Sunday, 15 December 2019


Recurso hierárquico necessário


Em primeiro lugar, é necessário perceber o que são os recursos hierárquicos necessários e qual a sua relevância prática e dogmática. A questão coloca-se porque a impugnação judicial de atos administrativos pode estar dependente de um ónus de prévia utilização de vias de impugnação administrativa (reclamação, recurso hierárquico, recurso tutelar…), nos termos dos artigos 184ºss Código do Procedimento Administrativo (CPA). Desta forma, sendo a impugnação administrativa em causa necessária (185º/1 CPA), o autor apenas pode proceder para a impugnação contenciosa se tiver previamente utilizado a via administrativa.  
Para percebermos o impacto deste assunto atualmente, há vários períodos históricos que temos de analisar. 

O primeiro período relaciona-se com o texto inicial da CRP que referia que apenas existia direito ao recurso contencioso contra atos administrativos definitivos e executórios, ou seja, tinham de ser atos que constituíssem “a última palavra” da Administração[1]. Portanto, apenas era possível recorrer ao tribunal para efetivar as pretensões contra atos administrativos com essas características.
Hoje, esses dois conceitos não se compadecem com a nossa realidade, já que a própria ideia de definitividade e executariedade se encontra em crise, na medida em que as características autoritárias do próprio ato já desapareceram[2], colocando-se hoje a tónica na proteção jurídica subjetiva[3]: passa a ser relevante a lesividade do ato para o recurso contencioso.  

O segundo período corresponde à revisão constitucional de 1989, desaparecendo do texto constitucional a expressão definitivo e executório, dando azo, assim, a duas posições relativamente à constitucionalidade das impugnações administrativas necessárias:
1)     Vieira de Andrade[4]: entende que a garantia prevista na CRP é passível de ser densificada por legislação ordinária, podendo esta exigir a definitividade do ato administrativo recorrível ou critérios diferentes do critério da lesividade do ato, permitindo assim a dicotomia entre recursos necessários e facultativos[5]. Para além disso, não se contraria o artigo 268º/4 CRP, dado que é possível o exercício posterior do direito de ação contra aquele mesmo ato[6].

2)     Vasco Pereira da Silva, Paulo Otero, Gomes Canotilho e Vital Moreira: consideram que não se pode fazer prevalecer a impugnação administrativa necessária, sendo que qualquer norma que a exija é inconstitucional. Estes professores apresentam vários argumentos:
a.      A alteração do texto constitucional leva a crer que o legislador pretendeu alargar o âmbito dos recursos contenciosos[7], pelo que a substituição do critério da definitividade e executariedade do ato pela critério da lesividade do ato torna inconstitucional o recurso administrativo necessário. Qualquer posição contrária (isto é, que admita restrições ao critério da lesividade do ato como critério para a impugnação contenciosa do mesmo) iria estar a admitir a criação de restrições pelo legislador (não previstas na CRP, portanto, proibidas) a um direito fundamental, que é o direito ao recurso contencioso (268º/4 CRP), que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

Realce-se que, em causa, estão precisamente aqueles casos em que o particular não consegue recorrer contenciosamente por não ter impugnado administrativamente no tempo devido: é aqui que se encontra a verdadeira inconstitucionalidade das normas que estabelecem a impugnação administrativa necessária[8].

b.     Para além disso, com a exigência da impugnação administrativa necessária, determinados princípios constitucionais iriam ser violados, nomeadamente, principio da plenitude dos direitos dos particulares (268º/4 CRP), o princípio da tutela jurisdicional efetiva (268º/4 CRP), o princípio da separação entre administração e justiça (111º, 205ºss, 266ºss CRP), o princípio da desconcentração administrativa (267º/2 CRP) [9].

c.      Para além do mais, os tribunais administrativos são verdadeiros tribunais independentes, não estando integrados na Administração (205º CRP), sendo que a resolução do litigio é da competência dos Tribunais Administrativos e não das autoridades Administrativas.

d.     Um argumento com uma vertente extra-jurídica é o facto de as impugnações administrativas necessárias traduzirem indícios de desconfiança politica e técnica dos subalternos, o que não se compatibiliza com a organização administrativa atual e suas especificidades. 

Um terceiro momento corresponde à reforma do CPTA 2002-2004. Entre as diversas alterações, encontra-se a queda do recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto genérico. Esta mudança encontra vários fundamentos, nomeadamente atribuição do efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa, devido à utilização de meios de impugnação administrativa (artigo 59º/4 CPTA) e, mesmo que o particular tenha utilizado previamente a garantia administrativa, nos termos do artigo anteriormente referido, tal não impede a possibilidade de o mesmo particular impugnar imediatamente o ato administrativo lesivo  (artigo 59º/5). Destes artigos resulta que não é necessária a impugnação administrativa para aceder à via contenciosa[10].
Numa coisa a doutrina concorda: enquanto pressuposto geral, o recurso hierárquico necessário deixou de se exigir, de acordo com o regime atual do CPTA. Contudo, qual o impacto desta alteração relativamente às regras especiais? Mais uma vez, existe divergência doutrinária:
1)     Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade: em causa está apenas a revogação da regra geral, pelo que tal não implica a revogação de eventuais regras especiais ou a constituição de um impedimento para que no futuro se possa exigir o recurso hierárquico necessário. Portanto, tendo em conta que o CPTA não tem o alcance de afastar tais regras especiais, então apenas quando não exista determinação legal expressa é que se deve considerar que não há lugar a impugnação administrativa necessária. Se pelo contrário, houver essa determinação, então as decisões administrativas estão sujeitas a tal impugnação necessária[11]/[12]. Se não existir essa impugnação quando tal seja necessário (nos prazos definidos no artigo 193º /2 CPA), então preclude o direito de recurso contencioso[13].



