do próprio
ato já desapareceram[2],
colocando-se hoje a tónica na proteção jurídica subjetiva[3]:
passa a ser relevante a lesividade do ato para o recurso contencioso.
O segundo período corresponde à revisão
constitucional de 1989, desaparecendo do texto constitucional a
expressão definitivo e executório, dando azo, assim, a duas posições
relativamente à constitucionalidade das impugnações administrativas necessárias:
1)
Vieira de Andrade[4]: entende que a garantia
prevista na CRP é passível de ser densificada por legislação ordinária, podendo
esta exigir a definitividade do ato administrativo recorrível ou critérios
diferentes do critério da lesividade do ato, permitindo assim a dicotomia entre
recursos necessários e facultativos[5]. Para
além disso, não se contraria o artigo 268º/4 CRP, dado que é possível o
exercício posterior do direito de ação contra aquele mesmo ato[6].
2)
Vasco Pereira da Silva, Paulo Otero, Gomes Canotilho e Vital
Moreira: consideram
que não se pode fazer prevalecer a impugnação administrativa necessária, sendo que
qualquer norma que a exija é inconstitucional. Estes professores apresentam
vários argumentos:
a.
A alteração do texto constitucional leva a crer que o
legislador pretendeu alargar o âmbito dos recursos contenciosos[7],
pelo que a substituição do critério da definitividade e executariedade do ato
pela critério da lesividade do ato torna inconstitucional o recurso
administrativo necessário. Qualquer posição contrária (isto é, que admita
restrições ao critério da lesividade do ato como critério para a impugnação
contenciosa do mesmo) iria estar a admitir a criação de restrições pelo
legislador (não previstas na CRP, portanto, proibidas) a um direito
fundamental, que é o direito ao recurso contencioso (268º/4 CRP), que tem
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Realce-se que, em causa, estão precisamente aqueles
casos em que o particular não consegue recorrer contenciosamente por não ter impugnado
administrativamente no tempo devido: é aqui que se encontra a verdadeira
inconstitucionalidade das normas que estabelecem a impugnação administrativa
necessária[8].
b.
Para além disso, com a exigência da impugnação administrativa
necessária, determinados princípios constitucionais iriam ser violados,
nomeadamente, principio da plenitude dos direitos dos particulares (268º/4
CRP), o princípio da tutela jurisdicional efetiva (268º/4 CRP), o princípio da
separação entre administração e justiça (111º, 205ºss, 266ºss CRP), o princípio
da desconcentração administrativa (267º/2 CRP)
[9].
c.
Para além do mais, os tribunais administrativos são
verdadeiros tribunais independentes, não estando integrados na Administração
(205º CRP), sendo que a resolução do litigio é da competência dos Tribunais
Administrativos e não das autoridades Administrativas.
d.
Um argumento com uma vertente extra-jurídica é o facto de as
impugnações administrativas necessárias traduzirem indícios de desconfiança
politica e técnica dos subalternos, o que não se compatibiliza com a
organização administrativa atual e suas especificidades.
Um terceiro momento corresponde à reforma do
CPTA 2002-2004. Entre as diversas alterações, encontra-se a queda do
recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto genérico. Esta mudança encontra
vários fundamentos, nomeadamente atribuição do efeito suspensivo do prazo de
impugnação contenciosa, devido à utilização de meios de impugnação
administrativa (artigo 59º/4 CPTA) e, mesmo que o particular tenha utilizado
previamente a garantia administrativa, nos termos do artigo anteriormente
referido, tal não impede a possibilidade de o mesmo particular impugnar
imediatamente o ato administrativo lesivo (artigo 59º/5). Destes artigos resulta que não
é necessária a impugnação administrativa para aceder à via contenciosa[10].
Numa coisa a doutrina concorda: enquanto pressuposto
geral, o recurso hierárquico necessário deixou de se exigir, de acordo com o
regime atual do CPTA. Contudo, qual o impacto desta alteração relativamente às
regras especiais? Mais uma vez, existe divergência doutrinária:
1)
Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade: em causa está apenas a
revogação da regra geral, pelo que tal não implica a revogação de eventuais
regras especiais ou a constituição de um impedimento para que no futuro se
possa exigir o recurso hierárquico necessário. Portanto, tendo em conta que o
CPTA não tem o alcance de afastar tais regras especiais, então apenas quando
não exista determinação legal expressa é que se deve considerar que não há
lugar a impugnação administrativa necessária. Se pelo contrário, houver essa
determinação, então as decisões administrativas estão sujeitas a tal impugnação
necessária[11]/[12].
Se não existir essa impugnação quando tal seja necessário (nos prazos definidos
no artigo 193º /2 CPA), então preclude o direito de recurso contencioso[13].
2)
Vasco Pereira da Silva: a revogação da regra geral pelo
legislador não deve ser interpretada de forma restritiva, sendo que, a ser
assim, terá várias repercussões:
a.
ao se considerar apenas que houve revogação da norma geral e
não das especiais, estas últimas deixam de ter um parâmetro geral, deixam de
ter especialidade alguma. Assim, passariam a ser apenas reiteração da regra
geral;
b.
se já não é pressuposto processual de impugnação de atos
administrativos, então deixa de existir consequências contenciosas, pelo que as
normas especiais caducam.
