Tuesday, 17 December 2019

Uma análise do contencioso eleitoral

O Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) introduz a figura do contencioso eleitoral no seu Título III, enquadrado nos processos urgentes. De acordo com o artigo 36º, número 1, alínea a), os processos relativos a contencioso eleitoral, com o âmbito definido no CPTA, têm carater urgente: estamos perante um processo urgente quando é estabelecido, pela lei, um modelo especial de tramitação. Normalmente, são tramitações simplificadas ou mais urgentes, onde existe uma maior necessidade de obter uma decisão de fundo sobre o mérito da causa; apesar do caráter urgente, a tutela concedida é definitiva. Toda a marcha do processo está, assim, pensada para que as decisões sejam rápidas.
No que ao contencioso eleitoral diz respeito, estamos perante litígios relativos aos processos eleitorais que legislação especial não submete à apreciação do Tribunal Constitucional ou dos tribunais judiciais: tal como nos diz o artigo 4º, número 1, alínea m) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Assim, o contencioso eleitoral abrange a impugnação de atos eleitorais ou pré-eleitorais que respeitem a órgãos de pessoas coletivas de direito público, o que permite excluir do seu campo de aplicação, por não possuírem o requisito da personalidade jurídica pública, as instituições de solidariedade social, as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, as sociedades de interesse público, tal como é defendido no acórdão 01039/05, de 06-10-2005, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul: «(…)ficando excluídas as eleições no seio de quaisquer pessoas coletivas privadas, sejam de interesse público ou de utilidade pública administrativa, mesmo que exerçam funções públicas.».
Este contencioso abrange matéria relativa a eleições de órgãos administrativos e não abrange eleições de caráter político, por estas últimas serem competência dos tribunais judiciais e supervisionadas pelo Tribunal Constitucional. Estão, desta forma, excluídos os litígios relativos a todas as eleições que se realizam em Portugal por sufrágio direto e universal dos cidadãos eleitores, tais como a candidatura e eleição para Presidência da República; a candidatura e eleição para deputados da Assembleia da República, das Assembleias Legislativas Regionais e dos órgãos do poder local; aos deputados ao Parlamento Europeu; os atos da Comissão Nacional de Eleições ou de outros órgãos da administração eleitoral do Estado e as eleições realizadas na Assembleia da República e nas Assembleias Legislativas Regionais, por serem matérias adstritas à jurisdição constitucional (artigo 8º da Lei do Tribunal Constitucional). Também estão excluídas da jurisdição administrativa as questões respeitantes às eleições para o Conselho Superior da Magistratura, por serem competência do Supremo Tribunal de Justiça, como prevê o artigo 145º da lei nº21/85, de 30 de julho.
Tal como nos diz o acórdão 11467/14, de 16-04-2015, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, também «não se insere no âmbito do contencioso eleitoral a condenação na abertura de inquéritos com vista à instauração de procedimentos disciplinares, mesmo que visando intervenientes em processos eleitorais (…)».
Por outro lado, estão incluídos os litígios relacionados com a eleição dos titulares de órgãos que se realizam no âmbito de entidades administrativas, isto é, todo o restante contencioso eleitoral das pessoas coletivas de direito público pertencente à jurisdição dos tribunais administrativos, do Supremo Tribunal Administrativo ou dos tribunais administrativos de círculo. Sumariamente, todas as matérias relativas a instituições públicas, os tribunais administrativos são os competentes.
Através desta limitação negativa e positiva, a ação impugnatória a que nos referimos apenas pode incidir sobre o contencioso eleitoral interno das autarquias locais; sobre atos eleitorais ou pré-eleitorais que envolvam os órgãos eletivos de associações públicas, institutos públicos e estabelecimentos ou serviços da administração central e, ainda, sobre o processo de eleição de magistrados para o Conselho Superior do Ministério Público (à luz da lei nº47/86 de 15 de outubro).
São, portanto, casos respeitantes ao exercício de poderes de autoridade, consubstanciado na prática ou omissão de atos jurídicos unilaterais.
No artigo 97º, número 1, alínea a) do CPTA encontramos: «Regem-se pelo disposto no presente capítulo e, no que com ele não contenda, pelo disposto nos capítulos II e III do título II: o contencioso dos atos administrativos em matéria eleitoral da competência dos tribunais administrativos.» Esta remissão torna aplicável, nos processos urgentes do contencioso eleitoral, a maior parte do regime da ação administrativa em matéria de pressupostos processuais.
O modelo de tramitação a seguir no âmbito dos processos de contencioso eleitoral é, portanto, o da ação administrativa, que consta do capítulo III do Título II (artigos 78º e seguintes, do CPTA), com as especialidades que estão previstas no artigo 98º.
Analisando o artigo 98º, o contencioso eleitoral possui um regime específico de legitimidade ativa. Esta está circunscrita, à luz do seu número 1 do CPTA, apenas a quem, na eleição em causa, seja eleitor ou elegível ou, quanto à omissão nos cadernos ou listas eleitorais, também pelas pessoas cuja inscrição haja sido omitida. Ao possuir este regime de legitimidade ativa, afasta, e restringe, a regra prevista no artigo 55º, no que aos processos relativos a atos administrativos diz respeito. Atribui-se a legitimidade ativa a quem disponha de capacidade eleitoral ativa ou passiva para o ato eleitoral em causa e possa invocar um interesse direto e pessoal na impugnação e, também se atribui, à pessoa diretamente prejudicada pela exclusão dos cadernos ou listas eleitorais.