2)     Vasco Pereira da Silva: a revogação da regra geral pelo legislador não deve ser interpretada de forma restritiva, sendo que, a ser assim, terá várias repercussões:
a.      ao se considerar apenas que houve revogação da norma geral e não das especiais, estas últimas deixam de ter um parâmetro geral, deixam de ter especialidade alguma. Assim, passariam a ser apenas reiteração da regra geral;
b.     se já não é pressuposto processual de impugnação de atos administrativos, então deixa de existir consequências contenciosas, pelo que as normas especiais caducam.
Assim, de acordo com a posição de Vasco Pereira da Silva, devem ser revogadas todas as disposições que preveem o recurso hierárquico necessário. 

Por fim, temos ainda um último momento, que foi a revisão de 2015, sendo esta uma revisão que vem instalar um pouco de confusão. Isto sucede porque, se na reforma anterior se tinha retirado a necessidade de impugnação administrativa enquanto pressuposto processual, esta reforma vem inserir um novo pressuposto processual no CPA (atípico, nas palavras de Mário Aroso de Almeida[14]) que não era exigido no CPTA.
No CPA, nomeadamente no artigo 185º/2, o legislador veio reconhecer expressamente as impugnações administrativas necessárias e explicitar quais os critérios de identificação dessas impugnações em lei especial (artigo 3º do Decreto-Lei nº4/2015, de 7 de janeiro, que aprovou a revisão de 2015 do CPA).
Esta introdução não deixa de ser bastante contraditória, dado que se insere em lei substantiva (CPA) um novo pressuposto processual que já não era exigido no CPTA, o que, para além de demonstrar um certo retrocesso a um regime que já não existia, não deveria constar em lei substantiva, nomeadamente quando é defensável que se trata de um pressuposto que em nada se relaciona com a substância do ato, sendo meramente uma questão adjetiva[15]. Tal é claro porque, se não estiver preenchido o pressuposto, não é o ato em si que é afetado, mas simplesmente se verifica a inexistência de interesse processual, não devendo a pretensão do impugnante ser aceite.
Não obstante, existem autores, como Mário Aroso de Almeida, que consideram que esta alteração veio esclarecer que as impugnações necessárias são efetivamente constitucionais, pondo fim à controvérsia que existia aquando da revisão do texto constitucional de 1989[16]/[17].
Ainda assim, não deixa de ser evidente que esta introdução vem demonstrar uma total descoordenação entre CPTA, que não exige o recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto processual; o CPA, que em 2015 passou a exigir tal pressuposto; e a CRP, que aquando da modificação do texto constitucional, também gerou divergência na doutrina sobre a constitucionalidade ou não da exigência do recurso hierárquico necessário[18]
Desta forma, exige-se urgentes alterações legislativas para se proceder a uma compatibilização dos regimes de processo (no CPTA) e procedimento administrativo (no CPA). 

Esta discussão sobre se as impugnações administrativas são ou não necessárias, se são ou não um pressuposto processual para o recurso contencioso, deverá ser rapidamente ultrapassada por uma discussão centrada na efetividade das garantias administrativas:
·       Se se chegar à conclusão que as garantias não são efetivas, então deixa de fazer sentido saber se são ou não necessárias. Não sendo efetivas, não serão úteis, pois não representam qualquer salvaguarda dos direitos concedidos aos particulares.  

·       Se, por um lado, se chegar à conclusão que são úteis, então  podemos discutir se podem ou não ser necessárias.
Para tal, também será necessário uma alteração de comportamentos por parte da própria Administração Pública, na medida em que, para existir uma verdadeira salvaguarda dos direitos dos particulares, é necessário perceber se aquela questão colocada pelo particular, ao chegar ao superior hierárquico, vai efetivamente ser reanalisada ou se simplesmente se vai dar razão ao próprio subalterno, sem quaisquer outras ponderações, passando a ser meramente formal esta garantia.
Se assim o for, então não são garantias efetivas, nem úteis, pelo que não se deve sequer colocar a questão da necessidade. Se tal não ocorrer, e existir efetivamente uma vontade de reanalisar o problema, então a questão de saber se devem ou não ser necessárias pode colocar-se. 

Bibliografia
1. Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019.
2. Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019
3. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009

Mariana Pais, nº 56752



[1] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019, p. 280.
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 201 e 208
[3] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009 p. 201
[4] Acompanhado pela jurisprudência dos acórdãos do Tribunal Constitucional nº 425/96; 499/49; 92/01 e 99/01
[5] Como está hoje expressamente referido no artigo 185º/1 CPA
[6] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019, p. 280.
[7] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 201
[8] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 209
[9] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 209 e 2010
[10] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, página 297
[11] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, p. 297
[12] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019, p. 280
[13] Caso diferente é aquele em que o próprio recurso hierárquico necessário é recusado, sendo que aí admite-se o recurso contencioso (198º/4 CPA)
[14] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, p. 300.
[15] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, p.300
[16] Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2019, p. 298.
[17] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 17ª edição, Almedina, 2019, p. 280
[18] Na medida que desapareceu a referência a definitividade, dando a entender que o relevante para a impugnação contenciosa é que o ato seja lesivo dos direitos dos particulares.

No comments:

Post a Comment

OS PROCESSOS URGENTES

Mariana Bernardo Catalino (24895) O CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL Considerando as diversas alterações ao CPTA, através do DL n...