Assim, de acordo com a posição de Vasco Pereira da
Silva, devem ser revogadas todas as disposições que preveem o recurso
hierárquico necessário.
Por fim, temos ainda um último momento, que foi a revisão
de 2015, sendo esta uma revisão que vem instalar um pouco de confusão.
Isto sucede porque, se na reforma anterior se tinha retirado a necessidade de
impugnação administrativa enquanto pressuposto processual, esta reforma vem
inserir um novo pressuposto processual no CPA (atípico, nas palavras de
Mário Aroso de Almeida[14]) que
não era exigido no CPTA.
No CPA, nomeadamente no artigo 185º/2, o legislador
veio reconhecer expressamente as impugnações administrativas necessárias e
explicitar quais os critérios de identificação dessas impugnações em lei
especial (artigo 3º do Decreto-Lei nº4/2015, de 7 de janeiro, que aprovou a
revisão de 2015 do CPA).
Esta introdução não deixa de ser bastante contraditória,
dado que se insere em lei substantiva (CPA) um novo pressuposto processual que
já não era exigido no CPTA, o que, para além de demonstrar um certo retrocesso
a um regime que já não existia, não deveria constar em lei substantiva,
nomeadamente quando é defensável que se trata de um pressuposto que em nada se
relaciona com a substância do ato, sendo meramente uma questão adjetiva[15]. Tal
é claro porque, se não estiver preenchido o pressuposto, não é o ato em si que
é afetado, mas simplesmente se verifica a inexistência de interesse processual,
não devendo a pretensão do impugnante ser aceite.
Não obstante, existem autores, como Mário Aroso de
Almeida, que consideram que esta alteração veio esclarecer que as impugnações necessárias
são efetivamente constitucionais, pondo fim à controvérsia que existia aquando
da revisão do texto constitucional de 1989[16]/[17].
Ainda assim, não deixa de ser evidente que esta
introdução vem demonstrar uma total descoordenação entre CPTA, que não
exige o recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto processual; o CPA,
que em 2015 passou a exigir tal pressuposto; e a CRP, que aquando da
modificação do texto constitucional, também gerou divergência na doutrina sobre
a constitucionalidade ou não da exigência do recurso hierárquico necessário[18].
Desta forma, exige-se urgentes alterações legislativas
para se proceder a uma compatibilização dos regimes de processo (no CPTA) e
procedimento administrativo (no CPA).
Esta discussão sobre se as impugnações administrativas
são ou não necessárias, se são ou não um pressuposto processual para o recurso
contencioso, deverá ser rapidamente ultrapassada por uma discussão centrada na
efetividade das garantias administrativas:
· Se se chegar à conclusão que
as garantias não são efetivas, então deixa de fazer sentido saber se são ou não
necessárias. Não sendo efetivas, não serão úteis, pois não representam qualquer
salvaguarda dos direitos concedidos aos particulares.
· Se, por um lado, se chegar à
conclusão que são úteis, então podemos
discutir se podem ou não ser necessárias.
Para tal, também será necessário uma alteração de
comportamentos por parte da própria Administração Pública, na medida em que, para
existir uma verdadeira salvaguarda dos direitos dos particulares, é necessário
perceber se aquela questão colocada pelo particular, ao chegar ao superior
hierárquico, vai efetivamente ser reanalisada ou se simplesmente se vai dar
razão ao próprio subalterno, sem quaisquer outras ponderações, passando a ser
meramente formal esta garantia.
Se assim o for, então não são garantias efetivas, nem úteis,
pelo que não se deve sequer colocar a questão da necessidade. Se tal não
ocorrer, e existir efetivamente uma vontade de reanalisar o problema, então a
questão de saber se devem ou não ser necessárias pode colocar-se.
Bibliografia
1.
Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição,
Almedina, 2019.
2. Andrade,
José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina,
2019
3. Silva, Vasco
Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª
edição, Almedina, 2009
Mariana Pais, nº 56752
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, Almedina, 2009, p. 201 e 208
[3] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, Almedina, 2009 p. 201
[4] Acompanhado pela jurisprudência dos acórdãos do Tribunal
Constitucional nº 425/96; 499/49; 92/01 e 99/01
[7] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, Almedina, 2009, p. 201
[8] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, Almedina, 2009, p. 209
[9] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, Almedina, 2009, p. 209 e 2010
[10] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª
edição, Almedina, 2019, página 297
[13] Caso diferente é aquele em que o próprio recurso hierárquico
necessário é recusado, sendo que aí admite-se o recurso contencioso (198º/4
CPA)
[18] Na medida que desapareceu a referência a definitividade, dando
a entender que o relevante para a impugnação contenciosa é que o ato seja
lesivo dos direitos dos particulares.
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