O artigo 98º não menciona, mas tem se admitido na doutrina, apesar de não unanimemente, o exercício da ação pública por intermédio do Ministério Público na defesa do interesse geral da legalidade, através da aplicação supletiva do artigo 9º do CPTA, tratando-se de uma modalidade especial de ação jurídica subjetiva. Pelo contrário, parece ser de excluir a ação popular.
O artigo 98º, número 1 do CPTA diz-nos que «os processos de contencioso eleitoral são de plena jurisdição» significando isto que estes processos urgentes não são meramente cassatórios. O tribunal não possui apenas poderes de anulação, mas também poderes de condenação. Resolve em termos definitivos o litígio, admitindo ou excluindo o interessado cuja inscrição nos cadernos ou listas eleitorais foi posta em causa, e fixando o resultado eleitoral, ou se for caso disso, determinando a reformulação do processo eleitoral. O tribunal emite, desta forma, uma sentença substitutiva ou condenatória, e não apenas anulatória. O juiz tem todos os poderes e pode, assim, decidir sobre todas as matérias relativas ao contencioso eleitoral.
No que a este preceito diz respeito, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que o legislador, ao afirmar que o contencioso eleitoral é um processo de plena jurisdição, torna admissível admitir outros pedidos, e não apenas os pedidos relativos à exclusão dos cadernos eleitorais, admitindo outras sentenças que não apenas as de anulação. Este Professor considera que, por motivos éticos, e através da conjugação do artigo 98º número 1 do CPTA com os artigos 268º, números 4 e 5 da CRP, esta interpretação corretiva é a mais adequada para compreender esta norma, principalmente tendo em conta a remissão legal para a aplicação das regras aplicáveis aos processos principais, designadamente, do contencioso de anulação e de condenação. Isto significa, à luz desta posição, que podem haver pedidos de anulação, pedidos de simples apreciação e pedidos de condenação. Ou seja, o Professor considera que o tribunal não está limitado nos seus poderes pela letra da lei.
Para mais, o acórdão 01564/06, de 11-05-2006, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, «vigora o princípio da impugnação unitária, o que significa que as ilegalidades do procedimento de formação e constituição do processo eleitoral podem ser impugnadas, aquando do ataque do ato final de homologação da eleição.»
No que aos prazos diz respeito, «na falta de disposição especial, o prazo de propositura da ação é de sete dias a contar da data em que seja possível o conhecimento do ato ou da omissão», dispõe o artigo 98º, número 2. Este prazo vale tanto para as ações dirigidas à anulação como para as ações de declaração de nulidade do ato impugnado. Trata-se de um prazo regra, quando o regulamento eleitoral que regule a eleição em causa não estabeleça expressamente um prazo diferente. A contagem inicia-se com a afixação do edital que publicite os cadernos ou os resultados da eleição ou com o mero conhecimento pessoal quando o interessado pertença à comissão ou ao colégio eleitoral e tenha presenciado as operações de elaboração dos cadernos e das listas ou de apuramento dos resultados. Sendo processo urgente, os prazos correm mesmo em férias judiciais, tal como prevê a lei processual civil, aplicável face ao disposto no artigo 1º e ao disposto no artigo 36º, número 2, ambos do CPTA. Relativamente aos recursos, os prazos para processos urgentes, inclusivamente para o contencioso eleitoral, são reduzidos, como demonstra o artigo 147º do CPTA. Os prazos são muito curtos devido à urgência do processo. Ao se tratar de um processo eleitoral, os órgãos administrativos não podem ficar dependentes da discussão de um resultado.
Os atos suscetíveis de impugnação são os relativos ao ato eleitoral propriamente dito e os atos que impliquem a exclusão ou omissão nos cadernos eleitorais. A impugnabilidade dos atos é limitada na medida em que, com exceção dos atos relativos à exclusão ou omissão de eleitores ou elegíveis nos cadernos eleitorais, não é admitida a impugnação de atos anteriores ao ato eleitoral, ou seja, de atos inseridos no procedimento que não sejam o respetivo ato final relativo ao apuramento de resultados. Fica assim afastado o princípio geral previsto no artigo 51º, número 1 do CPTA, que possibilita a impugnação de atos procedimentais que possuam eficácia externa. Está, assim, aqui presente o princípio da impugnação unitária, demonstrando-se a regra da definitividade horizontal (artigo 98º, número 3 do CPTA). Aplica-se, no entanto, o critério de obrigatoriedade de impugnação autónoma da exclusão ou omissão dos cadernos ou listas eleitorais, visto que para os interessados diretamente prejudicados esse constitui já o ato final do procedimento, impedindo-os de participar na eleição.

Bibliografia

Almeida, M. A. (2019). Manual de Processo Administrativo. Almedina.
Cadilha, C. A. (2006). Dicionário de Contencioso Administrativo. Almedina.
Mário Esteves de Oliveira, R. E. (2004). Código de Processo nos tribunais administrativos. Almedina.


Maria Flamino Cabeça, aluna nº 27898

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